ODS 1
Pesquisador da Unifesp desvenda ação analgésica de enzima do abacaxi
Descoberta pode ajudar a desenvolver novos tratamentos com a enzima encontrada na polpa e talo da fruta
Maria Fernanda Ziegler*
Velha conhecida da indústria farmacêutica, a bromelina – enzima encontrada no abacaxi – acaba de ter seu mecanismo de ação analgésica desvendado. Pesquisadores da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em estudo apoiado pela FAPESP , por meio de um Projeto Temático, descobriram que a bromelina é responsável pela liberação de encefalina – considerada uma morfina endógena – a partir de sua proteína precursora, a proencefalina, que também é encontrada na parede do intestino delgado.
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Veja o que já enviamosNo encéfalo, a liberação de encefalina a partir da proencefalina é bem conhecida pela ciência. Ela ocorre pela ação de proteases específicas – enzimas que quebram proteínas e peptídeos –presentes no tecido cerebral e é uma rota importante para o controle da dor. A encefalina age em receptores opioides, como a morfina ou a encefalina.“É uma questão que nos intrigava: como alguém que ingeria bromelina apresentava resposta analgésica. Sabe-se que essa enzima não pode entrar na circulação sanguínea, uma vez que isso provocaria um choque hipotensor violento, levando o indivíduo à morte [por isso não há administração intravenosa da bromelina para fins terapêuticos]. O efeito, portanto, teria que ocorrer por outro mecanismo, restrito à superfície do intestino”, disse Luiz Juliano, professor titular aposentado da Unifesp e um dos autores do artigo com resultados da pesquisa publicado na revista Science Direct.
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Juliano conta que há cerca de cinco anos descobriu-se que a proencefalina está presente em outros locais além do cérebro, entre eles o intestino. “Juntamos uma informação à outra e comprovamos com estudos a participação do conteúdo intestinal no controle da dor”, disse à Agência FAPESP. Os pesquisadores da Unifesp verificaram, a partir de testes em camundongos, que, ao ingerir a bromelina – encontrada na polpa, mas principalmente no talo do abacaxi –, a enzima libera encefalina, digerindo a proencefalina presente também na parede do intestino delgado. Dessa forma, a encefalina gerada no processo entra na corrente sanguínea e desempenha ação analgésica periférica.
A descoberta abre perspectivas para o estudo da interação entre o conteúdo enzimático do bolo alimentar (e da microflora intestinal) com a parede do intestino na liberação de substâncias bioativas.
Relação entre intestino e cérebro
Os efeitos analgésicos do abacaxi são conhecidos há séculos pelos indígenas nas Américas. Tanto que, conta-se, exemplares da fruta usada para a redução de dor e na cicatrização de ferimentos foram levados para a Europa pelos primeiros navegadores europeus que chegaram ao continente americano.
Séculos depois, verificou-se que a bromelina agia não apenas contra a dor, mas também tinha atividade anti-inflamatória e atuava na quebra de proteínas. Isso permitiu o desenvolvimento de diversos produtos a partir do abacaxi pelas indústrias farmacêutica e alimentícia, para fins digestivos, analgésicos, cicatrizantes ou para amaciar carnes.
A despeito do sucesso comercial, pouco se sabia sobre a relação dos efeitos analgésicos do abacaxi com seu papel na interface do intestino. As investigações feitas em camundongos pela equipe da Unifesp mostraram que a bromelina age na mucosa do intestino delgado liberando encefalina, que é absorvida e promove ação analgésica. “A encefalina gerada no intestino atua principalmente na periferia do organismo, onde pode ter propriedades anti-inflamatórias”, disse Juliano.
De acordo com o artigo publicado na revista Peptides, a administração oral de bromelina em camundongos reduziu os níveis de proencefalina em um segmento do intestino delgado (chamado de jejuno) e aumentou os níveis de encefalina circulante. Foi observada também redução na capacidade dos animais em sentir dor, com o efeito máximo detectado três horas após a administração oral de bromelina (extraída do talo do abacaxi) na dose de 3 mg/kg. “O curioso foi observar que há um limite. O efeito permanece até certa dose de bromelina e, depois, conforme a dose é aumentada, começa a diminuir até não ser mais possível identificar ação analgésica. Isso ocorre por causa da hidrólise da encefalina, provavelmente no caso de bromelinas comerciais, que não são puras e contêm outras proteases”, disse Juliano.
Para entender melhor essa relação, é preciso compreender como a bromelina decompõe a proencefalina. A bromelina do talo do abacaxi tem alta preferência para quebrar proteínas localizadas logo após sequências de pares de aminoácidos básicos arginina (R) e lisina (K). Por outro lado, a proencefalina contém cinco sequências de encefalina flanqueadas por pares desses aminoácidos. Após a hidrólise dos aminoácidos, a encefalina é liberada, o que foi confirmado a partir da síntese química de fragmentos da proencefalina tratados com bromelina.
De acordo com o professor Juliano, a preferência da bromelina pelos aminoácidos arginina e lisina, observada inicialmente em estudo de 1999, tem semelhanças com o mecanismo de ação da protease PC2, a principal enzima (convertase) que cliva proencefalina para gerar as encefalinas no cérebro. “Essa preferência da bromelina pela arginina e pela lisina faz com que ela funcione à semelhança das enzimas específicas no cérebro que geram a encefalina. Nossos estudos mostram que os efeitos de bromelina e morfina são semelhantes. O que não é de se estranhar, pois a morfina age nos mesmos receptores da encefalina. Porém, o neurotransmissor analgésico é produzido de forma endógena no nosso organismo”, disse Juliano.
Segundo o pesquisador, a bromelina pode ainda ser uma ferramenta útil para ampliar o entendimento entre a conexão intestino-cérebro. “Este trabalho não só explica o mecanismo de ação da bromelina como também nos instiga a examinar a interação do conteúdo intestinal com a parede do intestino, particularmente os elementos enzimáticos. Além dos alimentos, devemos atentar também para a microbiota e seus produtos, que seguramente geram enzimas proteolíticas. Essas podem resultar em respostas fisiológicas de alta relevância, tal como dor e inflamação, e também respostas imunológicas”, disse.
*Da Agência FAPESP
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