ODS 1
Na borda do colapso: a vida ao lado dos bairros afundados pela Braskem
Vizinhos de áreas evacuadas em Maceió vivem dias de terror e incerteza em casas rachadas ou inclinadas e reclamam da falta de informação e orientação
Vizinhos de áreas evacuadas em Maceió vivem dias de terror e incerteza em casas rachadas ou inclinadas e reclamam da falta de informação e orientação
(Wanessa Oliveira/Mídia Caeté*) – Menos de uma hora depois que a Defesa Civil de Maceió e o prefeito João Henrique Caldas anunciaram, no domingo (10/12), que a mina 18 da Braskem havia se rompido, as notícias seguintes pareciam quase acalentar quem acompanhava o caso de seu celular ou assistindo televisão: as informações eram de que o diâmetro afetado foi menor do que se esperava e, apesar do necessário cuidado e afastamento, a situação agora tenderia a se estabilizar.
As notícias supostamente tranquilizadoras vinham do alto, de helicópteros e drones, ou na distância segura de comunicados via redes sociais. No entanto, às margens da lagoa Mundaú, em região considerada como entorno ou “borda” dos bairros já evacuados, não houve qualquer informação capaz de tranquilizar as comunidades isoladas pela Braskem e pelos órgãos públicos que, reunidos em torno de mapas de risco, decidiram quais comunidades seriam realocadas e quais ficariam onde estavam.
No fim das contas, a decisão foi separada por uma cerca de alumínio, que formou um trecho de moradores isolados. Em volta da localidade, há três áreas de evacuação (em frente e nos dois lados) e, logo atrás, a própria lagoa Mundaú.
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Cícero Silva e Sônia Ferreira moram no Vale São Francisco, ou ‘Sovaco da Ovelha’, situada praticamente na divisa que separa a região afetada daquela evacuada – onde se encontra a barreira do Mutange e a Mina 18. “Estamos vivendo momentos de terror aqui. Ninguém veio falar com a gente para explicar o que está acontecendo. Estamos nervosos. Estou aqui tomando calmantes porque não consigo dormir direito e ninguém consegue mais. Não dá para comer ou dormir. O medo é de barreira descer, de mina ceder e morrerem todos os moradores daqui”, conta Sônia. Se não for a comunidade que se esforça para se comunicar com alguém, a gente não sabe de nada”. A Defesa Civil diz que é para ligarmos para ela nas redes sociais, mas nós ligamos direto e eles não atendem. Então por que dizem que é para ligar? Quero ver dizerem que é nossa mentira”, desabafa.
Segundo a moradora, as informações chegaram através de redes sociais. “A gente tem medo de afundar e morrer todo mundo. Ele diz que não faz perigo, mas não é a família dele que mora aqui e vê o que está acontecendo”, conta. “Do campo do CSA para cá não faz quase nenhuma diferença, porque é perto”.
A situação se agrava em meio às ruínas das casas que já foram evacuadas. O esgoto a céu aberto, mato crescido, e uma barragem proliferando transmissores de doenças, como focos de mosquitos, além de ratos, cobras, raposas. Dentro da residências, muitas inclinadas, o solo e a parede das casas apresenta água e rachaduras.
Também morador do Vale São Francisco, Leandro acrescentou que há três anos estão vivendo nestas condições. “Esse é o descaso que o senhor prefeito deixa para a gente. Três anos e todo mundo aqui é esquecido. Eles nem vêm, mas quando vêm dizem que aqui afunda e aqui fica. A água está minando por baixo das casas. Tem casas rachadas, e para ele está tudo normal porque nunca veio fazer visita. Só chegam e dizem que está tudo normal e que dá para vocês viverem. Enquanto isso tem criança com leptospirose, meningite. Tudo por isso aqui. Olha o esgoto. Anteontem, a água invadiu as casas”.
No dia em que foi anunciado o colapso, em 28 de novembro, quando a Prefeitura também informou que abrigaria moradores do Bom Parto para as escolas, mesmo essa ação também foi tumultuada. Os moradores contam como se deu o tratamento dispensado na comunidade. “A parte que iria para as escolas foi a do entorno mesmo da lagoa e, mesmo assim, não seria todas elas. Só a metade. Era para a gente evacuar deixando móveis e pertences, e só levar as mudas de roupa e documentos. Mas aí a gente não quis sair. Todos nós nos recusamos”.
Já o morador Cícero Manoel adiantou que não pretendem ser deslocados para nenhuma escola na iminência de algum desastre. “Estamos a deus-dará, mas não vamos para colégio nenhum. Não vou deixar minha casa e minhas coisinhas. Já não tenho quase nada e ainda sair assim. Tem que ter uma resolução para a gente sair daí. Estamos bem pertinho da mina e ficamos nesse desespero, porque não temos condição de alugar em nenhum canto. Queremos sair, mas com proteção”.
Medo e desinformação
Por volta das 18h de domingo e sem qualquer aparição de órgãos públicos, o trecho do Bom Parto não evacuado seguia movimentado, com muitos moradores nas calçadas e nas ruas, buscando trocar informações sobre a situação da mina. Entre eles, o morador Samuel de Farias recolhia assinaturas. “Isso aqui é uma ação popular com documento assinado pelos moradores, porque eles dizem que 50 a 60 metros da minha casa vai ter moradores que vai sair, e já do lado de cá não vai. Se você fizer uma imagem, vai ver que vai isolar a rua toda. Não temos saúde, educação, lazer”, afirma. “A gente quer ser retirado desse lugar. Nas margens da Lagoa, as pessoas estão à mercê. Pessoas idosas, doentes, em miséria. Estamos levantando todas essas assinaturas para levar para o MPF, MPE, Defensoria, Prefeitura e Defesa Civil. Queremos ser inclusos no mapa versão 5. Que peguem a margem toda, e não só essas pessoas isoladas”, acrescenta.
A moradora Gerusa Silva, da localidade conhecida como Borda da Lagoa, conta que não conseguem mais acreditar sequer nas reportagens. “ A mina se rompeu e a gente ouviu um rapaz falando na reportagem que não era nada. Ele disse isso, porque não mora aqui. A gente está vivendo semanas, sem dormir e comer, com pessoas acamadas. É muito fácil quem mora no Farol ou seu aconchego dizer para a população se acalmar. Como a gente vai dormir sem saber se vai acordar? Estamos aqui porque o mapa veio de um andar para trás e estamos na borda sofrendo. A sirene tocou três vezes, que ouvi no meu quintal, e depois desligaram. Estamos com sufoco, crise de ansiedade, pessoas que passaram mal neste instante. E aí? Somos seres humanos. Não somos bicho. A gente grita por socorro. Façam alguma coisa por nós, enquanto estamos vivos, porque amanhã pode ser tarde demais.”.
Daniel de Farias, morador do bairro Bom Parto há 40 anos, conta que as rachaduras sempre foram justificadas pela Defesa Civil como ‘problema de construção’ das casas. “A Defesa Civil chega aqui e diz que é má construção. A casa da minha mãe está rachada em todos os cantos, e nós fizemos colunas desde o chão, na sala, quartos, cozinha e continua rachando. Não é construção. É solo. Hoje aconteceu colapso e ficamos nesse clima de tensão e medo. Já tive ansiedade, fica dando picos e ficamos tentando disfarçar, mas vivemos nesse sintoma de tensão, na dificuldade de saber a verdade, porque nem eles da Defesa Civil têm noção, porque ao lado da mina 18 tem a mina 7, a mina 10, mina 9, tudo mais próximo. A gente não sabe o que pode acontecer. O que a gente vem sofrendo é a subsidência e estar no bairro desvalorizado, que não tem mais nada”.
Os moradores ainda demonstram que a única ação percebida pela Prefeitura foi a instalação de um centro de acolhimento, que estava desativado no dia do rompimento, e mesmo no dia a dia não possui estrutura que de fato acolha a população. “É para tapear”, resumiu Gerusa. Já Daniel complementa: “É uma ação que é passageira, mas que não tem nada a ver com o que precisamos, não é nossa realidade. O que a gente vive é não ter escola, são padarias tiradas. Para comprar um pão tem que andar muito. Comércio é menos de 30% aqui hoje. Aumentou assalto. E ainda há a pressão que as pessoas vivem diariamente”.
A região do Bom Parto não evacuada, que sofre o isolamento e a falta de perspectivas de segurança e renda, não é a única que, no entorno da lagoa, amarga os prejuízos do desastre provocado pelo crime da Braskem. No Vergel, e em diversas regiões do entorno da lagoa Mundaú, pescadores e marisqueiras também anunciam, mais uma vez, a mortandade de sururu desde o rompimento. Os desafios enfrentados pelos trabalhadores da pesca já vinham sendo anunciados, diante da proibição de circulação de embarcações, além da própria condição de adoecimento da lagoa em razão do assoreamento, da poluição, e do alagamento dos mangues.
Nos Flexais, a situação de isolamento, rachaduras e insegurança é semelhante ao Bom Parto. De acordo com o morador Fabiano Santos, as noites vêm sendo longa. Já o contato com os órgãos públicos, pouco efetivos. “A Mina não colapsou ainda, está dando sinais, não é? Começando a descer, mas na realidade está só se agravando. Tanto a gente aqui como no Bom Parto, todos nós ligamos para a Defesa Civil, mas as tratativas com eles são sempre as mesmas que estamos cansados de ouvir. A única coisa que dizem é que não há perigo, que é fato isolado, mas eles não se pronunciam sobre o fato que ali são 35 minas. Começou apenas uma. Está todo mundo apavorado”, diz.
Segundo ele, os moradores já sentiam que algo estava errado desde a madrugada anterior. “Foi uma noite longa, a gente ouviu estrondos de lá só não sabíamos distinguir o que era. O pessoal da Marquês de Abrantes contou que sentiu tremores de terra. Os sismógrafos do bairro foram todos desligados, porque a Defesa Civil estava recebendo muita ligação. Mas eles não passam nada para a gente e aí só vamos descobrir através de sites que a gente acompanha, porque a Defesa Civil não fez nada para alertar à população. Enfim, estamos apavorados, Eles não têm o menor comprometimento com as vidas dessas pessoas que estão jogadas, sendo forçadas a ficar nessas bordas, que eles sabem, eles têm ciência, que isso vai se propagar”.
Sem plano de contingência, sem respostas
Questionada pela Mídia Caeté, a Defesa Civil de Maceió e Prefeitura de Maceió não responderam sobre as questões apontadas pela população, sobretudo sobre a ausência no local no momento mais alarmante de rompimento da Mina. Não responderam sobre previsão de realocação, ou mesmo onde encontrar o plano de contingência requerido para quando do rompimento da Mina 18.
Acompanhando toda a situação dos moradores desde o início do processo de luta por realocação, a professora e pesquisadora Juliane Veríssimo, mestranda em Sociologia na Ufal, relata o que vem presenciado e como segue avaliando a situação. “O que a gente vive hoje nada mais é do que a ampliação da vulnerabilidade dessas pessoas à margem da Lagoa Mundaú, uma região continuamente invisibilizada. A cidade virou as costas para essa população, o Estado virou as costas para essa população. Eles são invisíveis para o poder público, inclusive nessas novas ações”, retrata.
O estado contínuo de alerta vem adoecendo a população, uma vez que a falta de informações diretas dos órgãos públicas é um padrão. “Não tem um plano de informação, um plano que vise amenizar essa situação de alerta que eles vivem, pois estão em contínuo alerta desde o dia 29. Já estavam em alerta antes, mas com a história do colapso da mina, esse alerta ficou realmente ligado. As pessoas vão naturalizando também o fato de viverem à margem, de todas as formas, mas a partir da história da mina, do dia 29, esse alerta é novamente ligado, e as pessoas estão lá. Apesar desse alerta, as pessoas estão abandonadas”, conta Juliane Veríssimo, acrescentando que o sentimento de invisibilidade faz com que as comunidades busquem reafirmar o tempo inteiro que “também são gente”.
A professora explica o sentimento dos moradores da região. “Em muitos relatos, nas visitas que tenho feito, eles mesmos falam que não são ratos, não são ladrões, eles também são gente. Então, essa condição de invisível para o poder público está também na constituição deles enquanto indivíduos. Eles precisam afirmar para outras pessoas, no caso, os pesquisadores que chegam lá, eu e outros, que eles também são gente, que precisam ser vistos”, afirma.
A perspectiva de existência de duas cidades – uma enfrentada por essa população e outra oposta, que tenta controlar a economia do mercado turístico – é também analisada nas vozes das vítimas da Borda. “Eles mencionam também que a cidade é feita para o turista, ou seja, eles têm a consciência disso, de que eles são esquecidos propositalmente e são lembrados só em época de eleição. Isso reflete na auto-estima dos moradores da região, dos jovens da região. É de uma tristeza muito grande. Para quem se importa, para quem tenta construir uma ciência diferente, uma ciência que não está em cima de um pedestal, que chega perto das populações, é muito dolorido, porque a gente se vê em uma situação de impotência também muito grande”, comenta Veríssimo.
Nesse momento em que a ciência se reproduz no cerne do povo, e as teorias conseguem encontrar as realidades, o sentimento de uma história que se repete fica ainda mais evidente. “É como se nós estivéssemos vendo uma reatualização da colonização nesse fato novo. A mineração é a expressão dessa colonização, desse colonizar a natureza. Eles dominam a natureza, fazem o que querem com ela e fazem o que querem também com os corpos que estão ali, que, no caso, se alimentam daquela lagoa, precisam daquela lagoa para viver, moram às margens dela. Então, eles são parte daquele habitat. Eles são selvagens tanto quanto, então, não precisam. Eles não precisam de informação, eles não precisam ser amparados de fato, escutados nas suas necessidades. É uma reatualização do caráter colonial da mineração, é isso”.
Outro elemento que a pesquisadora traz é a necropolítica, que ela explica a partir da ideia de que existem corpos que estão marcados para morrer. “E são esses corpos desses bairros, que estão marcados de certa forma. Essa marca é construída por esse biopoder. A empresa, o Estado, eles se unem e decidem, decidem quem deve viver e quem deve morrer. Quem deve ser visto, observado, quem são os escolhidos e quem não são os escolhidos”.
A posição dos órgãos públicos, sobretudo da Defesa Civil cuja função seria estar mais próxima das vítimas neste momento, também foi colocada em xeque. “É um tecnicismo até duvidoso, porque como é que ela solta só nota em rede social e não se faz presente no local? Como é que solta nota escrita no site da Prefeitura, se muitos moradores não sabem nem ler? É de uma importância que a Defesa Civil estivesse lá, mas essa linguagem tecnicista que ela vem exercendo em todo esse período não é de hoje. Essa linguagem técnica, mais de uma técnica dotada de muita falta de humanidade mesmo, prejudica os moradores, porque amplia o sofrimento deles”, avalia.
*Wanessa Oliveira, jornalista graduada pela Universidade Federal de Alagoas, com MBA em Jornalismo Político (UGF) e mestrado em Sociologia (UFAL), é cofundadora e editora da Mídia Caeté
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