ODS 1
Pena de morte, prisão perpétua e perseguição contra LGBT+ na África
Há dez anos, jornal ugandense convidava a população a enforcar homossexuais, expondo seus nomes, fotos e endereços. A incitação à violência perpetuou-se em alguns países do continente e, ainda hoje, LGBT+ lutam diariamente por liberdade e sobrevivência.
Quando os atores e diretores Lázaro Ramos e Kiko Mascarenhas começaram os trabalhos para montar a peça teatral “O Jornal – The Rolling Stone” ambos tinham intenções muito claras e diretas a respeito do recado que queriam dar com o espetáculo. “Eu e Lázaro já vínhamos conversando muito sobre como discutir alguns assuntos sociais importantes e expô-los ao grande público. Quando o Diego Teza, tradutor e pesquisador, nos apresentou esse texto, foi uma feliz coincidência porque a peça trata de uma série de assuntos que nós achávamos importantes: a discriminação e a criminalização dos homossexuais – uma questão relevante dentro do movimento LGBTQIA+ – mas também uma crítica à influência negativa e discriminatória de algumas práticas religiosas e a questão do protagonismo negro. O que nos chamou a atenção foi essa conjunção de temas importantes.”, comenta Kiko ao #Colabora.
A peça é inspirada na história real do jornal ugandense Rolling Stone (nada a ver com a revista estadunidense sobre a indústria musical) que publicou, em 2010, fotos, nomes e endereços de cem homens e mulheres gays. A manchete na primeira página alardeava “As 100 fotos dos maiores homossexuais do Uganda”. Nas páginas internas, o título “Enforque-os, eles estão atrás das nossas crianças!” já era uma incitação nada sutil à violência e ao assassinato para “purgar o mal encarnado nessas pessoas”.
O texto, com tom excessivamente evangelizador, chamou a atenção do dramaturgo inglês Chris Urch, que acompanhou com atenção as consequências diretas da manchete e da reportagem no Uganda: vários dos cidadãos identificados como gays foram atacados, as casas de alguns foram incendiadas e o caso mais rumoroso foi o assassinato do fundador e líder do movimento LGBTQIA+ no Uganda, David Kato. David foi espancado até a morte em janeiro de 2011, semanas depois de ter ganhado o processo que moveu contra o Rolling Stone.
Em partes da Nigéria e da Somália (uma junção de duas regiões colonizadas pela Grã-Bretanha e pela Itália) e na Mauritânia (ex-colônia francesa), homossexuais podem ser condenados à pena de morte. Além desses países, Uganda, Gâmbia, Zâmbia, Tanzânia e Zimbábue punem gays com prisão perpétua. Em meados de julho de 2020, o Sudão suspendeu o castigo de 100 chibatadas (para réus primários) e a pena de morte (para reincidentes) como sentença a pessoas condenadas por “atos homossexuais”. Mas a luta ainda é longa. A pena de prisão por cinco anos (e em alguns casos de prisão perpétua) foi mantida. Dos 54 países do continente, apenas a África do Sul reconhece o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Nesta reportagem, o #Colabora traça um retrato da dura realidade de ser LGBT+ em alguns países do continente africano.
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Em 2011 – ano do assassinato do ativista David Kato – o governo do ditador Yoweri Museveni, no poder desde que liderou um golpe de Estado no Uganda em 1986, apoiou uma proposta de lei apresentada ao Parlamento que previa uma longa lista de criminalizações contra homossexuais e apoiadores, incluindo a pena de morte. A pressão feita por instituições não governamentais ligadas aos Direitos Humanos, liderada pela Anistia Internacional, fez com que o Parlamento ugandense diminuísse o ímpeto. A Lei foi aprovada em 2014, mas a pena de morte foi substituída por prisão perpétua pela Corte Constitucional do país. “Essas leis homofóbicas e a homofobia em si no Uganda são parte de um legado deixado pela colonização britânica”, conta Chris Urch, autor da peça “O Jornal – The Rolling Stone” que estreou na Inglaterra em 2013 e no Brasil em 2018, pelas mão de Lázaro e Kiko.
A lei ugandesa, apelidada pela comunidade LGBTQIA+ como “Lei Mata Gay”, também prevê a extradição de qualquer cidadão ugandense acusado dos “crimes” de envolvimento direto ou indireto em “atos de homossexualidade” fora de seu país. E mais, a possibilidade da prisão de pessoas comuns, presidentes e diretores de empresas e ONGs que auxiliem ou incentivem atos homossexuais (entre eles a realização de um casamento gay), se tornou catalisadora de chantagens e ações punitivas feitas tanto pelo Estado (com prisões arbitrárias) quanto pelos líderes conservadores das igrejas neopentecostais (presentes em todo o Uganda). Essas instituições, entre outras iniciativas, divulgam, durante os cultos religiosos, os nomes de familiares que tenham parentes acusados de serem gays.
Nigéria
Na Nigéria, a criminalização da homossexualidade seguiu o mesmo caminho legal que no Uganda. O então presidente Goodluck Jonathan (no poder entre 2010 e 2015) assinou, em janeiro de 2014, a Lei (de Proibição) do Casamento Entre Pessoas do Mesmo Sexo, que além de criminalizar o casamento, também coibe a coabitação e qualquer “demonstração pública de relacionamento amoroso entre pessoas do mesmo sexo”. A Lei de 2014 “atualizou” o código penal colonial, deixado como legado pela Grã-Bretanha, que “apenas proibia (nas palavras do próprio ex-presidente) os vis atos libidinosos” entre pessoas do mesmo sexo. As penas variam de 10 a 40 anos de prisão e valem para quase toda a federação nigeriana. Nos 12 estados do norte do país, com maioria muçulmana, a Lei Islâmica foi incorporada desde o ano 2000, embora a Constituição da Nigéria a declare um Estado laico. Desde então, nesses estados do norte, qualquer ato homossexual ou suspeita de homossexualidade é sentenciada pelos tribunais islâmicos com a pena de morte.
[g1_quote author_name=”Bisi Alimi” author_description=”Ativista LGBT+” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]A ideia de que a homossexualidade é ‘ocidental’ se baseia em outro conceito imposto pelo ocidente – o cristianismo. A verdadeira cultura africana celebra a diversidade e promove a aceitação
[/g1_quote]A moral nigeriana é ditada pela religião. As pessoas vivem suas vidas de acordo com o que está escrito na Bíblia ou no Corão”, declarou o advogado e ativista Bisi Alimi em uma palestra do TEDx Berlim, em 2014. Dez anos antes, Alimi tinha feito história na Nigéria ao revelar ser gay e soropositivo num dos programas mais populares da TV local, “New Dawn with Funmi”, comandado pela estrela do jornalismo Funmi Iyanda. Na pauta da entrevista, a falta de políticas públicas de Saúde que combatessem os altos índices de contaminação pelo HIV/Aids entre a população LGBTQIA+ na Nigéria e os esforços para integrar – e não segregar – essa parcela da população.
O programa foi um sucesso de audiência, mas causou tanto desconforto à cúpula da Nigerian Television Authority (NTA) e ao governo nigeriano que foi tirado do ar. A entrevista deu notoriedade a Bisi, na época diretor de uma ONG atuante na defesa dos direitos das minorias sexuais, e serviu para abrir portas, entre elas uma parceria inédita com o Ministério da Saúde nigeriano, que diminuiu a taxa de mortalidade entre pessoas com HIV/Aids. “Mas, em janeiro de 2014, com a assinatura da Lei, todo o trabalho feito nos 10 anos anteriores foi jogado no lixo com uma canetada do presidente Jonathan. Foi nesse dia que me dei conta de que todo o trabalho de prevenção e tratamento estava perdido. Que todas as vidas salvas eram mero joguete eleitoral e político em um governo sendo acuado por acusações de corrupção generalizada e pela ação do Boko Haram (grupo terrorista que atua no norte do país). A Nigéria deixou de proteger e cuidar da sua população vulnerável, em vez disso, a criminalizou”, conta Bisi, em entrevista exclusiva para o #Colabora.
Nessa época, Bisi Alimi já morava em Londres, tendo migrado em 2007 para a Grã Bretanha depois de receber inúmeras ameaças de morte sem que as autoridades policiais nigerianas sequer prosseguissem com as investigações.
Gana, Maláui e Senegal
O relatório mais recente da Anistia Internacional sobre os avanços e retrocessos nas áreas dos Diretos Humanos é referente ao ano de 2018 e dedica uma parte pequena, porém importante, ao continente africano. Em países como o Gana, o Maláui e o Senegal, os processos judiciais, o assédio e a violência por parte de autoridades públicas e policiais aumentaram contra cidadãos homossexuais ou acusados de praticar “atos indecentes” ou “não-naturais”. Na Nigéria, as práticas de perseguição, violência e abuso das autoridades policiais é constante desde a provação da lei de 2014.
No Gana, no apagar das luzes de 2019, o presidente do Parlamento, Aaron Mike Oquaye (homofóbico assumido), apresentou proposta de emenda constitucional para aumentar as penas aplicadas aos cidadãos flagrados em práticas homossexuais. No país, a comunidade LGBTQIA+ está melhor organizada e pressiona sem descanso as autoridades a implementar um referendo sobre os direitos dos cidadãos homossexuais. O atual presidente, Nana Akufo-Addo, também homofóbico assumido, concorrerá à reeleição em fins de 2020 e as lideranças LGBTQIA+ ganesas já demonstraram que não lhe darão trégua. Nem a ele, nem ao adversário com mais chances de derrotá-lo, o ex-presidente John Dramani Mahama.
Botsuana, Angola e África do Sul
Mesmo com os retrocessos divulgados no relatório da Humans Rights Watch, que denuncia prisões, humilhações públicas, extorsões e discriminação de homossexuais promovidas por órgãos públicos na Libéria, no Egito, no Marrocos, no Chade, no Camarões, no Quênia, na Tunísia e na Zâmbia (onde o presidente, Edgar Lungu, bateu de frente com o embaixador estadunidense, Daniel Foote, após criticar o governo zambiano por ter apoiado a pena de 15 anos imposta ao casal gay Japhet Chataba e Steven Samba), há os exemplos mais do que promissores – embora tardios – do Botsuana, de Angola e da África do Sul.
Em junho de 2019, o Supremo Tribunal de Justiça do Botsuana descriminalizou a homossexualidade. Os ministros bechuanos entenderam que dois artigos do Código Penal eram inconstitucionais ao proibirem atos de intimidade sexual entre pessoas do mesmo sexo. Foi uma decisão histórica. Além da descriminalização, o TSJ também ordenou ao governo que alterasse a identificação de gênero nos documentos oficiais do país para refletir a “identidade alegada” pelo cidadão. Essa decisão é fruto direto de outra, de 2017, quando o mesmo TSJ havia referendado o pedido de um homem trans em ter permissão para mudar de gênero nos documentos oficiais. Em ambas as decisões, os juízes da alta corte do Botsuana deixaram claro que qualquer dessas proibições “são violações dos direitos humanos básicos”. Os grupos LGBTQIA+ bechuanos brigam agora para que a lei seja praticada de fato.
[g1_quote author_name=”Kiko Marcarenhas” author_description=”Ator” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]A gente não se dá conta de como o racismo e a homofobia, por exemplo, podem destruir o amor entre duas pessoas, o amor entre os integrantes de uma família e desestruturar uma sociedade inteira
[/g1_quote]Ainda em 2019, o Parlamento angolano também promoveu uma mudança promissora. Aprovou uma revisão no Código Penal para remover dois artigos cujas interpretações poderiam ser usadas para criminalizar as relações entre pessoas do mesmo sexo. Foram os fatos acima que levaram a Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais (Ilga), a defender que o avanço tem sido lento, mas constante no continente africano. “Além do Botsuana, as ilhas Seicheles, Maurício e Comoros e o arquipélago de Cabo Verde são os mais liberais dos 54 países africanos, junto com a África do Sul, o único a oficializar o casamento de pessoas do mesmo sexo”, defende a instituição em um comunicado oficial.
Mesmo sendo o país com a legislação mais avançada do continente, onde a Constituição reconhece as relações entre pessoas do mesmo sexo, os cidadãos gays, lésbicas e trans são frequentemente atacados, molestados e perseguidos por suas orientações sexuais e/ou identidade de gênero na África do Sul. Ainda há muita resistência dentro das famílias, muito influenciadas pelas igrejas evangélicas brasileiras e estadunidenses que “frequentemente encaram quaisquer questões a respeito da orientação sexual fora dos padrões binários a uma possessão demoníaca”, conta a ativista LGBTQIA+ nigeriana Yemisi Ilesanmi.
‘A homossexualidade não é não-africana’
Ilesanmi é advogada, mestre em Direito em Gênero, Sexualidade e Direitos Humanos e fundadora e coordenadora do grupo “LGBTIs nigerianos na diáspora contra leis anti-homossexuais”, cujo trabalho, atualmente, se expandiu para além de reunir e coordenar esforços dos nigerianos da diáspora contra as leis nigerianas, mas também os zimbabuenses, os ganeses, os gambianos, os tanzanianos, os sudaneses e os zambianos contra as leis homofóbicas e transfóbicas em seus respectivos países.
Em seu livro “Freedom To Love For ALL: Homosexuality is Not Un-African” (Liberdade de Amar Para Todos: A homossexualidade não é não-africana), ela rebate já no título uma das argumentações mais usadas por políticos homofóbicos no continente africano, o de que a homossexualidade seria uma “doença do homem branco” e não um conceito ou uma prática africana. Ideia que a própria Ilesamni se dedica a desconstruir. No século XVI, por exemplo, os guerreiros imbangalas (ou bangalas), do reino de Cassange, em Angola, mantinham como “esposas”, homens que usavam roupas femininas. No antigo reino Buganda (no sul do atual Uganda), o monarca (ou cabaca) Mwanga II era assumidamente gay e se opôs ferrenhamente ao ativismo cristão e à colonização dos britânicos no fim do século XIX.
“A ideia de que a homossexualidade é ‘ocidental’ se baseia em outro conceito imposto pelo ocidente – o cristianismo. A verdadeira cultura africana celebra a diversidade e promove a aceitação”, defende o ativista Bisi Alimi. Não por acaso, o sucesso de entidades pró-LGBT no Botsuana e na África do Sul, demonstram que há uma grande rede sendo contruída para dar apoio a outras organizações de defesa dos direitos LGBTQIA+ como as da Nigéria, do Uganda, da Mauritânia, da Tanzânia e do Sudão.
[g1_quote author_name=”Yemisi Ilesanmi” author_description=”Advogada e escritora” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Desmontar os gatilhos da homofobia é o grande desafio de todos, em qualquer lugar do mundo, não só na África
[/g1_quote]“Ainda há muito o que avançar nas campanhas de educação sexual e prevenção ao HIV/Aids, além da garantia de fornecimento de serviços básicos de saúde à comunidade LGBTQIA+, profissionais do sexo e apoio psicológico em geral. Isso sem falar nas campanhas contra o preconceito. Desmontar os gatilhos da homofobia é o grande desafio de todos, em qualquer lugar do mundo, não só na África”, arremata Yemisi Ilesanmi.
É uma linha de pensamento paralela a do ator e diretor brasileiro Kiko Mascarenhas: “Acho que a peça (O Jornal – The Rolling Stone) fala desse mundo hipócrita no qual vivemos, que alimenta uma mistura perigosa de visão religiosa maniqueísta, visão política extremista, disseminação da miséria de pensamentos e sentimentos e, por fim, a naturalização do preconceito. A gente não se dá conta de como o racismo e a homofobia, por exemplo, podem destruir o amor entre duas pessoas, o amor entre os integrantes de uma família e desestruturar uma sociedade inteira”.
Jornalista formado pela Uerj em 1996 e mestre em Relações Internacionais pela PUC-Rio. Trabalhou como repórter em jornal impresso e em TV. É professor de História da África no curso de Relações Internacionais da PUC-Rio. Carioca de muitas ascendências: camaronesa, angolana, portuguesa e espanhola. E-mail: alexandredossantos@me.com. Instagram: @alsantos72