Os perdedores no jogo da cidadania

A partir da esquerda, Filipe Luis, Willian Arão, Diego Alves, Bolsonaro, Marcos Braz, Gabigol e Diego: apoio. Reprodução do Twitter

Craques rubro-negros viram risonhos garotos-propaganda do presidente, na contramão do aumento da consciência dos atletas mundo afora

Por Aydano André Motta | ODS 16 • Publicada em 23 de janeiro de 2021 - 19:27 • Atualizada em 27 de junho de 2022 - 18:26

A partir da esquerda, Filipe Luis, Willian Arão, Diego Alves, Bolsonaro, Marcos Braz, Gabigol e Diego: apoio. Reprodução do Twitter

No país que leva uma goleada do coronavírus, os ídolos do time mais popular – e rico – do Brasil dão-se ao desfrute de um convescote sorridente e público com o protagonista da tragédia. No encontro obsceno, se oferecem ao político acossado pela popularidade cadente. Milionários da bola, não enxergam que o jogo virou – e ganha quem tem consciência e, sobretudo, responsabilidade social.

É o tempo de Lebron James, Lewis Hamilton e sua luta antirracista; da vigilante solidariedade de Richarlison; da goleada de empoderamento de Megan Rapinoe. Mas os jogadores do Flamengo escolhem virar as costas à vida real, para um encontro com o capitão da covid-19. E acham a maior graça.

Em plena tarde escaldante da sexta-feira de janeiro, Jair Bolsonaro deu um bico no trabalho para visitar a delegação rubro-negra, aproveitando-se da estada do time em Brasília. Deixou de lado a vacina que não chega, os mortos que se multiplicam, a floresta que arde, a economia que não anda, para visitar jogadores felizes com uma vitória na véspera. Parece surrealista – mas o surrealismo anda levando de 7 a 1 da realidade.

O esquema de jogo se explica pelo diagnóstico do Datafolha, que constatou o esfarelamento da renitente popularidade do presidencial. A sufocante tragédia de Manaus, as trapalhadas na vacina e, sempre ela, a economia roeram um pedaço do prestígio presidencial. Bolsonaro acusa o golpe no primeiro aperto – e lá foi ele, em busca de um refúgio.

Emulou um de seus ídolos, o general-ditador Emílio Medici, que nos anos 1970 posava, radinho de pilha no ouvido, na tribuna do Maracanã diante do mesmo Flamengo, enquanto opositores da ditadura militar eram seviciados nos porões. Marketing político à antiga é a tática do capitão.

Para ele, jogo jogado. Lamentáveis são os jogadores – nos vídeos que circulam nas redes sociais, aparecem Filipe Luis, Diego Alves, Gabigol, Willian Arão, Pedro, Diego, Bruno Henrique e um empolgado Rogério Ceni, técnico da equipe, que cruza a imagem para esticar a mão aos visitantes, oferecido como político do Centrão. Aparecem ainda integrantes da comissão técnica, uniformizados, e o sorridente Marcos Braz, cartola que arrendou o prestígio futebolístico para se eleger vereador no Rio. Os símbolos do clube emolduram as cenas.

Em todas elas, alias, não há uma máscara sequer. Todo mundo de cara desavergonhadamente limpa, com a pandemia bombando. Os craques não postaram os registros em suas redes sociais, tampouco o clube. Mas o estrago está feito. Para boa parte da torcida, o evento vespertino ofuscou a recuperação da equipe no Campeonato Brasileiro.

“Enquanto em uma das cidades mais rubro-negras do Brasil, Manaus, falta até oxigênio aos pacientes — com criminosa contribuição do governo Bolsonaro e sua política negacionista para o enfrentamento do coronavírus -, causam assombro e indignação as imagens registradas hoje durante o treino do Flamengo em Brasília”, atacou o coletivo Flamengo da Gente.

Ofende a sucessão de imagens da conversa amestrada dos craques rubro-negros com o presidente dos esqueletos no armário. Nos diálogos, nem uma pergunta sobre a pandemia, questionamento sobre Manaus nem menção à vacina. Apenas a hospitalidade alienada a alguém em busca da popularidade alheia.

Jogadores de futebol – especialmente os brasileiros – precisam rasgar a fantasia de crianças grandes e virarem cidadãos, usando suas imagens poderosas a serviço do bem-estar social. Pouco importam preferências políticas, opções ideológicas, escolhas eleitorais. Ao se deixarem filmar com políticos ou outros caronas, os atletas avalizam posturas, atitudes, trajetórias.

As lições se multiplicam nos últimos tempos. Em 2017, quando se sagraram campeões da NBA, os jogadores e o técnico do Golden State Warriors recusaram-se a visitar o então presidente dos EUA Donald Trump, evento protocolar por lá. Lebron James bateu no republicano negacionista várias vezes nas redes sociais, sem negociar suas convicções. Na última temporada, liderou os companheiros na campanha “Vote”, de incentivo aos eleitores no país onde o voto é facultativo. Antes dele, Megan Rapinoe, a melhor jogadora de futebol do mundo, também garantiu vaga de titular na seleção dos craques cidadãos. Na Fórmula 1, o multicampeão Lewis Hamilton enfrentou os cartolas da categoria em nome de sua convicção antirracista.

Mesmo entre os brasileiros, há (poucos) exemplos. Richarlison, o capixaba revelado pelo América-MG que hoje brilha no Everton, da Inglaterra, ensina, aos 23 anos, como muito marmanjo deve proceder. Sensível aos inúmeros dramas sociais de seu país, divulga campanhas humanitárias e dedica parte de seus ganhos a ações solidárias.

E o Flamengo? Ao aceitar a visita no meio da jornada de trabalho dos seus atletas, acumula mais um capítulo na proximidade com a extrema-direita, desmoralizando o item estatutário de que não tem preferência política.

A covid-19 deveria ser um trauma para a instituição que perdeu um funcionário com quatro décadas de clube, o massagista Jorge Luiz Domingos, o Jorginho. Quase todos os jogadores das imagens com Bolsonaro padeceram no surto que varreu o elenco no meio da temporada, ainda em 2020. Nada disso foi lembrado no baile da sexta-feira.

Surpresa zero, para o clube que apostou tudo na gestão glacial da maior tragédia de sua história. Quase dois anos atrás, dez meninos foram incinerados vivos num contêiner no Ninho do Urubu, o centro de treinamento rubro-negro, na Zona Oeste carioca. Quando as chamas se apagaram, os cartolas aferraram-se ao código frio das contingências corporativas e, desde então, postergam processos, apertam o torniquete das negociações com as famílias e evitam menções e homenagens aos adolescentes martirizados. Optam pela proximidade da morte – como o presidente recebido na tarde da sexta.

Cartolas e políticos são assim mesmo – mas os atletas precisam aprender que o jogo virou. O esporte está, enfim, mostrando cartão vermelho à alienação, o que torna ainda mais anacrônica a cena risonha do treino rubro-negro.

Maior derrota.

Aydano André Motta

Niteroiense, Aydano é jornalista desde 1986. Especializou-se na cobertura de Cidade, em veículos como “Jornal do Brasil”, “O Dia”, “O Globo”, “Veja” e “Istoé”. Comentarista do canal SporTV. Conquistou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2012. Pesquisador de carnaval, é autor de “Maravilhosa e soberana – Histórias da Beija-Flor” e “Onze mulheres incríveis do carnaval carioca”, da coleção Cadernos de Samba (Verso Brasil). Escreveu o roteiro do documentário “Mulatas! Um tufão nos quadris”. E-mail: aydanoandre@gmail.com. Escrevam!

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2 comentários “Os perdedores no jogo da cidadania

  1. Douglas Esterce disse:

    o que esperar de um bando de peladeiros milionários ? algum deles vai questionar o sujeito sobre manaus ou porque o pais esta nessa? e o pior a maioria que veio da pobreza ,da comunidade e sem nenhuma empatia pelos outros ,hj esses são os heróis do pais e vemos o que o pais se tornou ,amebas fc

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