Lideranças indígenas querem indicar nome para Ministério dos Povos Originários

Grupo de indígenas se manifesta em frente ao STF contra a mudança nas regras de demarcação do territórios. Foto Mateus Bonomi/AGIF via AFP

Sonia Guajajara e Aylton Krenak fazem parte da bolsa de apostas, mas Articulação dos Povos Indígenas do Brasil espera discutir o tema com o novo governo

Por Amelia Gonzalez | ODS 15ODS 16 • Publicada em 9 de novembro de 2022 - 14:40 • Atualizada em 25 de novembro de 2023 - 20:10

Grupo de indígenas se manifesta em frente ao STF contra a mudança nas regras de demarcação do territórios. Foto Mateus Bonomi/AGIF via AFP

Todas as vezes que o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, durante a campanha, elevava a voz para garantir que em seu governo será criado um ministério para os Povos Originários, a plateia vinha abaixo de tanta empolgação. E os indígenas brasileiros ouviam atentos. Afinal, são palavras de branco.  E, a julgar pelo que escreve o xamã yanomami David Kopenawa no livro “A Queda do Céu” (Ed. Companhia das Letras), os indígenas têm “memória longa e forte”. Desde muito pequeno, Kopenawa e todos os seus parentes aprenderam a temer os brancos. Um trecho do primeiro capítulo do livro, escrito por Bruce Albert e publicado em 2010, dá o tom desse temor:

“Eles realmente me apavoravam! Eu tinha medo até da luz que saía de suas lanternas. Mas temia ainda mais o ronco de seus motores, as vozes de seus rádios e os estampidos de suas espingardas”.

Leu essa? No caminho da COP das contradições

Hoje os tempos são outros, é claro. A marca da destruição de suas terras pelos brancos continua, implacável: de janeiro a setembro deste ano, foram derrubados 9.069 km2 de floresta, mostram dados do Sistema de Alerta de Desmatamento. Mas os indígenas se abrem ao diálogo com os brancos. Uma demonstração disso é que, associados nacionalmente à Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), trinta indígenas estarão na Conferência da ONU sobre o Clima, a COP27, em Sharm-el Sheikh, no Egito, para onde viajará também o presidente Lula na semana de 14 a 18 de novembro.

Circulam notícias de que o presidente eleito vai anunciar, durante a COP, quem estará à frente do novo Ministério dos Povos Originários. E, como não podia deixar de ser, alguns nomes já são apontados, como o da deputada federal indígena Sonia Guajajara (PSOL) ou do xamã Aylton Krenak, outro destacado líder e pensador indígena. A Apib, no entanto, se reserva. Segundo o coordenador executivo da entidade, Dinamam Tuxá, que viajou para o Egito no último fim de semana: “Nós entendemos que essa indicação vai partir do movimento indígena”:

“Não será uma indicação partidária, mas do próprio movimento indígena. Eu estive há pouco com a Sonia Guajajara e ela me disse que não houve nenhum contato oficial e reafirmou que essa indicação vai partir do movimento indígena”, disse ele.

Se isto vai acontecer ou não, só o tempo dirá. Mas, seja como for, a entidade também ainda está estudando um perfil adequado para estar à frente do ministério que vai ter, segundo Dinamam, “um simbolismo político muito grande”.

“Ficamos felizes, claro, significa muito para os indígenas. Temos a Funai (Fundação Nacional do Índio), a Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena), mas nenhum órgão vai ter um simbolismo político tão grande quanto esse ministério, se porventura for criado. Não sabemos ainda como serão as diretrizes, o que ele vai compreender em termos de aplicação de políticas públicas. Mas afirmamos que a Funai e a Cesai têm que permanecer onde estão, no Ministério da Justiça e no Ministério da Saúde. Precisamos compreender ainda a questão orçamentária, a missão”, afirma Dinamam.

Abertura do Brazil Climate Action Hub na COP27: debate sobre mulheres na ação climática (Foto: Eduardo Carvalho / Brazil Hub)
Abertura do Brazil Climate Action Hub na COP27: debate sobre mulheres na ação climática (Foto: Eduardo Carvalho / Brazil Hub)

Acima de tudo, a criação do novo Ministério vai colaborar para quebrar o mito de que os indígenas são incapazes e não contribuem para a política ou a economia brasileira.

“Ocupando esse cargo, nós vamos quebrar muitos paradigmas principalmente na estrutura do estado e no racismo institucional. Porque nós vamos ter uma estrutura, de fato, criada pelos povos indígenas, ocupada por indígena, dentro do orçamento, mostrando nossa capacidade técnica também de estar à frente de um ministério. Simbolicamente é muito significativo para nós”, disse Dinamam.

Vale a pena lembrar alguns dados que corroboram o que diz a Apib. As terras indígenas são as áreas com maior biodiversidade e com vegetação mais preservadas:  o resultado do cruzamento de dados realizado pela entidade em 2022, em parceria com o Instituto de Pesquisa Ambiental do Amazonas (Ipam), com dados do MapBiomas, aponta que, no Brasil, 29% do território ao redor das Terras Indígenas (Tis) estão desmatados, enquanto dentro delas o desmatamento é de apenas 2%.

Não à toa, um relatório divulgado em 2018 pela Relatora Especial das Nações Unidas para os Povos Indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, foi categórico: os indígenas devem ser vistos como “gestores efetivos de biodiversidade e conservação” e “guardiões primários da maioria das florestas tropicais remanescentes do mundo e dos hotspots de biodiversidade”.

Dinamam lembra que o governo Bolsonaro, derrotado nas urnas no dia 30 de outubro, “estrangulou a política de fiscalização das Tis no Brasil”. O papel do novo ministério seria, então, o de trazer para a população brasileira a contribuição que os indígenas dão para aplacar o aquecimento global, já que 83% da biodiversidade mundial estão em terras indígenas:

“Este dado mostra que os indígenas têm uma importância enorme no combate ao aquecimento global e do risco climático. Vai ajudar também a trazer o conhecimento tradicional para dentro do campo político e para dentro da opinião pública, porque a opinião pública precisa saber o que nós estamos fazendo hoje”, afirma Dinamam.

Como sabemos, os chefes de nações estarão reunidos no Egito para, novamente, tentarem refletir sobre os grandes desafios civilizatórios. Um desses desafios é uma pergunta de cem milhões de dólares: “É possível desenvolver e preservar ao mesmo tempo”? Dinamam tem essa resposta pronta: sim, é possível, mas desde que o desenvolvimento leve em conta o bem-estar das pessoas.

“Tudo que é demais, é veneno. Sabemos que o desenvolvimento gera impacto, que o capitalismo gera impacto. O que nós podemos dialogar é como diminuir esse impacto. Nós entendemos que o Brasil precisa se desenvolver, precisa de energia. Mas se existe energia limpa, por que não se aplica energia limpa? Se existem modelos que podem amenizar os impactos, são para serem aplicados. O desenvolvimento precisa ser pensado para as pessoas. Quando se constrói uma hidrelétrica, por exemplo, é preciso saber quais benefícios ela vai trazer e quais impactos ela vai causar. Fazendo este balanço, é possível saber se ela é viável ou não. Se puser esse balanço também no impacto ambiental, a pergunta óbvia é: é mais viável a floresta em pé ou derrubada?”

Como não podia deixar de ser, a Hidrelétrica de Belo Monte entra em jogo. A construção da Usina começou em 2011, no segundo governo Lula, e é considerada hoje, segundo Dinamam, “um elefante branco”. De fato, atualmente a UHE Belo Monte só tem uma área alagada de cerca de 480 km². Pelo projeto original, ela deveria ser de 1.200 km², mas dessa forma causaria um impacto nas TIs do Xingu de proporções inigualáveis.

No novo governo Lula, agora visivelmente com viés de maior preocupação com as questões do clima, do meio ambiente, as terras indígenas seriam mais respeitadas? Há quem aponte uma mudança sensível de posicionamento do futuro chefe da nação que, no passado, chegou a criar embates com os ambientalistas.

“Acho que ele fez uma reflexão, mas acho também que houve a necessidade de rever sua postura porque a discussão global hoje está em torno do meio ambiente. O momento mais aplaudido do discurso do Lula na campanha era quando ele falava de meio ambiente e dos povos indígenas. Então isso também trouxe uma capilaridade política para ele”, disse Dinamam.

Trata-se de um capital político, sem dúvida. E que, como todo capital, o presidente Lula precisará cuidar, guardar e investir nele para não o deixar minguar. Porque atualmente, já com um olhar mais maduro, reflexivo, bem diferente daquele temor do menino David Kopenawa, que era escondido pela mãe num cesto de palha para que os brancos não o levassem da aldeia, os indígenas, sobretudo os que se agregam numa associação como a Apib, estão conscientes dos verdadeiros perigos do mundo dos brancos. E usam sua sabedoria tradicional também para se posicionarem politicamente.

“Sabemos que tudo é um jogo político. Se o novo governo não tiver os povos indígenas ao lado dele na agenda ambiental que está propondo, possivelmente terá problemas a nível internacional, por exemplo. Temos este entendimento, queremos contribuir com a causa. Mas, se vier uma coisa atravessada, de cima para baixo, nós não vamos apoiar. Porque somos independentes do governo, seja de direita, seja de esquerda, atuamos em prol do interesse dos povos indígenas”, afirma Dinamam.

Amelia Gonzalez

Jornalista, durante nove anos editou o caderno Razão Social, encartado no jornal O Globo, que atualizava temas ligados ao desenvolvimento sustentável. Entre 2013 e 2020 foi colunista do G1, sobre o mesmo tema. Atualmente mantém o Blog Ser Sustentável, onde as questões relacionadas ao meio ambiente, ao social e à governança são tratadas sempre com ajuda de autores especialistas.

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