Nas vielas da Marcha da Maré

Cerca de cinco mil pessoas marcharam pelas ruas da Maré pedindo paz e uma vida mais digna. Foto Yasuyoshi Chiba/AFP

Até maio, 13 pessoas mortas, aulas suspensas 11 vezes e postos de saúde fechados por 17 dias, incluindo a campanha de vacinação

Por Adriana Pavlova | ODS 15Vida Sustentável • Publicada em 25 de maio de 2017 - 15:31 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 23:37

Cerca de cinco mil pessoas marcharam pelas ruas da Maré pedindo paz e uma vida mais digna. Foto Yasuyoshi Chiba/AFP
Cerca de cinco mil pessoas marcharam pelas ruas da Maré pedindo paz e uma vida mais digna. Foto Yasuyoshi Chiba/AFP
Cerca de cinco mil pessoas marcharam pelas ruas da Maré pedindo paz e uma vida mais digna. Foto Yasuyoshi Chiba/AFP

A imagem é histórica: exatamente na região mais perigosa do Complexo de Favelas da Maré, Zona Norte do Rio de Janeiro – conjunto de 16 comunidades onde só este ano já morreram 13 moradores vítimas de violência –  cerca de cinco mil pessoas se reúnem para pedir paz. Tem criança das escolas públicas segurando cartaz feito com todo capricho, tem parentes de vítimas também mostrando os rostos de seus amados que perderam a vida não muito longe dali, tem bailarino fazendo performance contra assassinatos, artistas de novelas da Globo levantando cartazes pedindo paz e celebrando a vida, jovens engajados vestindo camisetas contra a violência entregando flores brancas e muitos, muitos moradores ocupando um lugar que na maioria dos dias é temido por quem vai e vem entre as comunidades da Maré.

A violência da Maré é um problema da Maré, mas também da cidade. Temos que diminuir a segregação entre as favelas e a cidade. Enfrentar a violência e mostrar que é um assunto prioritário. A violência da favela não é produzida por seus moradores, não pode ser naturalizada.

Permanecer horas na tarde da quarta-feira, dia 24 de maio, nas esquinas da Rua Principal com a Vanildo Alves, divisa entre Baixa do Sapateiro, Nova Holanda e Nova Maré, foi um ato de resistência. O ápice da Marcha Contra a Violência na Maré, que havia começado duas horas antes, partindo de dois pontos diferentes da Maré, se deu ali, uma espécie de Faixa de Gaza, onde as fachadas dos prédios estão cravadas de balas devido à interminável guerra entre facções criminosas que disputam poder na região.

“O mais simbólico e importante é estar aqui, permanecer aqui. É para mostrar de uma maneira simbólica e concreta que não podemos aceitar as violências”, me disse Eliana Sousa Silva, diretora da ONG Redes de Desenvolvimento da Maré e personagem fundamental da grande articulação entre instituições locais responsáveis para a criação do “Fórum Basta de Violência! Uma outra Maré é possível”, em fevereiro deste ano, cujo primeiro grande ato público foi justamente a Marcha.

Se a proposta da Marcha desde sempre foi de chamar a atenção de autoridades e opinião pública para a violência diária que afeta os 140 mil moradores da Maré, mas que também diz respeito a todos que vivem na cidade, o ato foi um sucesso. Imprensa, secretários de governo, personalidades ligadas à luta pela paz, como Atila Roque (ex-Anistia Internacional e hoje na Fundação Ford), e Pedro Strozenberg, ouvidor da Defensoria Pública do Estado do Rio, marcharam juntos, respondendo a uma incrivelmente bem-construída campanha de mobilização nas redes sociais, como na página do Facebook forumbastadeviolencia. Um trabalho que envolveu, entre outros, muitos rostos famosos, como os de Patrícia Pillar, Mariana Ximenes, Camila Pitanga, Enrique Diaz, Mariana Lima, Caio Blat, que no dia da Marcha se materializaram ao lado dos próprios moradores da Maré. Um engajamento que, para quem estava na organização, acrescentou muito.

“Para o morador da favela que às vezes teme se manifestar ou se mobilizar, ver um rosto conhecido da televisão aqui, onde ele mora, do lado de sua casa, funciona como uma legitimação do movimento”, me disse uma amiga, ex-moradora da Maré que hoje trabalha num projeto de educação e arte na Lona Cultural Herbert Vianna, bem pertinho dali.

Crianças das escolas públicas da região põem flores nos buracos de bala das paredes. Foto Yasuyoshi Chiba/AFP
Crianças das escolas públicas da região põem flores nos buracos de bala das paredes. Foto Yasuyoshi Chiba/AFP

A Marcha que rodou as ruas de muitas das 16 comunidades da Maré, arrastando moradores enquanto ia cruzando as vielas, também serviu para apresentar aos de fora as entranhas de um território raramente conhecido por quem vive em outras áreas da cidade. Um território que, apesar de todas as violências diárias, já se transformou em símbolo da luta contra essas mesmas violências, dado o engajamento e a perseverança das instituições, organizações e associações da região. Um trabalho exemplar de luta por segurança pública que envolve mobilização de moradores através de campanhas, publicações, divulgação e circulação de informação.

Foi a partir de uma articulação nascida dentro da Maré que as muito comuns operações policiais noturnas dentro da favela estão proibidas desde o ano passado. Através de uma parceria com a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, uma liminar inédita garantiu em junho de 2016 a suspensão de operações noturnas com o objetivo de buscas em casas da Maré. Prevista pela Constituição, a proibição de busca domiciliar à noite comumente é desrespeitada em favelas. Hoje há um processo correndo na Justiça com o objetivo de firmar parâmetros jurídicos para as operações policiais nas favelas.

É a mesma luta pelo direito à segurança pública do morador da favela que em 2012 deu origem à campanha “Somos da Maré. Temos Direitos”, mostrando o que pode ser feito ou é proibido durante abordagens policiais. Em sua segunda edição, o projeto criado pelo Eixo de Segurança Pública da Redes de Desenvolvimento da Maré já visitou 47 mil casas das comunidades locais.

Desde 2016 também, o mesmo Eixo de Segurança Pública da Redes da Maré oferece plantões à população em dias de operação policial dentro da favela. Há um telefone à disposição e, caso o morador sinta necessidade, basta ligar e fazer sua reclamação. A partir do chamado, uma dupla de profissionais (muitas vezes, assistente social e advogado) dirige-se ao local para fazer uma mediação de conflitos, como arrombamento de casas ou violência física. O fato de ter profissionais especializados na área normalmente faz com que o tratamento dos policiais seja mais cordato.

Este projeto, batizado de Acompanhamento Permanente das Ações das Forças de Segurança Pública, também é a origem da primeira edição do “Boletim Direito à Segurança Pública na Maré”, lançado em 2017, com informações de 2016. No ano passado, aconteceram 33 operações policiais na Maré, com 17 mortes em decorrência de intervenção policial e 20 dias de atividades suspensas nos serviços públicos. Números que comparados com os dados de 2017 mostraram que só nos primeiros meses deste ano a situação já havia piorado muito. Até maio, 13 pessoas morreram, enquanto crianças e jovens perderam 11 dias de aula e os postos de saúde foram fechados em 17 dias, inclusive em dia de campanha de vacinação.

Números tão alarmantes que acabaram sendo o motor para a criação do Fórum Basta de Violência! Uma outra Maré é possível, que desde o seu início, em fevereiro, já revelou uma mobilização inédita, reunindo mais de dez ONGs e coletivos tão diversos como o Observatório de Favelas, o Luta Pela Paz, o Cineminha do Beco, o Coletivo Rock em Movimento, além de representantes das 16 associações de moradores locais. Uma discussão e organização potente que desde então passou a fazer encontros semanais na Escola Municipal Bahia, na Avenida Brasil, e que agora, com o sucesso da Marcha contra a Violência, não vai arrefecer a sua luta:

“É um processo de mobilização para uma questão que não é exclusiva da Maré. A violência da Maré é um problema da Maré, mas também da cidade. Temos que diminuir a segregação entre as favelas e a cidade. Enfrentar a violência e mostrar que é um assunto prioritário.  A violência da favela não é produzida por seus moradores, não pode ser naturalizada. Temos que prosseguir nesta campanha contra os homicídios, numa nova dinâmica de envolvimento da cidade e a população para a não aceitação desse alto índice de letalidade”, conclui Eliana Sousa Silva.

Adriana Pavlova

Trabalhou durante 13 anos no jornal O Globo, de onde saiu em 2005 para morar em São Paulo. Foi setorista de dança na Folha de S. Paulo de 2007 a 2010 e colaborou regularmente com as revistas Época São Paulo e Exame. De volta ao Rio, é crítica de dança do Globo desde 2013. Em 2015 tornou-se mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Escola de Comunicação da UFRJ.

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