Comunidades tradicionais – ribeirinhas, indígenas, quilombolas – às margens do Rio Paraopeba, em Minas Gerais queixam-se do tratamento da Vale, após o rompimento da barragem em Brumadinho. Povos de terreiro – que veem no rio não apenas um curso d’água, mas um elo sagrado com suas tradições religiosas – também enfrentam dificuldades: as águas do Paraoepba servem como testemunhas da negligência corporativa.
Fátima Oliveira, conhecida como Mãe de Santo Nengua Dandalumuenu, lidera o terreiro de Candomblé Nzo Nguku Kukia, fundado em 2012 em Mateus Leme, a 54km da Mina Córrego do Feijão e a poucos metros do Rio Paraopeba. Além das responsabilidades religiosas, ela é professora e tem sido uma voz ativa ao expressar as preocupações e desafios enfrentados por sua comunidade em decorrência do rompimento da barragem em Brumadinho. “A Vale vem sendo omissa conosco e com todas as pessoas que perderam um ente querido, patrimônio, suas casas, seus materiais, seus utensílios, seu tudo, né? Pessoas que lutam a vida inteira para conquistar um bem e até hoje não foram ouvidos, nem receberam nenhum tipo de reparação”, afirma Fátima.
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A mãe de santo destacou a falta de reparação, descrevendo-a como uma omissão dolorosa que afeta não apenas sua comunidade, mas também outros povos e comunidades de Tradição Religiosa Ancestral de Matriz Africana. A líder religiosa destacou os desafios enfrentados pelas comunidades tradicionais em termos de preservação cultural, apontando a dificuldade de realizar práticas religiosas devido à poluição do Rio Paraopeba.
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Veja o que já enviamosEla ressaltou a importância de entender e respeitar os rituais específicos, enfatizando a necessidade de preservar tradições em meio às adversidades. “Por exemplo, dependendo da obra que for fazer, tem que ser respeitado os dias de funções, os dias de nossas obrigações, o nosso dia a dia; se for depender de água natural e de outros elementos do rio e da orla biodiversa que tem ao redor”, lembrou.
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A líder religiosa conta que, atualmente, para cultivar sua fé fora do terreiro, precisa ir em locais distantes, pois no Rio Paraopeba é inviável devido à contaminação de minério. Fátima expressou o desejo de que os direitos das comunidades tradicionais sejam respeitados e que as instituições de justiça atuem em defesa desses direitos. E enfatizou a importância da luta contínua e da conscientização para superar a impunidade e as adversidades históricas enfrentadas pelos povos tradicionais.
A antropóloga Jade Lobo, doutoranda em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), criticou a “invisibilidade imposta pela Vale às comunidades tradicionais” afetadas pelo tragédia de Brumadinho. Ela ressaltou a singularidade das famílias de povos tradicionais, indo além dos laços sanguíneos, e apontou que o dano causado pela Vale não se limita apenas às perdas materiais, afetando profundamente a espiritualidade e as práticas culturais dessas comunidades. “Gerou um dano ao conhecimento tradicional que é repassado por gerações, um dano à espiritualidade, um dano ao campo cosmopolítico em que as pessoas vivem”, argumentou.
A antropóloga enfatizou a importância de respeitar as formas tradicionais de existir naquele espaço e sugeriu ajustes nas abordagens da Vale para considerar e respeitar mais eficazmente essas comunidades, lembrando as atuais dificuldades de diálogo. “É um diálogo muito tenso, porque a nossa forma de habitar nesse espaço é oposta à busca de lucros extraordinários”, ponderou.
As Assessorias Técnicas Independentes (ATIs) e os movimentos sociais emergiram como protagonistas fundamentais na busca por reparação nos desdobramentos do desastre ambiental causado pelo rompimento da barragem da Vale. Além de documentar sistematicamente as violações de direitos, essas entidades desempenham um papel fundamental na formulação de demandas específicas, estimulando a ampliação das vozes de atingidos.
Em nota, o Núcleo de Assessoria às Comunidades Atingidas por Barragens (Nacab) ressalta que, ao desenvolver seu trabalho, identificou uma série de violações de direitos e a ausência de reconhecimento de Povos Tradicionais de Religiosidade de Matrizes Africanas. “A relação de povos tradicionais de religiosidade de matrizes africanas com os rios é sagrada, direta e predominante para seu meio de vida. A contaminação de um rio traz a ausência de entidades, espiritualidade e elementos centrais para a prática religiosa desses povos. Mesmo que não more às margens do rio tem nele um ponto único para sua vida. Nesse sentido os POTMAS defendem o conceito de “territórios descontínuos” onde a distância não é um elemento dominante para quem faz uso do rio constantemente”.
A batalha pela reparação material e o respeito aos direitos específicos dos Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs) é um capítulo complexo e demorado. O Programa de Transferência de Renda (PTR), vital para muitas dessas comunidades, enfrenta obstáculos, de acordo com o Nacab que, recentemente, formalizou o pedido de pagamento do PTR, programa de renda emergencial criado pela Vale para os atingidos, aos POTMAS, mas, até o momento, aguarda retorno da FGV – responsável pela gestão do programa de reparação socioeconômica.
A garantia do direito dos PCTs a um processo próprio nos Estudos de Avaliação do Risco à Saúde Humana também enfrenta atrasos significativos. “Os PCTs têm direito a um processo próprio, observando suas especificidades. Passados quase cinco anos do desastre-crime esse direito ainda não foi garantido. Durante esses anos aconteceram algumas situações do Grupo EPA interromper reuniões em comunidades ao perguntarem se existia algum grupo tradicional ali, receber uma afirmativa, e dizerem que então teriam que voltar com uma equipe e metodologia específica para os PCTs. Acontece que só em janeiro de 2024 esse processo foi retomado, mesmo assim com vários questionamentos sobre a metodologia”, afirma Nacab, também em nota.