No Carnaval da crítica, todo mundo entra na dança

Devastação ambiental, intolerância religiosa, violência, desigualdade, corrupção e fake news passarão na Sapucaí no desfile do Grupo Especial

Por Aydano André Motta | ODS 10ODS 11 • Publicada em 21 de fevereiro de 2020 - 10:18 • Atualizada em 12 de março de 2020 - 10:23

Logo do enredo da Mocidade Independente: homenagem a Elza Soares. Foto reprodução

Vai passar o Carnaval das orelhas ardendo em brasa. As grandes escolas de samba cariocas mergulham de vez na crítica ao cotidiano, apostando em enredos conectados a agendas urgentes da vida brasileira. De pastores neopentecostais a destruidores do meio ambiente, de intolerantes a corruptos, de Crivella a Bolsonaro, todo mundo entrará na dança do paticumbum. O #Colabora oferece uma seleção do que ver e prestar atenção na maratona da Sapucaí.

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“Eu respeito seu amém
Você respeita meu axé”

A Grande Rio apresenta o aguardado enredo sobre o icônico pai de santo Joãozinho da Gomeia – “Tata Londirá, o canto do caboclo no Quilombo de Caxias” – com um clamor pela tolerância religiosa. As alegorias serão foscas, em palha, numa ousada aposta estética dos carnavalescos Leonardo Bora e Gabriel Haddad, estreantes na elite da folia. E o samba é o mais bonito do ano.

Logo do enredo da Mangueira: nova versão da história de Jesus. Foto reprodução

“Favela, pega a visão
Não tem futuro sem partilha
Nem messias de arma na mão”.

Na luta pelo bicampeonato, a verde e rosa garantiu antecipadamente o título de enredo polêmico de 2020. “A verdade vos fará livre”, de Leandro Vieira (artista mais importante da festa no momento), propõe um Jesus que volta como um menino negro do Morro da Mangueira. Ponto de partida para um desfile que vai bater na intolerância, fustigar a fé artificial e denunciar a violência contra o povo das periferias.

“A alforria se conquista com o ganho
E o balaio é do tamanho do suor do seu amor”

A “Viradouro de alma lavada” aproveita a história das Ganhadeiras de Itapuã para exaltar o povo negro. Terá as alegorias mais bonitas do ano.

“Índio pede paz, mas é de guerra
Nossa aldeia é sem partido ou facção
Não tem bispo, nem se curva a capitão”

Em “Guajupiá, terra sem males”, a Portela descreve o Rio antes do Rio – quando aqui viviam os Tupinambás – numa mensagem de lamento pelo massacre dos povos tradicionais. A crítica ao progresso irracional fecha o desfile da maior campeã de todas.

“Brasil, compartilhou, viralizou, nem viu!
E o país inteiro assim sambou
Caiu na fake news!”

O desfile mais crítico do ano será da São Clemente, que passeia por diversos fatos da história recente a partir da lembrança do “Conto do vigário”, nome do enredo. Tem carro de políticos presos, do povo ingênuo sendo enganado, das fake news, dos laranjas (que não são as frutas, claro). Um dos autores do samba, Marcelo Adnet vai representar um político corrupto numa alegoria.

“Brasil
Enfrente o mal que te consome
Que os filhos do planeta fome
Não percam a esperança em seu cantar”

“Elza Deusa Soares” é a protagonista do enredo da Mocidade, favorita ao título de 2020. No passeio pela trajetória da cantora, o carnavalesco Jack Vasconcelos bate duro em mazelas brasileiras, como o machismo, a intolerância e a desigualdade. Atenção para o “Grande circo do racismo brasileiro”, um dos carros da escola.

“Inocentes, culpados, são todos irmãos
Esse nó na garganta vou desabafar
O chumbo trocado, o lenço na mão
Nessa terra de Deus dará”

A União da Ilha reúne alguns dos mais terríveis problemas brasileiros em “Nas encruzilhadas da vida, entre becos, ruas e vielas, a sorte está lançada: salve-se quem puder!” O enredo questionador vai lamentar a violência e a fome, lembrar a ganância e a hipocrisia, os discursos oportunistas para, no fim, exaltar a resistência do Carnaval.

“Vem peneirar, peneirar
O garimpo traz o ouro a cobiça dos mortais
Peneirar, peneirar
Devastando a natureza no Pará dos Carajás”

Com “Pedra”, a Estácio de Rosa Magalhães (em seu 50º desfile) manda recado contra a ação destruidora da mineração. O enredo fala das muitas pedras dessa pedra flutuando no espaço – o planeta – e fecha a apresentação com a crítica aos inimigos do meio ambiente.

Aydano André Motta

Niteroiense, Aydano é jornalista desde 1986. Especializou-se na cobertura de Cidade, em veículos como “Jornal do Brasil”, “O Dia”, “O Globo”, “Veja” e “Istoé”. Comentarista do canal SporTV. Conquistou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2012. Pesquisador de carnaval, é autor de “Maravilhosa e soberana – Histórias da Beija-Flor” e “Onze mulheres incríveis do carnaval carioca”, da coleção Cadernos de Samba (Verso Brasil). Escreveu o roteiro do documentário “Mulatas! Um tufão nos quadris”. E-mail: aydanoandre@gmail.com. Escrevam!

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