Maria dos Anjos: “o maior desafio é viver aqui, com toda essa lama e contaminação”

Terapeuta corporal e raizeira indígena lamenta perdas com a tragédia de Brumadinho e reclama de negligência da Vale com comunidades tradicionais e dos critérios de programa assistencial

Por Gabi Coelho | ODS 15ODS 16 • Publicada em 24 de janeiro de 2024 - 06:36 • Atualizada em 30 de janeiro de 2024 - 09:12

Maria dos Anjos, terapeuta corporal e raizeira indígena, lamenta perdas com a tragédia de Brumadinho e reclama de negligência da Vale com comunidades tradicionais (Foto: Reprodução)

Maria dos Anjos, terapeuta corporal e raizeira indígena, lamenta perdas com a tragédia de Brumadinho e reclama de negligência da Vale com comunidades tradicionais (Foto: Reprodução)

Terapeuta corporal e raizeira indígena lamenta perdas com a tragédia de Brumadinho e reclama de negligência da Vale com comunidades tradicionais e dos critérios de programa assistencial

Por Gabi Coelho | ODS 15ODS 16 • Publicada em 24 de janeiro de 2024 - 06:36 • Atualizada em 30 de janeiro de 2024 - 09:12

No silêncio das águas do Rio Paraopeba, uma narrativa ressoa com a força de quem viu sua comunidade ser engolida pela lama. Maria dos Anjos, moradora de uma comunidade ribeirinha às margens do rio, partilha a dura realidade pós-tragédia provocada pelo rompimento da barragem da Vale, em 25 de janeiro de 2019, na cidade de Brumadinho, município de Minas Gerais. Embora a empresa resista em admitir o impacto em comunidades tradicionais, rejeitos de minério e a natureza comprovam o impacto muito além das áreas reconhecidas pelos responsáveis pela catástrofe ambiental.

Como doeu saber que meu afilhado se foi com tamanha brutalidade, sem sequer ter a chance de ser pai.

Maria dos Anjos
Terapeuta corporal e raizeira indígena

Maria dos Anjos, terapeuta corporal e raizeira indígena, emerge como uma voz resiliente das comunidades ribeirinhas à margem do Rio Paraopeba. Nascida em Malacacheta, outro município de Minas Gerais, chegou a Brumadinho aos 5 anos de idade, imersa na tradição de uma família que sustentava sua vida por meio da agricultura, vendendo a produção de casa em casa. Seu lar, por muitos anos, foi um barracão à beira do rio, onde seus filhos brincavam sob a sombra dos bambuzais. Ao comprar um terreno próximo às águas doces, ela demonstra seu vislumbre na criação de um espaço social e desejo de cultivar não apenas plantações, mas também fortalecer os laços com os vizinhos ribeirinhos e pescadores, almejando a construção de uma comunidade feliz.

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A entrevista de Maria dos Anjos revela como ela personifica não apenas a tragédia que assolou essas comunidades com o rompimento da barragem, mas também a resistência incansável diante das consequências. A raizeira perdeu um afilhado na tragédia-crime da Vale, termo que as vítimas fazem questão de usar em relação ao rompimento da barragem. Sua história é entrelaçada com o lamento das perdas, a luta contra a contaminação e a batalha pela preservação da identidade cultural, enquanto enfrenta as marcas deixadas pela lama em suas vidas e quintais à beira do Paraopeba.

#Colabora – Diante dessa tragédia-crime, como tem sido sua experiência e o que você tem sofrido?

Voltar a ter nossas ervas, responsáveis por aliviar dores e benzimentos, tornou-se um desafio. A pescaria diária não é mais possível, e a entrada no rio foi proibida. Enfrentamos dificuldades para manter hortas e colher plantas medicinais. O maior desafio é viver aqui, com toda essa lama e contaminação, pois exames recentes mostram altos índices de metais pesados no sangue.

Maria dos Anjos
Terapeuta corporal e raizeira indígena

Maria dos Anjos – Após a tragédia, testemunhei a lama tirar a vida de várias pessoas que eu amava e destruir a vida daqueles que sobreviveram. Muitos precisam continuar trabalhando, sem a opção de sair, devido a compromissos adquiridos. Na época, não tínhamos conhecimento sobre as barragens; para nós, a Vale era motivo de orgulho, mas mal sabíamos que se tratava de um local contaminado prestes a devastar tudo em seu caminho. Fui a inúmeros enterros, onde a dor parecia não ter fim, pois conhecia e convivia com a maioria das vítimas. Como doeu saber que meu afilhado se foi com tamanha brutalidade, sem sequer ter a chance de ser pai. A família dele ficou completamente abalada; e eu também acompanhava várias famílias como técnica de enfermagem, temendo perder também meus pais idosos e doentes.

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#Colabora – Qual foi e qual tem sido o impacto na comunidade?

Maria dos Anjos – A lama persiste em nossos quintais, mesmo após a retirada de mais de 300 caminhões pela prefeitura. Nosso espaço social, onde cultivávamos nossas tradições, também está cheio de lama, pesada demais para eu mesma remover. Tivemos duas mortes que acreditamos terem nexo causal com a tragédia, pois o senhor que amava cuidar do quintal viu sua vida perder sentido e acabou adoecendo. Outro morador teve complicações pulmonares relacionadas à inalação da poeira tóxica. Nossas crianças perderam seus quintais de brincadeiras, e a rua tornou-se perigosa devido ao tráfego intenso de veículos da Vale, caminhões pesados das obras e da estrada dos Pires.

#Colabora – Como a postura da Vale em não reconhecer algumas comunidades afetou diretamente o dia a dia e a coesão dessas comunidades?

Estamos nos unindo com outras comunidades tradicionais, compartilhando nossos anseios e culturas, buscando apoio mútuo. Sabemos que enfrentamos tudo isso juntos sem perder nossa ancestralidade, e isso é uma garantia de vitória para as gerações futuras

Maria dos Anjos
Terapeuta corporal e raizeira indígena

Maria dos Anjos – A negativa da Vale impacta diretamente, pois não recebemos nenhuma reparação. Muitas pessoas sofrem com doenças na pele e depressão, gastando com medicamentos. O PTR oferecido é apenas 50%, enquanto bairros distantes, sem lama nos quintais, recebem 100%. Nossa qualidade de vida não é mais a mesma, pois perdemos nossa cultura, os eventos sociais da comunidade, como as quadrilhas e brincadeiras, além de enfrentarmos problemas como esgoto entupido.

#Colabora – Existem outros casos específicos de impactos que você poderia compartilhar?

Maria dos Anjos – Algumas casas tiveram que ser reconstruídas, pois a lama contaminada não podia ser tocada. Isso levanta questões sobre como estender roupas ou lavar móveis cheios de lama, considerando o risco de outra enchente. A insegurança na cidade aumentou, com casos de roubos, inflação, desvalorização das casas e discriminação por sermos ribeirinhos.

#Colabora – Quais são os principais desafios enfrentados por essas comunidades em termos de preservação cultural, ambiental e práticas tradicionais?

Maria dos Anjos – Voltar a ter nossas ervas, responsáveis por aliviar dores e benzimentos, tornou-se um desafio. A pescaria diária não é mais possível, e a entrada no rio foi proibida. Enfrentamos dificuldades para manter hortas e colher plantas medicinais. O maior desafio é viver aqui, com toda essa lama e contaminação, pois exames recentes mostram altos índices de metais pesados no sangue. Precisamos de projetos sociais que nos ajudem a criar hortas suspensas, resgatar o conhecimento das ervas e documentar nossa história.

#Colabora – Como essas comunidades estão lidando com a ameaça de perder aspectos importantes de sua identidade devido à tragédia?

Maria dos Anjos – Com resistência. Estamos participando de grupos de reparação e contamos com o apoio da Aedas (Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social) para elaborar nosso protocolo de consulta como comunidade tradicional ribeirinha.

#Colabora – Pode compartilhar exemplos de esforços de resistência ou iniciativas lideradas por essas comunidades para buscar reconhecimento e reparação?

Maria dos Anjos – Estamos nos unindo com outras comunidades tradicionais, compartilhando nossos anseios e culturas, buscando apoio mútuo. Sabemos que enfrentamos tudo isso juntos sem perder nossa ancestralidade, e isso é uma garantia de vitória para as gerações futuras.

Gabi Coelho

Jornalista, empreendedora, diretora da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e conselheira da Inova.aê. Dedica-se a impulsionar uma comunicação comprometida com a sociedade, através do jornalismo e do ativismo. Tem experiência em mídias independentes e tradicionais, como Estadão Verifica, Projeto Comprova, Globo Minas, Voz das Comunidades, Ponte Jornalismo, Projeto Colabora, Revista Azmina e outros. Foi jurada do prêmio Vladimir Herzog. Teve também experiências internacionais. Em 2018, foi uma das oito jornalistas brasileiras das favelas e periferias que participaram de intercâmbio em Medellín, Colômbia, conectando-se com mídias independentes e participando de workshops e exposições no Festival Gabriel García Márquez. Em 2023, participou do intercâmbio IVLP nos Estados Unidos, no Programa Edward R. Murrow para Jornalistas – Pesquisa e Investigação, juntamente com profissionais brasileiros, moçambicanos e portugueses.

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