No mundo da Lua

Do clássico “Le voyage dans la lune”, de Georges Méliès, para as lições das ruas do Rio

Cinco estrelas para quem consegue nos trazer de volta à realidade

Por Leo Aversa | Mobilidade UrbanaODS 11ODS 16 • Publicada em 14 de junho de 2016 - 08:00 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 23:00

Do clássico “Le voyage dans la lune”, de Georges Méliès, para as lições das ruas do Rio
Do clássico "Le voyage dans la lune", de Georges Méliès, para as lições das ruas do Rio
Do clássico “Le voyage dans la lune”, de Georges Méliès, para as lições das ruas do Rio

Peguei o Uber em Ipanema. O motorista, Rodrigo, não sabia o caminho para o Jardim Botânico e também não se entendia com o Waze. Entro em modo “classe média indignada”: não é possível, virou bagunça, como admitem profissionais tão inexperientes?  Ter que explicar um caminho óbvio para o chofer, onde já se viu? Agora vou ter que ficar a viagem toda mostrando o caminho, blá, blá, blá.

Não darei estrelas para o Rodrigo.

Caímos no engarrafamento da Lagoa. Rodrigo pede desculpas por não saber o trajeto. Está no Uber há quinze dias.

Tenho um lapso de empatia e pergunto como ele foi parar ali.

– Eu era gerente numa empresa que trabalhava com para a  Petrobrás. Tinha um bom salário, dava para pagar o colégio das crianças e o apartamento financiado. O único problema é que trabalhava demais, chegava em casa nove, dez da noite, mal via os meus filhos, quando entrava eles já estavam dormindo. Achava que valia a pena o sacrifício para dar para os dois uma infância melhor que a minha, estudei em escola pública ruim e vendo os meus pais no sufoco do aluguel. A gente faz tudo pelos filhos, né? Mas no ano passado a crise pesou e a Petrobrás começou a cortar fornecedores. A empresa balançou. Fui um dos primeiros a ser cortado. Foi a primeira demissão da minha vida, logo agora…O senhor já foi demitido? A gente fica se sentindo um lixo, nem sabia como contar pra minha familia, me sentia envergonhado. O pior é que o tempo foi passando e nada de arrumar outro emprego, tinha muito tapinha nas costas, tinha muito conselho mas nada de trabalho. Este ano tive que tirar as crianças do colégio para colocar na escola pública. Me senti um fracasso não só como profissional, mas como pai. De que adiantou perder a infância deles trabalhando feito um condenado pra no fim dar nisso?
Um conhecido me falou do Uber. Disse que dava pra tirar um dinheiro. Eu já estava no sufoco, quase vendendo o carro, resolvi arriscar. Não é ruim mas tem que ficar doze, treze horas trabalhando, no mínimo. Mesmo assim não chego nem na metade do que ganhava antes, tivemos que cortar, todos os supérfluos, nada de lazer ou qualquer despesa extra, vai tudo para a prestação do apartamento. O plano de saúde também ficou para trás, rezo toda noite para que a gente não tenha nenhum problema mais sério.
Tá muito difícil.

Vou indicando o caminho até a minha casa. Me despeço desejando boa sorte. Quando chego em casa aparece o valor da corrida: dezoito reais, depois de quase uma hora no trânsito. Com os vinte por cento do Uber, o motorista fica com menos de quinze. Se levar em conta a gasolina e a manutenção, não sobra quase nada. Como o Rodrigo e a família vão viver?

A realidade derruba o modo “classe média indignada”. Me dou conta que, em resumo, o que fiz para ajudar uma pessoa em dificuldades foi dar meia duzia de dicas de trânsito e mesmo assim de má vontade.

Cinco estrelas para o Rodrigo por me tirar do mundo da lua.

Leo Aversa

Leo Aversa fotografa profissionalmente desde 1988, tendo ganho alguns prêmios e perdido vários outros. É formado em jornalismo pela ECO/UFRJ mas não faz ideia de onde guardou o diploma. Sua especialidade em fotografia é o retrato, onde pode exercer seu particular talento como domador de leões e encantador de serpentes, mas também gosta de fotografar viagens, especialmente lugares exóticos e perigosos como Somália, Coreia do Norte e Beto Carrero World. É tricolor, hipocondríaco e pai do Martín.

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4 comentários “No mundo da Lua

  1. Hylton Sarcinelli Luz disse:

    Muito bom Leo, importante que alguém exponha estes fragmentos da realidade que nos passam desapercebido, trazendo a tona esta questão do sub trabalho autônomo que os motoristas de Uber vivem. Tive um papo similar outro dia e saí com a mesma sensação. Trabalham muito mais para ganhar muito menos que os taxistas e ainda com o compromisso de civilidade, água gelada, balinhas etc. Impossível resistir muito tempo. Melhor que o desemprego. Mas qual o futuro de uma sociedade que vai precarizando-se com o aumento da insegurança nos postos de trabalho alcançados e a redução das expectativas pela via do trabalho?

  2. Carlos disse:

    Triste foi perceber que mesmo depois de ouvir o relato do motorista sua concepção do fato não foi alterada. Utilizou o serviço da Uber acreditando que estava “contratando” um serviço de “Chouffer Profissional” quando na verdade, acho que esqueceram de lhe contar, a Uber é um serviço de “carona remunerada”. O motorista não é um profissional do transporte e tampouco um chouffer, como se referiu. Ah, ia esquecendo… Você não ajudou uma pessoa em dificuldades, vc utilizou um serviço, você não é o “bom samaritano”. Quando as empresas se preocuparem em qualificar, prestarão um serviço de qualidade.

  3. Denis disse:

    Até onde a roubalheira do Pt levou o país. Ao final o diplomado vira motorista do uber. De táxi não seria, pois teria que comprar alvará da máfia e também não teria treinamento. O Rio de Janeiro continua lindo. Ops. E falido.

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