Ao menos 18 municípios do Rio não aprovaram leis que autorizam privatização da Cedae

Em e-mail enviado a prefeitos, assessor especial de Wilson Witzel ameaça interromper o serviço público se concessão de água e esgoto não for aceita

Por Emanuel Alencar | ODS 6 • Publicada em 10 de junho de 2020 - 15:19 • Atualizada em 17 de junho de 2020 - 09:35

Mais da metade da população brasileira não tem acesso à coleta de esgoto. Foto Custódio Coimbra

A divulgação da consulta pública sobre a concessão de serviços de abastecimento de água e tratamento de esgotos sugere que o Palácio Guanabara botou o pé no acelerador para liquidar a fatura logo. Mas, dos 46 municípios fluminenses previstos nos blocos de privatização, ainda há ao menos 18 que não aprovaram em seus parlamentos a possibilidade de outorgarem ao Estado a competência de contratar concessionárias de saneamento básico. Todos do interior. O #Colabora apurou que vereadores de Miracema, Itaocara, Aperibé, Cambuci, Itaperuna, Bom Jesus, São Fidélis, São José de Ubá, Laje do Muriaé, Natividade, Porciúncula, Sapucaia, Santa Maria Madalena, Varre-Sai, Bom Jardim, Teresópolis, Macaé e Rio das Ostras não votaram mensagens neste sentido, a despeito de enormes pressões do governo Wilson Witzel.

A minuta do edital de alienação das ações da Cedae foi publicada no último dia 8. O governo estadual prevê investimentos de R$ 33,5 bilhões com a privatização da distribuição de água e tratamento de esgotos em 35 anos. A Cedae seguiria com captação, adução e tratamento de água no Guandu. O programa prevê cobertura de 90% de tratamento de esgotos em duas décadas, com a junção de cidades superavitárias e deficitárias nas operações num mesmo bloco, para dar equilíbrio.

Acionista majoritário da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae), o governo estadual não tem medido esforços para pressionar as cidades a aprovarem logo mensagens que possibilitem a concessão do saneamento em blocos, de acordo com modelagem apresentada pelo BNDES. No Estado, 28 cidades têm serviços ou concessões próprias, e estão de fora do programa. A primeira audiência pública para debater o modelo de concessão será realizada no dia 25 deste mês, quinta-feira, com início previsto às 10h da manhã, via plataforma de streaming.

Manifestantes protestam contra a venda da Cedae, no Centro do Rio. Foto de Alex Ribeiro/AGIF
Manifestantes protestam contra a venda da Cedae, no Centro do Rio. Foto de Alex Ribeiro/AGIF

Em março, o assessor especial do governo Marcio Garcia Liñares tratou de dar um ultimato aos prefeitos. Em mensagem, Liñares recomenda aos prefeitos de Macuco, Bruno Boaretto (PHS), e Santa Maria Madalena, Beto Verbicário (DEM), a aprovação da autorização para a concessão até 15 de abril, “como forma de garantir a continuidade do abastecimento da Cedae”. Na mensagem, em tom de ameaça, o policial civil é contundente: “Apelamos para que Vossa Excelência sensibilize sua Câmara para aprovação da lei”. Procurado pelo #Colabora, Verbicário disse, a princípio, que não tinha recebido a mensagem. Depois, não atendeu aos telefonemas.

Alguns prefeitos relutam em aceitar a concessão dos serviços à iniciativa privada. Em Teresópolis, na Região Serrana, o parlamento ainda não recebeu a mensagem do Executivo para discutir o assunto. A cidade padece há anos com um índice praticamente nulo de tratamento de esgotos.

“A entrega desse serviço ao particular irá, na verdade encarecer o serviço à população e não trará solução real e factível”, critica o presidente da Câmara de Teresópolis, Leonardo Vasconcellos (Democracia Cristã). “Precisamos é de investimento na Cedae. Aqui não vejo essa matéria sendo aprovada no escuro, não”.

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Na pequena Cambuci, com 15 mil moradores, os vereadores foram contrários à concessão, em votação no dia 14 de abril. Os efluentes coletados pelas redes existentes na zona urbana são destinados para fossas sépticas ou ainda sem tratamento algum para os córregos mais próximos.

“Há anos a Cedae vem sendo sucateada pelos mesmos que hoje querem vendê-la, causando enormes perdas à população. Querem transformar água em mercadoria”, protesta Sandro Alves dos Anjos, o Kalu (MDB), presidente da Câmara local e funcionário da Cedae.

Sindicato critica a pressão: ‘Absurdo’

Presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Purificação e Distribuição de Água e em Serviços de Esgotos de Niterói e Região (Sindágua-RJ), Ary Girota lamenta a chantagem feita pelo assessor de Witzel. Para ele, os municípios que não aceitam a alienação dos ativos da Cedae são “corajosos”.

“Quando um governo estadual manda um e-mail fazendo chantagem aos que não concordam com a privatização, temos um crime, um absurdo completo. As cidades que não aceitam o discurso fácil da privatização assumem posturas corajosas e republicanas”, diz.

O teor da mensagem do assessor de Witzel também assusta o advogado Wladimir Ribeiro, mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra. Para ele, trata-se de situação bastante peculiar.

“É um acionista majoritário da concessionária dizendo que vai mudar tudo e que vai embora se o prefeito não concordar com ele. Então o contrato de programa assinado pela Cedae com a prefeitura não vale? Imagine se o acionista da concessionária de energia elétrica ou de telefonia enviasse carta de mesmo teor para o presidente da República, dizendo que vai embora se não for atendido… Doutro lado, ela reconhece que o município tem o direito de escolher um substituto para a Cedae, ou seja, trata-se de uma renúncia ao contrato. Sem contar com os termos da carta, bastante autoritários do ponto de vista das relações interfederativas, porque o município possui autonomia, não é subordinado ao Estado”, comenta.

Decreto no meio da pandemia do coronavírus

No dia 24 de março, em meio à grave crise do coronavírus, o governador Witzel publicou o decreto 46.992, que instituiu a Comissão de Privatização da Cedae, mais um passo em direção a desestatização da companhia de águas e esgoto do Rio, garantia à adesão ao Regime de Recuperação Fiscal do Estado. Quatro dias depois, às 16h46m, Liñares enviou o e-mail ao prefeito de Macuco; dois minutos depois, a mesma mensagem seguiu para o prefeito de Santa Maria Madalena. Há relatos de que a missiva teria sido enviada a outros prefeitos.

No dia 25 de março, em debate transmitido ao vivo, o presidente da Cedae, Renato Espírito Santo, anunciou o corte de 80% dos trabalhadores após o leilão: “A empresa vai sofrer uma cisão, vai diminuir o seu tamanho, vamos sair de 5,6 mil empregados diretos para um número bem menor, cerca de 20% disso, por aí. Tem todo um ajuste que tem que ser feito”. Funcionários antigos reclamam que as decisões não são amparadas por estudo de impacto e planejamento.

‘Assessor estava apenas comunicando prazo’, diz governo

Em nota, o Palácio Guanabara informou que “o processo foi acelerado porque ações da Cedae foram dadas como garantia, para que o governo obtivesse uma linha de crédito do banco BNP Paribas. O assessor do governo estava apenas comunicando o prazo, um trâmite usual para a preparação de um plano com o porte da modelagem da concessão”.

Afirma ainda que “os municípios do interior foram envolvidos no debate. Da parte do governo, foram realizadas três grandes reuniões com a participação do Conselho Deliberativo da Região Metropolitana, que abarca 22 municípios, além de encontros, em separado, com grupos de municípios, levando em consideração a divisão por blocos apresentada na modelagem da concessão”. Acrescenta que “na modelagem apresentada na minuta do edital, todo o passivo atual da Cedae, inclusive o previdenciário, permanece com a empresa, que sofrerá uma reestruturação após o leilão”.

Emanuel Alencar

Jornalista formado em 2006 pela Universidade Federal Fluminense (UFF), trabalhou nos jornais O Fluminense, O Dia e O Globo, no qual ficou por oito anos cobrindo temas ligados ao meio ambiente. Editor de Conteúdo do Museu do Amanhã. Tem pós-graduação em Gestão Ambiental e cursa mestra em Engenharia Ambiental pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Apaixonado pela profissão, acredita que sempre haverá gente interessada em ouvir boas histórias.

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