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Um ano novo de revolução

Quero uma positividade que impulsione a sociedade a construir um mundo mais justo e compassivo, no qual negras não sejam obrigadas a sustentar o peso e a violência do racismo

ODS 10ODS 16 • Publicada em 29 de dezembro de 2023 - 09:57 • Atualizada em 1 de janeiro de 2024 - 08:28

2023 foi um ano que só segurando na mão de Oxalá. Nós nos encontramos na curva da passagem do tempo prontos para receber os parabéns por ter feito o que foi possível. A exaustão e o cansaço quase não nos permitem mais contemplar o espiralar do tempo. A virada de um ano para o outro nos exige uma nova agenda, com novas metas, com novas tarefas, com mais um monte por fazer. Queremos pensar em novas oportunidades, em outros desafios, em aprimoramento e buscamos desesperadamente uma tal “melhor versão” que no fundo a gente nem sabe o que é.

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A maioria de nós põe muita esperança e expectativa na chegada de um novo ano. É um ritual que envolve muito mais do que virar a página do calendário. Realizamos balanços internos, reflexões profundas, buscando reconhecer certa linearidade de progresso, sucesso e evolução que muitas vezes está baseada em coisas que disseram para gente que eram métricas de uma vida plena.  No geral, a tendência é tentar encaixar as lágrimas e sorrisos de um ano em caixinhas para fazer as tais resoluções de ano novo.

A virada do ano é encarada como uma grande transformação que irá proporcionar altos voos. Revistas, colunistas, coachs e influenciadores vão nos recomendar olhar para dentro em busca de autoconhecimento e crescimento pessoal. Os horoscopinhos vão recomendar que exploremos novos horizontes e a galera do filão vida saudável vem com tudo no discurso pelo investimento no nosso próprio bem-estar. Tudo muito bem organizado e pré-formatado numa positividade tóxica que ultimamente tem ares de sabedoria ancestral. Tudo encapsulado em lettering e design com o intuito de transmitir força, resiliência e sabedoria, mas que oculta a busca obcecada por likes, shares e engajamento.

Oferenda para Yemanjá em Copacabana. Foto Alexandre Macieira/Riotur
Oferenda para Yemanjá em Copacabana. Foto Alexandre Macieira/Riotur

Parte significativa das orientações de final de ano que a gente vai ler nas redes sociais foram criadas por inteligência artificial. Tua influenciadora favorita vai te inspirar a conduzir a vida com coragem, amor e integridade, mas a verdade é que estamos com medo e totalmente quebradas em um mundo que cada vez exige mais das mulheres e que a cada novo ano nos desumaniza mais.

A renovação e as novas possibilidades que precisamos estão muito mais relacionadas na nossa capacidade de mobilização para exigir a observância dos nossos direitos. No discurso genérico de celebração à jornada da vida e nos desejos vazios de um ano novo cheio de realizações, muitas vezes se esconde o que deixou de ser realizado para a melhoria da vida daqueles e daquelas que estão resistindo, mesmo ocupando os piores índices socioeconômicos.

No discurso gratiluz cheio de good vibes, vivem estereótipos racistas que aumentam a pressão e a exploração do trabalho de pessoas negras. Afinal de contas, basta que fiquemos “de boas” que nossos problemas todos se resolvem. Nisso, a dinâmica das redes sociais entrega um romantismo que ignora ou minimiza as experiências reais de quem vai entrar no novo ano enfrentando as consequências concretas do racismo estrutural e das injustiças sistêmicas que nossas comunidades vivenciam.

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Eu mesma sou pessoa bastante incisiva a respeito das minhas revoltas e expectativas em relação ao mundo. Não é que não queira descansar em gramas macias e perder tardes inteiras apreciando nuvens de algodão em céus profundamente azuis. É que a forma com que o mundo se organiza quase não me permite isso e quando o discurso da positividade e otimismo aparece de forma constante há um subtema inscrito: a pressão social para sermos fortes e encararmos as adversidades como desafios que irão nos fazer crescer enquanto seres humanos.

Tenho quase 36 anos e não aguento mais ser desafiada, não aguento mais essa falácia social que criou a ideia de que mulheres negras são imunes a exaustão. É como se a sociedade esperasse que a resposta para a opressão sistêmica fosse simplesmente um sorriso no rosto e uma atitude positiva, sem levar em conta o impacto emocional e psicológico das experiências vividas.

Espero que no ano que se inicia sejamos capazes de expressar nossos sentimentos sem atravessamentos racistas. Que não sejamos desencorajadas pela positividade tóxica, rosada e padrão, a botarmos para fora nossas raivas, tristezas e frustrações. Pois, assim como outras pessoas, temos tristezas e imensas frustrações que frequentemente engolimos com medo do julgamento alheio.

Que nos agarremos fortemente no nosso direito legítimo de sentir e reagir as situações difíceis sem precisar suprimir nossas emoções genuínas em prol de uma imagem idealizada de resiliência e resistência. Que a chegada do novo ano nos inspire a criar espaços que acolham nossas emoções e que validem tanto nossas experiências individuais quanto nossas vivências coletivas.

Quero uma positividade que impulsione a sociedade a construir um projeto por um mundo mais justo e compassivo, onde negras não sejam obrigadas a sustentar o peso e a violência do racismo enquanto são pressionadas a sorrir e ser benevolentes. Sem negar nem silenciar as lutas históricas da população negra. Uma esperança que transcenda o mero otimismo, mas que seja condutora de existência digna que reconheça que o passado, o presente e o futuro das gentes negras é resultado de uma inabalável consciência da nossa própria humanidade.

Que Exu abra os caminhos e potencialize nossas revoltas.

Desejo a todos nós um ano de revolução.

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