Diário da Covid-19: BH, a grande cidade que menos sofre com o coronavírus

Membro de uma equipe de limpeza ajuda a desinfetar o centro histórico de Ouro Preto. Foto Douglas Magno/AFP

Em pouco mais de dois meses de pandemia, capital mineira apresentou 1.068 casos (0,5% dos registros no Brasil) e 28 mortes (0,2% do total do país)

Por José Eustáquio Diniz Alves | ODS 3 • Publicada em 15 de maio de 2020 - 09:53 • Atualizada em 28 de julho de 2020 - 11:29

Membro de uma equipe de limpeza ajuda a desinfetar o centro histórico de Ouro Preto. Foto Douglas Magno/AFP

A pandemia do novo coronavírus já atinge números exponenciais, com mais de 4,5 milhões de pessoas infectadas e mais de 300 mil mortes, no mundo, conforme dados do dia 14 de maio. No Brasil – que conta com 2,7% da população do planeta – os números ultrapassaram a casa dos 200 mil infectados (4,3% do total mundial) e encostaram nas 14 mil mortes (4,4% do total global). O sofrimento provocado por um simples vírus tem sido amplo, geral e irrestrito. Contudo, alguns lugares são menos impactados do que outros.

As duas maiores cidades do Brasil estão passando por momentos difíceis. No dia 14 de maio, o município de São Paulo – com 12,3 milhões de habitantes (5,8% da população nacional) – apresentou 31,9 mil casos (15,7% do total nacional) e 2,6 mil mortes (18,6% do total nacional). O município do Rio de Janeiro – com 6,7 milhões de habitantes (3,2% da população brasileira) – apresentou 11,3 mil casos (5,6% do total nacional) e 1,5 mil mortes (10,8% do total nacional).

Todavia, em sentido oposto, a capital de Minas Gerais é uma das cidades que conseguiram evitar um crescimento catastrófico da epidemia. No dia 14 de maio, Belo Horizonte (BH) – com 2,5 milhões de habitantes (1,2% do total nacional) – apresentou 1.068 casos (0,5% dos casos brasileiros) e 28 mortes (0,2% do total brasileiro).

Com um número baixo de pacientes não houve uma pressão enorme sobre o sistema de saúde da capital mineira e o número de mortes se manteve entre os mais baixos do país, para cidades proporcionalmente do tamanho e da centralidade de BH.

Bombeiros de Minas Gerais participam de um treinamento de prevenção para o combate ao coronavírus. Foto Douglas Magno/AFP
Bombeiros de Minas Gerais participam de um treinamento de prevenção para o combate ao coronavírus. Foto Douglas Magno/AFP

Como BH venceu a Gripe Espanhola em 1918

Belo Horizonte nasceu de forma planejada em 12 de dezembro de 1897 e em 122 anos de vida já está na sua segunda grande pandemia, pois viveu um grande drama no início do século XX.

A Gripe Espanhola, de 1918, foi a pandemia mais letal da era moderna e matou cerca de 50 milhões de pessoas em todo o mundo, numa época em que a população mundial era de menos de 2 bilhões de habitantes e o Brasil tinha cerca de 30 milhões de habitantes. Segundo relatos históricos, a gripe espanhola chegou ao Rio de Janeiro em meados de setembro de 1918, por meio de tripulantes que desembarcaram de navios na Praça Mauá.

Em menos de um mês já tinha se tornado uma calamidade nacional, tendo a cidade do Rio de Janeiro, como epicentro da pandemia. Segundo cálculos da época, a capital federal registrou 15 mil das 35 mil mortes que ocorreram no Brasil e teve dois terços de sua população (de cerca de 1 milhão de habitantes) contaminada. Via o porto de Santos e o Porto do Rio de Janeiro, a gripe chegou à São Paulo e matou algo em torno de 5 mil paulistanos até o final de 1918.

Numa época em que não existia voos entre os continentes e a globalização não tinha as dimensões atuais, o estado de Minas Gerais e, particularmente, Belo Horizonte – tão longe do mar – ficaram menos expostos à pandemia do que as cidades litorâneas.

Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa

A historiadora Anny Jackeline Silveira, autora do livro “A influenza espanhola e a cidade planejada – Belo Horizonte, 1918”, diz que a epidemia chegou via o trem noturno que ligava BH ao Rio e deixou 2 mil pessoas infectadas, entre os cerca de 50 mil habitantes da capital mineira. Incialmente a jovem cidade interiorana enfrentou a pandemia, entre outubro e dezembro de 1918, com descrença e incredulidade.  Mas rapidamente a cidade se organizou e houve uma interação entre a sociedade civil e o Poder Público para controlar a propagação do contágio e as vítimas fatais.

Segundo a renomada professora de história da UFMG, Heloísa Starling, o avanço da pandemia uniu a cidade de BH. A Faculdade de Medicina se transformou em hospital provisório com 112 leitos e nove enfermarias, com ação decisiva de professores e estudantes A Escola de Enfermagem Carlos Chagas idem. O prefeito Vaz de Mello, por sua vez, mandou executar desinfecções diárias nos bondes elétricos e endureceu de vez as medidas para evitar o contágio: proibiu aglomerações nas ruas e nos locais públicos, incluindo as romarias ao cemitério do Bonfim, no dia de Finados que se aproximava. A Igreja Católica cancelou aulas de catecismos e encontros de fiéis e engajou padres e associações religiosas na coleta e distribuição de alimentos, auxílio financeiro e remédios e na divulgação das medidas preventivas do contágio.

Em 1918, Belo Horizonte experimentou o tempo da peste e venceu. Heloísa Starling conclui dizendo “Os moradores de Belo Horizonte souberam manejar a força desse afeto. Afinal, criaram uma série de ações que, no conjunto, alcançaram a todos. A gripe espanhola durou três meses”. Esta história ficou esquecida no tempo, mas hoje em dia é lembrada diante de uma nova ameaça que atinge BH, o Brasil e o mundo.

Minas Gerais e Belo Horizonte diante da covid-19

O primeiro caso da pandemia do novo coronavírus em BH foi notificado no dia 8 de março (Dia Internacional da Mulher). Até meados de março pouco foi feito para evitar a propagação do contágio. Mas as primeiras medidas foram tomadas em meados do mês, quando grande parte da população entrou em quarentena. A primeira morte aconteceu no dia 30 de março.

Para entender as medidas adotadas pelo governo de MG, recorremos ao material produzido em uma parceria entre a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e o jornal Nexo, quando foram elaborados 27 textos curtos, sintéticos e objetivos, para avaliar as medidas tomadas contra a Covid-19 nos 26 estados e no DF. O texto sobre Minas Gerais foi elaborado pelos cientistas políticos Thiago Silame e Helga do Nascimento de Almeida, da UFMG.

Eles relatam que em meados de março o governo do estado decretou situação de emergência em saúde pública e organizou comitês em duas frentes: saúde e economia. No dia 16 de março foi instituído o Comitê Gestor do Plano de Prevenção e Contingenciamento em Saúde da Covid-19; no dia seguinte, o Comitê de Crise para a Supervisão e Monitoramento dos Impactos da Covid-19 e em 25 de março, o Comitê Extraordinário Gestor de Ações de Recuperação Fiscal, Econômica e Financeira do Estado.

Outras medidas relacionadas à tentativa de proteção da economia foram decretadas: atualização do Plano de Contingenciamento de Gastos; abertura de crédito especial ao Orçamento Fiscal do Estado em favor das unidades orçamentárias e de créditos suplementares em favor do Fundo Estadual de Proteção e Defesa ao Consumidor e do Fundo Especial do Ministério Público do Estado.

Em relação às medidas de proteção social aos mineiros em vulnerabilidade, foram criados o Conselho de Solidariedade para Combate à Covid-19 e aos seus Efeitos Sociais e um benefício destinado à prestação de assistência alimentar às famílias de estudantes matriculados na rede pública. Em 17 de março foi confirmado pela Secretaria de Saúde mineira o primeiro caso de contaminação comunitária. No dia 20 de março, o governo de Minas Gerais reconheceu o estado de calamidade pública. A partir dessa data definiu-se o fechamento do comércio em todas as cidades do estado, aulas em instituições educacionais públicas e privadas foram suspensas e o transporte intermunicipal foi reduzido à metade.

Todas estas medidas foram importantes para conter a explosão dos casos da covid-19. Contudo, no dia 23 de abril o governador Romeu Zema lançou o programa “Minas Consciente – Retomando a economia do jeito certo” com orientações de procedimentos para municípios que decidirem abandonar o isolamento social, demonstrando seu alinhamento com as recomendações orientadas pelo presidente Bolsonaro.

Mas as orientações do governador entraram em rota de colisão com as orientações do prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD). Ainda segundo os cientistas políticos Thiago e Helga, o embate entre o governador do estado e o prefeito da capital gira em torno da adoção de medidas mais ou menos restritivas de circulação de pessoas e do isolamento social. Na prática, as medidas da prefeitura prevaleceram sobre as novas orientações do governo estadual.

O fato é que, desde o início, a população de BH se convenceu da gravidade da situação e, em sua grande maioria, participou dos esforços para implementar o isolamento social. O prefeito da capital mineira soube ler a demanda dos moradores e foi firme na implementação das medidas de prevenção. O ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, em entrevista no dia 09 de maio, disse que a condução do prefeito Alexandre Kalil no combate ao coronavírus foi um dos motivos que levou a capital mineira a contabilizar um número menor de casos em comparação com outras grandes cidades do país.

Coeficiente de incidência e coeficiente de mortalidade nas capitais brasileiras

Os indicadores mais usados para avaliar o impacto da pandemia nos municípios são os coeficientes de incidência e de mortalidade, que ponderam o número de casos e de mortes pela dimensão populacional. O gráfico abaixo apresenta o número de casos por milhão de habitantes, para o mundo, o Brasil e as 27 capitais estaduais (incluindo DF).

No mundo existem 556 pessoas infectadas por milhão de habitantes e no Brasil 845 casos por milhão. Nota-se que Fortaleza é a capital com o maior coeficiente de incidência, tendo 4.677 casos por milhão, valor 8 vezes superior à média mundial e mais de 5 vezes a média brasileira. Recife e São Luís são outras capitais da região Nordeste com coeficiente de incidência acima de 4 mil casos por milhão. Macapá, Manaus e Rio Branco – todas na região Norte – possuem coeficientes acima de 3 mil casos por milhão de habitantes.

Abaixo da média mundial estão BH (a única da região Sudeste e a única com mais de 2 milhões de habitantes) e Goiânia, Porto Alegre, Cuiabá, Curitiba e Campo Grande das regiões Sul e Centro-Oeste.

O gráfico abaixo apresenta o número de mortes por milhão de habitantes, para o mundo, o Brasil e as 27 capitais estaduais (incluindo DF). No mundo, ocorreram até dia 12/05, 38 mortes por milhão de habitantes e no Brasil foram 59 mortes por milhão.

Nota-se que Fortaleza é a capital com o maior coeficiente de mortalidade, tendo 356 mortes por milhão de habitantes, valor 9 vezes superior à média mundial e mais de 6 vezes a média brasileira. Belém com 333 mortes por milhão e São Luís com 306 mortes por milhão possuem coeficientes na casa de 3 centenas. Recife também se destaca com 273 mortes por milhão. E as megalópoles São Paulo e Rio de Janeiro estão com coeficientes bem elevados, respectivamente, 196 e 190 mortes por milhão.

Com os menores valores do gráfico estão as capitais da região Sul, Curitiba (15 por milhão), Porto Alegre (13 por milhão) e Florianópolis (12 por milhão), além de BH (10 por milhão), Palmas (7 por milhão), Campo Grande (4 por milhão) e com o menor valor Cuiabá com 3 mortes por milhão de habitantes.

Para ilustrar a velocidade do crescimento da epidemia, o gráfico abaixo mostra o crescimento médio geométrico diário do número de casos e de óbitos nas dez maiores capitais do país entre os dias 01 de abril a 12 de maio. Nestes 42 dias, o Brasil apresentou crescimento diário de 9,8% das mortes e de 8,1% dos casos. Acima destes valores estavam Manaus com (15,1% dos óbitos e 9,4% dos casos), Fortaleza (12,8% e 8,5%), Recife (11,3% e 12%), Salvador (10,7% e 8,1%) e Rio de Janeiro (10,4% e 6,7%). Abaixo da média nacional estavam Curitiba, Goiânia, São Paulo, Brasília e, com menores valores, Belo Horizonte (6,3% dos óbitos e 4% dos casos). O ritmo brasileiro é bem superior ao ritmo da média mundial.

Todos estes dados mostram que Belo Horizonte tem conseguido evitar uma explosão de casos e de mortes pela covid-19 e o sistema de saúde da capital mineira não entrou em colapso como em outras capitais. Inclusive existem pessoas de outras localidades recorrendo à disponibilidade hospitalar mineira.

Contudo, cabe ressaltar que toda a análise acima é feita com dados oficiais do Ministério da Saúde e sabemos que existem muitas subnotificações dos casos e das mortes tanto em BH quanto nas demais capitais e cidades do país. Evidentemente, é difícil medir as omissões e os erros cometidos neste processo. Mas uma suposição razoável é que as subnotificações de Minas Gerais e de sua capital estão aproximadamente no mesmo nível da média nacional e estadual, o que tornaria possível fazer a comparação entre as 27 capitais do país com razoável grau de aceitabilidade.

O fato é que existem algumas capitais que sofrem menos com a pandemia e se prepararam melhor para enfrentá-la, como as capitais da região Sul, as capitais da região Centro-Oeste e, também, Belo Horizonte. Enquanto a maioria das capitais do Norte e Nordeste e, também, as duas megalópoles brasileiras estão sofrendo mais com a pandemia do novo coronavírus. As desigualdades são evidentes. Sem embargo, mais estudos precisam ser realizados para entender todas as facetas deste processo.

Frase do dia 15 de maio de 2020

“Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa”

João Guimarães Rosa (1908-1967)

José Eustáquio Diniz Alves

José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.

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