Pelo direito (quase impossível) de consertar

Homem tenta reciclar uma televisão em um ferro-velho em Dhaka, Bangladesh. Foto Kazi Salahuddin Razu/NurPhoto via AFP

Brasil é o quinto maior produtor de lixo eletrônico do mundo. Descarte incorreto aumentou 49% nos últimos dez anos

Por Agostinho Vieira | ODS 6 • Publicada em 15 de outubro de 2023 - 13:27 • Atualizada em 21 de novembro de 2023 - 09:10

Homem tenta reciclar uma televisão em um ferro-velho em Dhaka, Bangladesh. Foto Kazi Salahuddin Razu/NurPhoto via AFP

Quantas vezes você já ouviu ou disse a frase “não vale a pena consertar, é melhor comprar um novo”? Por que será que isso acontece? Certamente não é porque os produtos novos estão mais baratos. O iPhone 15, que acaba de chegar ao mercado, não sai por menos de R$ 6.500,00. Já a versão mais básica do Samsung 23 está custando R$ 3.600,00. Aliás, até onde irão esses números? Como estará o mundo no dia do lançamento do iPhone 232 e do Samsung 467? Uma coisa é certa, estaremos cada vez mais atolados em lixo eletrônico. Uma pesquisa recente das Nações Unidas mostrou que, só na América Latina, o descarte incorreto de penduricalhos eletrônicos aumentou 49% nos últimos dez anos. No Brasil, que é o quinto maior produtor de lixo eletrônico do mundo, o descarte irregular chegou a 2 milhões de toneladas.

Bom, parece simples, é só fazer uma boa campanha de conscientização sobre o descarte correto de lixo eletrônico que o problema estará resolvido. Certo? Errado. Descartar corretamente é bom, é importante. A Apple e a Samsung quando lançaram os seus novos aparelhos fizeram questão de anunciar a criação de pontos de descarte sustentável e os tradicionais descontos para quem trocasse o celular velho por um novo. Legal, né? Será? Isso é campanha de conscientização ou ação de marketing?

Imagine, então, se a Apple fizesse uma campanha na televisão ou nos jornais dizendo: “Não compre esse iPhone 15”. Loucura? Não. Foi exatamente isso que a Patagonia, uma das maiores lojas de roupa esportiva do mundo, fez em pleno Black Friday. Embaixo da foto de uma das suas jaquetas mais famosas, dizia: “Não compre o que não precisa. Nós te ajudamos a consertar o seu equipamento”. Isso sim é campanha de conscientização. Conheça os detalhes desta história no link: “Patagonia, um grave caso de coerência explícita”.

Agora, tente consertar um Iphone ou um Samsung. Para começar, são pouquíssimas as lojas de assistência técnica autorizadas. Quando existem, os preços são extorsivos. E, muitas vezes, não existe a peça tal, não fabrica mais, tem que vir não sei de onde etc. O importante é entender que isso não é por acaso. Existe um planejamento muito bem pensado para que o seu celular ou outro aparelho eletrônico qualquer comece a dar problemas depois de um ou dois anos de uso. O nome dessa prática é “obsolescência programada”, e é importante falar sobre ela neste 14 de outubro, Dia Internacional do Lixo Eletrônico. Nos Estados Unidos, uma entidade de defesa dos consumidores estimou que se todos os americanos ficassem com o seus smartphones por apenas mais um ano, as emissões de CO² evitadas seriam equivalentes à retirada de 636 mil carros da rua.

Um monte de lixo eletrônico é encontrado durante uma inspeção na Orrada Factory Land, uma usina de reciclagem de lixo no distrito de Lam Luk Ka, na Tailândia. Foto Apichit Jinakul/Bangkok Post via AFP
Um monte de lixo eletrônico é encontrado durante uma inspeção na Orrada Factory Land, uma usina de reciclagem de lixo no distrito de Lam Luk Ka, na Tailândia. Foto Apichit Jinakul/Bangkok Post via AFP

Por isso, crescem cada vez mais nos EUA e na Europa os movimentos conhecidos como “right to repair” ou o “direito ao conserto”. É isso mesmo, trata-se de um direito. Se você pagou, tem o direito de manter ou tentar manter o produto pelo tempo que desejar. Consertar quantas vezes quiser. Para isso, no entanto, é preciso que as peças estejam disponíveis, que os preços sejam justos, que as lojas de assistência técnica, autorizadas ou não, possam fazer o seu trabalho.

Uma reportagem da Bloomberg revelou que, até 2021, vinte e sete estados americanos chegaram a discutir tais projetos de lei, mas metade deles desistiu de colocar em votação devido ao lobby fortíssimo de empresas de tecnologia como a Apple, a Microsoft, o Google e a Amazon. O argumento fajuto que eles normalmente usam é que se terceiros não autorizados tiverem acesso aos softwares ou peças dos produtos podem colocar em risco a segurança dos consumidores e dos negócios, como mostra a coluna de Natália Viana, na Agência Pública.

Outro produto que vem crescendo muito no Brasil e aumentando a pilha (com trocadilho) de lixo eletrônico é a maquininha de cartão de crédito. Com os crescimento da economia informal, ela aparece na mão de qualquer comerciante, não importa o tamanho. Dados do Instituto de Defesa do Consumidor mostram que, só no ano de 2022, foram vendidas 22 milhões de unidades, um crescimento de 494% em relação a 2012.  Considerando as 95 milhões de maquininhas distribuídas nos últimos dez anos no Brasil, são mais de 28 mil toneladas de lixo eletrônico.

Segundo o Monitor Global de Lixo Eletrônico, da ONU, o mundo gera mais de 50 milhões de toneladas deste tipo de lixo por ano – o equivalente ao peso de 265 baleias-azuis em celulares, notebooks, eletrodomésticos e outras peças eletrônicas descartadas –, na maioria das vezes, de forma incorreta. Por serem feitos com alta tecnologia, esses resíduos podem conter substâncias tóxicas e metais pesados, como o chumbo, mercúrio, cromo e cádmio por exemplo, capazes de contaminar o solo, a água e os alimentos – impactando tanto o ambiente quanto a saúde humana.

Agostinho Vieira

Formado em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Foi repórter de Cidade e de Política, editor, editor-executivo e diretor executivo do jornal O Globo. Também foi diretor do Sistema Globo de Rádio e da Rádio CBN. Ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo, em 1994, e dois prêmios da Society of Newspaper Design, em 1998 e 1999. Tem pós-graduação em Gestão de Negócios pelo Insead (Instituto Europeu de Administração de Negócios) e em Gestão Ambiental pela Coppe/UFRJ. É um dos criadores do Projeto #Colabora.

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