ODS 1
Mulheres indígenas protagonizam na TV narrativa sobre ancestralidade
Episódio Pintadas, parte do especial Falas da Terra e exibido em rede nacional, conta a história marcada pela ancestralidade de três jovens
Na semana do Dia dos Povos Indígenas, três jovens atrizes estreantes protagonizam na TV aberta uma história sobre ancestralidade envolvendo temáticas como preservação ambiental e violência contra a mulher. Com mulheres indígenas também por trás das câmeras, o episódio Pintadas – integrante da antologia Histórias Impossíveis – permitiu este raro protagonismo a descendentes dos mais antigos moradores do Brasil. “É uma oportunidade de mostrar a diversidade dos povos indígenas, mas também suas individualidades enquanto seres humanos”, considera Isabela Santana, atriz da etnia Pataxó.
Parte do projeto especial Falas da Terra, Pintadas foi ao ar em rede nacional pela Globo, na segunda-feira (17), e conta a história de Luara (Ellie Makuxi), Josy (Dandara Queiroz) e Michele (Isabela Santana). Com uma narrativa marcada pela subjetividade e fantasia, a trama mostra o encontro das jovens para a gravação de um videoclipe de rap em uma floresta do Mato Grosso do Sul mas, ao se depararem com a degradação da natureza, são atravessadas por uma série de acontecimentos fantásticos e precisam lidar com seus próprios medos, identidades e histórias.
Dentro de um set grande como os da Globo, Isabela Santana conta que, na construção da personagem Michele, ela partiu de suas próprias experiências. “Ela é muito parecida comigo em diversos fatores. Nós duas somos mulheres da Bahia, mulheres indígenas, curiosas e temos o riso solto”, afirma a atriz de 22 anos, nascida em São Paulo, mas com raízes no povo Pataxó, do sul da Bahia acrescentando que experiência na TV aberta serviu para a prática de todo o estudo de interpretação, ao qual tem se dedicado nos últimos anos: ela cursa Artes Cênicas na UFBA, em Salvador.
Para Isabela Santana, é impossível descolar a ancestralidade da sua identidade. “É mais uma forma de ver o mundo e de eu me sentir no mundo do que algo separado de mim e faz realmente parte da minha existência. É entender que a gente é composto pelos tantos que vieram antes e é uma continuidade”, conta a jovem indígena, que já trabalhou por trás das câmeras.
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Veja o que já enviamosA atriz aponta que a TV brasileira não está acostumada a ver pessoas indígenas vivenciando as mais distintas realidades possíveis e que o projeto Falas da Terra veio para quebrar barreiras. “É uma oportunidade da gente apresentar a subjetividade dos corpos indígenas. Ou somos muito romantizados, como vítimas, ou somos extremamente inferiorizados, então a gente está simplesmente apresentando personagens que são pessoas que vivem, têm sonhos, choram”, afirma Santana, destacando que, pela ausência de protagonismo indígena na indústria cultural brasileira, há esse distanciamento com a realidade dos povos originários.
A jovem atriz destaca que Pintadas mostra a diversidade dos povos indígenas, sem deixar de revelar o lado pessoal e individual de cada protagonista. “A gente também está abordando as nossas individualidades como seres coletivos. E as tantas camadas que essas vivências têm. Se a gente não tem um audiovisual multicultural, multilinguístico e diverso, a gente não tá refletindo o verdadeiro Brasil”, afirma Santana, que espera novos olhares no audiovisual brasileiro que possam retratar o país como ele realmente é, com profissionais indígenas tanto na atuação como em posições de decisão por trás das câmeras.
Isabela Santana divide o protagonismo do episódio com outras duas indígenas, também estreantes na TV. Ellie Makuxi, de 21 anos, nasceu em Roraima, onde vive seu povo, e foi convidada para o especial pelas interpretações no seu perfil do Instagram. Aos 25 anos, Dandara Queiroz, de descendência tupi-guarani, já tem uma ascendente carreira de modelo, mas nunca havia trabalhado como atriz.
Presença indígena também por trás das câmeras
No início do projeto Histórias Impossíveis , as autoras da antologia – Renata Martins, Grace Passô e Jaqueline Souza – realizaram um trabalho de pesquisa com mulheres indígenas para entender as demandas e questões pessoais atravessadas por elas. “Elas querem se ver representadas com muitas possibilidades fora dos estereótipos. Mas que também possam, além de representar os povos indígenas, representar mulheres que têm sonhos e trabalhos”, conta Luisa Lima, a diretora artística do projeto.
Desde o início, a antologia veio com a proposta de atacar as questões sociais a partir de elementos do fantástico e do terror. Construído por mulheres, a diversidade nas narrativas trazidas pelas autoras têm perspectivas plurais em relação à raça, origem, classe social, orientação sexual e identidade de gênero. Luisa afirma que essa pluralidade de olhares nas histórias rompe com os estereótipos e abre novas possibilidades. “É um projeto extremamente vinculado a questões sociais que precisam ser enfrentadas pelo nosso país, pela nossa cultura e pelo nosso audiovisual. Quem sabe isso não cria pequenas pontes para as pessoas enxergarem de outra forma, se sensibilizarem de outro jeito, diminuírem a distância desse olhar que subjuga o outro e se vê tão distante dessa realidade.”
Com a intenção de abarcar todas as questões de diversidade e com senso de coletividade, Luisa entendeu a necessidade do grupo de direção ser maior do que costuma trabalhar. “Tem a Graciela Guarani que tanto participou da sala de roteiro como também foi uma das diretoras. É uma comunicadora e mulher indígena, uma mulher que traz perspectivas e vivências muito diferentes das minhas e muito essenciais para que a gente possa retratar com profundidade mesmo essas questões indígenas”, explica.
Pertencente à nação Guarani Kaiowá, Graciela Guarani é uma das roteiristas e diretoras da antologia Histórias Impossíveis. No episódio Pintadas, ela dividiu a direção com Thereza de Medicis. Durante a sala de roteiro, ocorrida remotamente pelo contexto pandêmico da época, ela se viu num ambiente seguro para trabalhar com mulheres que admirava. Diferente de muitos núcleos do audiovisual, majoritariamente com pessoas brancas, a diversidade nessa sala de roteiro foi essencial. “No Pintadas, tanto eu quanto a Renata Tupinambá, que é outra parente, discutimos junto com as autoras todo o processo de vivências e isso contribuiu tanto para a construção das personagens quanto do universo que se propõe esse episódio”, conta.
Para Graciela, a exibição desse episódio em rede nacional em um canal aberto é uma conquista. Como comunicadora, trabalhando há mais de 15 anos com todos os processos de linguagem de imagem e não só o cinema, ela enxerga um significado muito simbólico nessa conquista. “É muito forte, pela primeira vez, a gente poder debater e mostrar um pouco das nossas vivências em um canal aberto. A importância disso passa muito por esse lugar político mesmo porque, de fato, a gente discute tanto essa tal de visibilidade num lugar muito setorizado e que não alcança a maioria das pessoas”. Além da visibilidade, ela também considera educacional abordar a questão indígena na televisão para romper e transformar alguns imaginários que se tem sobre as vivências dos povos originários.
Graciela afirma que é um processo de humanização mostrar pessoas indígenas para além de uma condição de não-acesso às questões universais. Ela acredita que essa aproximação da realidade entre pessoas indígenas e não-indígenas por meio da tela da televisão, só foi possível pelo diálogo e pela negociação cultural de quem faz, produz e reproduz também. “É muito importante estar pela primeira vez imprimindo na tela essa condição de poder retratar de uma maneira próxima. É a primeira vez que a gente pode se ver da forma como a gente é.”
Para além de preencher lugares datados como o dia 19 de abril, Graciela tem esperança que o episódio Pintadas, junto com outras produções feitas por pessoas indígenas, possibilite a abertura desse caminho para que a existência dos povos indígenas faça parte do entretenimento brasileiro “Estamos aí todos os dias do ano tentando, lutando, sorrindo, batalhando e chorando junto. Dentro da aldeia e fora dela. A gente circula, caminha, conversa com o povo, vive dentro dos povos, não só o povo indígena. O nosso processo criativo é rico porque a gente circula dentro desses povos”, pontua.
Jornalista, comunicadora antirracista, da Baixada Fluminense e apaixonada por ouvir e contar histórias. Seja por meio da fotografia, audiovisual ou escrita. Foi estagiária da assessoria de comunicação do Ministério Público Federal no Rio de Janeiro e colaboradora do portal Notícia Preta.