Uso excessivo de água no Matobipa ameaça expansão da irrigação

Pesquisa liderada pelo Inpe mostra que superexploração dos recursos hídricos para a agricultura, aliada às mudanças climáticas, está reduzindo as vazões subterrâneas

Por Agência Fapesp | ODS 13ODS 15 • Publicada em 30 de outubro de 2024 - 10:18 • Atualizada em 30 de outubro de 2024 - 10:19

Cultura de soja irrigada em área do Cerrado: estudo aponta que uso excessivo de água no Matopiba pode comprometer até 40% da capacidade futura de expansão da irrigação (Foto: Valter Campanato / Agência Brasil)

(Luciana Constantino*) – Considerada uma das fronteiras agrícolas que mais crescem no Brasil e a área com maior taxa de emissão de gases de efeito estufa no Cerrado, a região conhecida como Matopiba corre o risco de enfrentar falta de água já nos próximos anos. Entre 30% e 40% da demanda por irrigação de terras agricultáveis pode não ser atendida no período de 2025 a 2040 devido à superexploração dos recursos hídricos.

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Esse problema, somado às mudanças climáticas, está reduzindo as vazões subterrâneas – provenientes do aquífero Urucuia – e dos corpos d’água superficiais da bacia do rio Grande, afluente do São Francisco. A redução desse fluxo pode comprometer o atendimento a demandas como o abastecimento urbano, de populações ribeirinhas e o próprio agronegócio, sem contar a diminuição de disponibilidade para toda a bacia.

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A conclusão é de um estudo liderado por cientistas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) que analisou a sustentabilidade de longo prazo da expansão agrícola em meio à crescente escassez de água na região. O trabalho, idealizado pela cientista do Inpe Ana Paula Aguiar e realizado em parceria com o Centro de Resiliência de Estocolmo (Suécia), aponta que deve haver um aumento de até 40% de energia para irrigação, pressionando ainda mais o sistema.

Acrônimo formado pelas siglas de quatro Estados – Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia –, o Matopiba está inserido predominantemente no Cerrado (91% da área ou 665 mil km2), tendo apenas 7,3% na Amazônia e 1,7% na Caatinga. Em sua parte sudeste, é abastecido pela bacia do rio Grande, que cobre cerca de 76 mil km2.

Ouvimos muito na região que as retiradas de água são acima dos níveis de outorga. Então, o primeiro ponto de recomendação seria a revisão dessas permissões, justamente para que estejam de acordo com o novo normal climatológico que estamos vivendo. A série histórica pode estar defasada, levando a uma permissão acima do que é possível ofertar. Observamos por meio de dados de monitoramento de poços da CPRM que os níveis de águas subterrâneas estão caindo, mas esse sistema ainda é muito utilizado.

Minella Alves Martins
Engenheira agrícola e meteorologista do Inpe

Para fazer a análise, os pesquisadores usaram um modelo de dinâmica de sistemas – uma ferramenta que permite representar as complexas interações e feedbacks entre uso da terra, energia e água, além de simular diferentes cenários, vendo como é a reação ao longo do tempo. Com isso, ajuda na tomada de decisões e na implementação de políticas públicas mais eficazes. “A dinâmica de sistemas considera uma visão holística, simulando as relações e as várias demandas – irrigação, energia elétrica, consumo – que existem simultaneamente na região. Isso nem sempre é considerado em análises realizadas por órgãos públicos”, diz o pesquisador do Inpe Celso von Randow, um dos autores do trabalho.

O artigo foi publicado na Ambio – Journal of Environment and Society e é parte do projeto Nexus – Caminhos para a Sustentabilidade, coordenado por Jean Ometto, pesquisador do Inpe e membro da coordenação do Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG). O projeto buscou propor estratégias para viabilizar a transição para um futuro sustentável nos biomas Cerrado e Caatinga por meio de uma abordagem participativa, integrando métodos qualitativos e quantitativos.

O relatório técnico do Nexus, que traz informações da pesquisa do grupo e de outras desenvolvidas na região, foi lançado agora em outubro e apresentado no seminário “Contribuições da comunidade científica brasileira para a temática de combate à desertificação”, realizado na Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). Pesquisadores do grupo estarão juntamente com a delegação brasileira na Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação (UNCCD), na Arábia Saudita, em dezembro.

“A ideia do estudo nasceu de uma das oficinas do projeto Nexus, realizada no município de Barreiras. Havia uma preocupação com a sustentabilidade do sistema de irrigação. Desenvolvemos um modelo de dinâmica de sistemas para a região, mas ele pode ser aplicado a outras áreas adaptando algumas variáveis de acordo com a necessidade”, explica a engenheira agrícola Minella Alves Martins, primeira autora do artigo e orientanda de von Randow no Inpe com o apoio da Fapesp.

Durante a oficina, os principais desafios relatados na bacia do rio Grande estavam relacionados à disponibilidade de água – tanto do ponto de vista quantitativo como qualitativo – e aos conflitos socioambientais motivados por seu uso e pela posse irregular da terra. Mais de 90% das retiradas de água na bacia são destinadas à irrigação, de acordo com dados da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA).

Nos últimos dez anos, o Matopiba – com 337 municípios – registrou um salto na produção de grãos – 92%, passando de 18 milhões de toneladas (safra 2013/14) para cerca de 35 milhões de toneladas. Na Bahia, as culturas de soja, milho e algodão são destaque, tendo o município de Barreiras como um dos principais produtores no Estado.

Estima-se que na próxima década o crescimento agrícola do Matopiba ainda seja de 37%, com a produção atingindo 48 milhões de toneladas em uma área plantada de 110 mil km2. Os números fazem parte do estudo Projeções do Agronegócio, elaborado pelo Ministério da Agricultura e Pecuária em parceria com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).

Por outro lado, a seca severa que vem atingindo o país reduziu a previsão de produção de grãos na safra 2023/2024, especialmente no Matopiba. Para agravar a situação, o Cerrado bateu recorde de focos de incêndio neste ano. Foram 68.868 entre janeiro e 25 de setembro, superando todo o ano de 2023. É o maior desde 2015.

Com esse cenário, além de registrar aumento da temperatura, o Matopiba emitiu 80% dos 135 milhões de toneladas de CO2 liberadas para a atmosfera por causa do desmatamento no Cerrado entre janeiro de 2023 e julho de 2024, segundo levantamento do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam).

A destruição da vegetação nativa pelo fogo e o desmatamento para outros usos levam a uma redução da evapotranspiração das plantas, diminuindo a quantidade de chuva. Há ainda o fato de a água, sem a cobertura vegetal, chegar com mais força ao solo, escorrendo superficialmente e deixando de formar os canais subterrâneos.

Projeções indicam estagnação

O modelo de dinâmica de sistemas usado pelos pesquisadores para a região mostrou que as vazões superficiais e subterrâneas tendem a diminuir até 2040. Eles levaram em consideração os usos de água atuais, as mudanças climáticas e feedbacks econômicos. Em contrapartida, haverá um aumento na demanda de água, principalmente impulsionada pela expansão da irrigação. Deve passar de 1,53 m³/s (2011-2020) para 2,18 m³/s (2031-2040).

Por isso, os pesquisadores apontam a possibilidade de estagnação da expansão da agricultura irrigada na região, levantando preocupações sobre a sustentabilidade de longo prazo do setor na bacia do rio Grande. “Ouvimos muito na região que as retiradas de água são acima dos níveis de outorga. Então, o primeiro ponto de recomendação seria a revisão dessas permissões, justamente para que estejam de acordo com o novo normal climatológico que estamos vivendo. A série histórica pode estar defasada, levando a uma permissão acima do que é possível ofertar. Observamos por meio de dados de monitoramento de poços da CPRM que os níveis de águas subterrâneas estão caindo, mas esse sistema ainda é muito utilizado. Por isso, outra necessidade seria a fiscalização para proibir poços clandestinos e o monitoramento da exploração de novos locais de perfuração, visando um uso racional dos recursos hídricos”, afirma Martins à Agência Fapesp.

O grupo recomenda também que seja aprimorada a fiscalização das mudanças de uso e cobertura do solo para que áreas de recarga do aquífero não sejam comprometidas, além de incentivar estratégias mais eficientes e racionais da utilização de água na agricultura. Para estudos futuros, os cientistas sugerem a exploração de outros caminhos para adaptação às condições atuais, como a possibilidade de conectar o subsistema elétrico local à rede nacional e a criação de canais adicionais para garantir o abastecimento.

*Luciana Constantino é jornalista com experiência em cobertura nas áreas de sustentabilidade, desenvolvimento humano, ciência e política. Foi editora-executiva no jornal “O Estado de S.Paulo”, trabalhando em São Paulo e na Sucursal de Brasília.

Agência Fapesp

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