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Tia Ciata, a líder antirracista que salvou o samba carioca

Mãe-de-santo e quituteira baiana, Hilária Batista de Almeida protegeu os artistas pretos da opressão racista do Estado e viabilizou a sobrevivência do gênero musical que é a melhor cara do Brasil

ODS 11ODS 16ODS 17 • Publicada em 9 de janeiro de 2025 - 19:27

Num fim de tarde do dia 1º de dezembro de 1955, Rosa Parks recusou-se a levantar da cadeira no ônibus, para um branco sentar – e virou símbolo da luta antirracista nos Estados Unidos. Meio século antes, a brasileira Hilária Batista de Almeida fez mais: inventou um país. Ao abrir as portas de sua casa aos artistas pretos perseguidos pela polícia (por causa do crime hediondo de cantar sambas), mudou para sempre a cara do Brasil. Para melhor.

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A casa de Tia Ciata, como a anfitriã era conhecida, ficava na Praça Onze, mais ou menos onde está a Passarela do Samba – e aqui a história faz a volta, no encontro de passado e presente que pavimenta o futuro. Sem a sutil insurreição dela, possivelmente o samba não sobreviveria, o Rio de Janeiro não teria seu gênero musical definidor. E tudo seria pior.

Hilária Batista de Almeida, Tia Ciata: fundamental para a sobrevivência do samba carioca. Foto reprodução

A maior manifestação cultural brasileira – o desfile das escolas no Carnaval do Rio – só existe pela ação da matriarca, que driblou a repressão do sempre racista Estado brasileiro, no início do século passado. Baiana de Santo Amaro da Purificação como seriam Caetano e Bethânia, Tia Ciata migrou para o Rio aos 22 anos, em 1876 (ainda na vigência da escravidão), com outros milhares de conterrâneos. Na então capital, casou-se e teve 14 filhos. Quituteira, vendia doces na Rua Sete de Setembro, uma das principais do Centro.

Além disso, era mãe de santo, filha d’Oxum, a orixá das águas doces, do poder feminino, da maternidade, do amor, da fertilidade, da beleza e da prosperidade. Tudo a ver – no terreiro de João Alabá, aconteciam grandes festas com rodas de samba miudinho, que ela dançava com maestria. Trouxera o saber da Bahia, onde se tornou bamba do samba de roda.

Assim, era somente destino que a arte e o ritmo subissem pelas paredes do casarão (seis quartos, duas salas e quintal com árvores), na Rua Visconde de Itaúna, Praça Onze, onde ela morava. O bairro, nas franjas do Centro, concentrava os negros radicados nos morros vizinhos. A região, que desapareceu com a abertura da Avenida Presidente Vargas, tornou-se conhecida como “Pequena África”, porque professava a religião, os hábitos e a culinária do continente ancestral.

A casa de Tia Ciata transformou-se no berço do samba carioca, ao reunir músicos amadores e compositores então desconhecidos. “Pelo Telefone”, de Donga e Mauro de Almeida, o primeiro samba gravado, foi cantado originalmente numa das rodas de lá, no fim de 2016, e virou sucesso no Carnaval do ano seguinte. (Historiadores defendem que Ciata pode ter sido uma das compositoras, não creditada oficialmente.)

A matriarca conjugou coragem e empoderamento a vida inteira, para sustentar suas lutas no candomblé e no samba. Toureou o Estado que tentava reprimir os corpos negros e as crenças trazidas de África e sedimentou tradições que ainda vigoram no Rio. Ela ganhou fama também por promover grandes festas de Cosme e Damião – como acontece até hoje, a cada setembro, pelas ruas do subúrbio carioca.

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O casarão ficava próximo da sociedade recreativa Paladinos da Cidade Nova e, mais adiante, da sociedade carnavalesca Kananga do Japão, rancho fundado em 1910). Era destino também de outras tias baianas famosas na época: Dadá, Amelia (mãe de Donga), Prisciliana (mãe de João da Bahiana), Veridiana (mãe de Chico da Bahiana), Josefa Rica e Tomásia. E, claro, os sambistas: Hilário Jovino Ferreira, Donga, Pixinguinha, João da Bahiana, Heitor dos Prazeres, Sinhô, Caninha, Didi da Gracinda, Marinho que Toca (pai do compositor Getúlio Marinho), Mauro de Almeida, João da Mata, João Câncio, Getúlio da Praia, Mirandella, Mestre Germano (genro de Ciata), China (irmão de Pixinguinha) e Catulo da Paixão Cearense.

Mais de um século depois, a atuação de Tia Ciata seria chamada, pelos moderninhos, de “soft power”. E a medida do prestígio pode ser medida pelo momento em que a baiana foi chamada ao Palácio do Catete, sede do governo à época, para tratar uma ferida do presidente Venceslau Brás (1914-1918), que resistia a todos os tratamentos ministrados pelos médicos. Curado, o mandatário passou a autorizar as festas na casa dela, inclusive com o envio de dois soldados para fazer a segurança. O samba, então, prosperou a salvo da repressão racista.

Tia Ciata morreu em 1924, aos 70 anos, mas sua resistência e tenacidade renderam frutos. O gênero musical que protegeu e promoveu ganhou o mundo, consolidou-se como o mais célebre encanto brasileiro. Em 1932, as escolas, que desfilavam cada uma nas suas comunidades, juntaram-se para o primeiro desfile competitivo, exatamente na Praça Onze. Nunca mais pararam. No primeiro fim de semana de março, haverá a 93ª edição do desfile, hoje milionário e de repercussão planetária.

Aliás, Tia Ciata nunca teve sua história contada na avenida, no Carnaval do Rio. Omissão hedionda diante da trajetória preciosa da mãe-de-santo, sambista, quituteira e protetora dos sambistas. E uma das maiores líderes antirracistas do Brasil.

Viva Tia Ciata!

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