#RioéRua: os 215 degraus da fama

A obra colaborativa do artista chileno começou com as cores da bandeira (Foto Oscar Valporto)

A escadaria do chileno Selarón compete com o Pão de Açúcar e o Corcovado no coração dos turistas

Por Oscar Valporto | ODS 11 • Publicada em 7 de janeiro de 2019 - 09:44 • Atualizada em 7 de janeiro de 2019 - 13:43

A obra colaborativa do artista chileno começou com as cores da bandeira (Foto Oscar Valporto)
Turistas lotam a escadaria entre a Lapa e Santa Teresa (Foto Oscar Valporto)
Turistas lotam a escadaria entre a Lapa e Santa Teresa (Foto Oscar Valporto)

Virada do ano, cidade cheia, ocupação dos hotéis batendo em 90%. E onde os turistas querem ir? A lista sai das praias e da Floresta da Tijuca, essas benesses que a natureza nos deu, passa pelo Pão de Açúcar e seu bondinho e o Cristo Redentor do Corcovado, colaborações do homem à paisagem, e inclui, neste começo de século, uma obra de arte interativa, colaborativa e a céu aberto: a Escadaria Selarón. Meu irmão, também jornalista, levou o namorado português da filha para conhecer em dezembro e me disse que, seis anos após a morte do pintor chileno Jorge Selarón, a escadaria ligando Lapa e Santa Teresa é o segundo lugar mais visitado do Rio, que só perde para o Pão de Açúcar, fica à frente do Cristo e do Maracanã.

Não chego a confirmar esse ranking: cronista pode se dar ao luxo de ser impressionista. E vou subir e descer os 215 degraus da Rua Manuel Carneiro – nome oficial da escadaria – logo nos primeiros dias do ano para ver se o interesse que já constatei na baixa temporada, quando vou almoçar na Adega Flor de Coimbra ou no Bar do Ernesto, vira mesmo atração na época de alta do turismo. Meu plano inicial era aproveitar e fazer um trajeto bem gringo: pegar o bonde no Centro, saltar no Largo do Curvelo e caminhar – morro abaixo é sempre mais fácil – até o topo da escadaria, em frente ao muro do convento de Santa Teresa. A estratégia fracassa porque a fila para o bondinho é enorme, e este cronista andarilho apenas está aproveitando seu horário de almoço no meio de um dia de trabalho. O sistema de bondes de Santa Teresa ainda não se recuperou sete anos depois do acidente que matou cinco pessoas em agosto de 2011: só uma linha funciona, o horário é restrito e a passagem, cara.

A obra colaborativa do artista chileno começou com as cores da bandeira (Foto Oscar Valporto)
A obra colaborativa do artista chileno começou com as cores da bandeira (Foto Oscar Valporto)

O jeito é subir a pé, e mesmo assim também tem fila. Fila? Sim. Encontro uma multidão na Escadaria Selarón no primeiro dia útil do ano quando os guias turísticos – e não são poucos – organizam filas para que os visitantes possam fazer suas fotos. Parecem vir de toda parte como geralmente acontece nos grandes pontos turísticos. Mas aqui há uma concentração de latinos: chilenos, argentinos e uruguaios, alguns devidamente uniformizados com as camisas de suas seleções de futebol; e também colombianos, peruanos, costarriquenhos, mexicanos. Muito mais europeus do que americanos e orientais – creio que os turistas do Velho Mundo são os mais interessados neste turismo alternativo e dispostos a enfrentar os 215 degraus e a subida de 125 metros. E brasileiros de toda parte que, como sempre, são maioria em qualquer Réveillon no Rio.

De qualquer forma, é impressionante a multidão que enfrenta o sol de meio-dia para subir os degraus da escadaria que Jorge Selarón transformou em atração turística. Em 1990, quando ele chegou à Lapa, depois de passar por 57 países (segundo seu próprio relato): gostou da cidade, foi morar na Rua Manuel Carneiro, que não tinha qualquer atrativo. O chileno – que vivia de pintar e vender quadros pelos bares e restaurantes cariocas – viu que os brasileiros tinham o hábito de vestir de verde-amarelo as ruas para a Copa do Mundo e começou a pintar e colar azulejos para decorar os degraus. Foi o começo: depois Selarón passou a pintar e recolher azulejos para decorar a escadaria inteira, inclusive muros e laterais. Usou muito vermelho – cores da Ferrari e do seu Chile, duas paixões. A escadaria passou a atrair a atenção dos turistas, e o pintor a pedir que eles mandassem azulejos para o seu mosaico. Muitos mandaram. Em 2000, quando havia azulejos pela escadaria inteira, eles eram de mais de 80 países, mais de dois mil azulejos.

A obra de arte a céu aberto ganhou fama internacional, apareceu em clipes do rapper Snoop Dogg e da banda U2. Em 2005, a escadaria foi tombada, Selarón ganhou o título de Cidadão Honorário do Rio. O chileno nunca parou de receber azulejos, nem de decorar a escadaria. A mulher negra grávida – onipresente em seus quadros – multiplicava-se nos azulejos. Representava “um problema pessoal”, ele dizia, mas sem jamais explicar.  O artista trocava azulejos antigos por novos, os danificados por restaurados; alguns, que considerava feios, por mais bonitos; refazia, pintava. Em 2010, concluiu uma enorme bandeira do Brasil no alto da escadaria, na curva que vai dar na Ladeira de Santa Teresa. Jorge Selarón dizia que sua obra só estaria concluída quando morresse. O pintor chileno foi encontrado morto, com o corpo todo queimado, nos degraus em frente à sua casa na escadaria, em 10 janeiro de 2013. A polícia concluiu por suicídio; vizinhos e amigos duvidaram.

Seis janeiros depois, sua obra está viva e presente em todos os guias de turismo da cidade. A casa onde morava – no número 24 – virou hostel: Selahost, com direito a uma caricatura de Jorge com seus enormes bigodes na parede. Outras casas alugam quartos por temporada; nesta fase de alta, os vizinhos vendem sorvetes, refrigerantes, cervejas, caipirinha, açaí, chapéus. A fama da escadaria favorece os tradicionais restaurantes Flor de Coimbra e Ernesto, ajuda a encher os bares populares da área, atrai ambulantes e vendedores de artesanato, deixa lento o trânsito nas estreitas ruas Teotônio Regadas e Joaquim Silva, neste canto da Lapa. Tudo obra da escadaria de Jorge Selarón, que amava o Rio e amava a rua.

#RioéRua

O SelaHost (no alto à esquerda) foi instalado na antiga residência do artista chileno (Foto Oscar Valporto)
O SelaHost (no alto à esquerda) foi instalado na antiga residência do artista chileno (Foto Oscar Valporto)

 

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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Um comentário em “#RioéRua: os 215 degraus da fama

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