Turismo da vacina: é ético viajar para se vacinar em outro país?

Só os vacinados: Comissão Europeia pode voltar a receber americanos em meados deste ano | Foto de Frauke Riether/Pixabay

Imunização irregular contra a covid-19 é novo aspecto da desigualdade entre países desenvolvidos e em desenvolvimento

Por Carla Lencastre | ODS 10 • Publicada em 29 de abril de 2021 - 10:11 • Atualizada em 26 de maio de 2021 - 09:48

Só os vacinados: Comissão Europeia pode voltar a receber americanos em meados deste ano | Foto de Frauke Riether/Pixabay

Os Estados Unidos estão vacinando jovens de 16 anos contra a covid-19. Já no Brasil o calendário de imunização avança a passos vagarosos e ainda está em torno de pessoas de 60 anos e grupos prioritários. Paralelamente, começam a surgir relatos de brasileiros, e de moradores de outros países da América Latina, viajando para fazer turismo da vacina nos EUA, depois de cumprir quarentena de 14 dias no México. Enquanto isso, a ideia de passaportes para vacinados ganha força nos países desenvolvidos.

No final de abril, a Comissão Europeia anunciou que pretende receber americanos imunizados a partir de meados do ano, no verão do Hemisfério Norte. Cenário inimaginável há apenas algumas semanas, e que só será possível por causa da vacinação em massa nos EUA. Países em diferentes continentes, inclusive na Europa, aceitam desde já, sem necessidade de quarentena ou teste, vacinados de determinados lugares. Com a União Europeia perto de fechar um acordo com a Pfizer para compra de 1,8 bilhão de doses até 2023, no mês de abril ficou cada vez mais claro que falar de vacina contra covid-19 é também falar de desigualdade.

Ninguém aguenta mais a situação atual, mas sempre é bom lembrar que vacina é estratégia de imunização coletiva, não individual. Ter dinheiro para fazer as malas e furar a fila não resolve o problema mundial de saúde pública. A Organização Mundial de Saúde já disse que, devido à escassez global de imunizantes, não apoia vacinação de turistas antes que a população mais velha e os trabalhadores na linha de frente da área de saúde dos países mais pobres tenham sido imunizados. Isso parece uma realidade ainda distante, porém não impede que a desigualdade global comece a alimentar o turismo da vacina, segregando quem não tem acesso ao imunizante. O polêmico modelo de negócio suscita questões éticas, mas há entusiastas, ávidos pela recuperação do setor de viagens internacionais, o mais afetado mundialmente pela pandemia.

Setor de viagens perdeu mais de 62 milhões de empregos em 2020

Como não poderia ser diferente, viagens internacionais foram o foco do fórum global do Conselho Mundial de Viagens e Turismo (WTTC na sigla em inglês), o primeiro grande evento da área de viagens e turismo durante a pandemia. Na última semana de abril, a cúpula mundial foi realizada parte virtualmente e parte presencialmente em Cancún, no México. Durante o evento, o WTTC divulgou que o setor perdeu US$ 4,5 trilhões e mais de 62 milhões de empregos ao longo de 2020. Antes da pandemia viagens e turismo respondiam por 25% dos novos empregos diretos e indiretos em todo o mundo e 10,4% do PIB mundial. Com o avanço da vacinação o conselho espera que as viagens internacionais sejam retomadas em meados deste ano. Se isso acontecer, a contribuição do setor para o PIB global em 2021 poderia aumentar em quase 50%, segundo estimativa do próprio WTTC.

A professora e pesquisadora Mariana Aldrigui, da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP), destaca que aos poucos novos corredores de viagem serão criados para os vacinados: “Há casos em que as bolhas de viagem incluirão apenas pessoas vacinadas. Pode ser que a elite brasileira, que se verá alvo de um banimento internacional, decida fazer algum tipo de pressão pró-saúde. Mas minha tendência é acreditar na compra de pacotes para turismo de vacina”.

Turismo de vacina: resort nas Ilhas Maldivas
Ilhas Maldivas: arquipélago no Oceano Índico quer vacinar turistas, mas não tem vacinas nem para a população | Foto de divulgação

Em meados de abril as Ilhas Maldivas, arquipélago do Oceano Índico sempre associado ao clichê paradisíaco, anunciaram que vacinariam turistas. Mas, ainda que a declaração tenha sido feita pelo ministro do Turismo, Abdulla Mausoom, ao canal de notícias americano CNBC, nada indica que isso vá acontecer nos próximos meses. Até porque, segundo o próprio ministro, metade da população adulta da nação insular ainda não foi imunizada. Além disso, as Maldivas não produzem vacina. Na realidade, até agora o país sequer comprou imunizantes. As doses usadas para vacinar os moradores das ilhas foram doadas por China e Índia.

As Maldivas não terão turismo da vacina nos próximos meses, mas estão com fronteiras abertas desde o ano passado, sem exigência de quarentena. O turismo representa cerca de um terço do PIB local. O arquipélago praticamente não tem turismo doméstico e é dependente de visitantes internacionais. As redes sociais andam repletas de fotos de brasileiros em bangalôs sobre as águas azul-turquesa desde o segundo semestre de 2020. Levantamento do Kayak, ferramenta de buscas de viagens, indica que deve continuar assim: as Maldivas tiveram aumento expressivo nas pesquisas de brasileiros por passagens aéreas internacionais. O crescimento em fevereiro de 2021 foi 27% maior do que no mesmo mês em 2020.

Turismo da vacina: Alasca é o mais recente destino a anunciar vacinação para visitantes estrangeiros

Vacinação de estrangeiros nas Maldivas deve demorar, mas há lugares em que o turismo da vacina pode logo se tornar oficialmente uma realidade. Como no Alasca, por exemplo, que anunciou em meados de abril que vacinará gratuitamente visitantes maiores de 16 anos a partir de 1º de junho. A propaganda, feita pelo governador, Mike Dunleavy, tem a ver com o peso do turismo na economia.

A maioria dos turistas chega ao estado americano em navios de cruzeiro, a melhor maneira de conhecer as paisagens locais. Por enquanto, cruzeiros estão proibidos nos EUA até 1º de novembro de 2021. Com a campanha do governo estadual, o turismo por via aérea ganha mais um, digamos, atrativo. O projeto prevê que os postos de vacinação fiquem nos quatro principais aeroportos do estado e as vacinas usadas serão a Pfizer e a Moderna. O Alasca também vai oferecer aos visitantes estrangeiros a segunda dose, mas para isso é preciso ter ainda mais tempo e dinheiro para ficar um mês nos EUA. Ou ir e voltar.

Brasileiros com o visto em dia (os consulados no Brasil ainda não reabriram), que podem pagar por 14 dias de quarentena no México e sem medo de se contaminar na temporada mexicana não estão esperando o verão americano para se vacinar nos EUA. Nem moradores de outros países da América Latina onde a vacinação também está atrasada. Afinal, alguns estados americanos exigem prova de residência para vacinar, mas a maioria, não.

O USA Today relatou que latino-americanos chegam aos Estados Unidos tanto em voos comerciais quanto em aviões fretados, principalmente a partir do México. Segundo o jornal, a lista do turismo da vacina inclui celebridades, executivos, políticos e até um time inteiro de futebol, todos provenientes da América Latina. Pacotes para vacinação nos EUA também já foram notícia em países mais distantes, como Índia, hoje epicentro da pandemia. E Rússia, que ainda não teve sua vacina Sputnik V aprovada pela UE nem pela Anvisa, e Cuba, que produz a Soberana 2, anunciaram que pretendem oficializar o turismo da vacina.

 

Carla Lencastre

Jornalista formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), trabalhou por mais de 25 anos na redação do jornal O Globo nas áreas de Comportamento, Cultura, Educação e Turismo. Editou a revista e o site Boa Viagem O Globo por mais de uma década. Anda pelo Brasil e pelo mundo em busca de boas histórias desde sempre. Especializada em Turismo, tem vários prêmios no setor e é colunista do portal Panrotas. Desde 2015 escreve como freelance para diversas publicações, entre elas o #Colabora e O Globo. É carioca e gosta de dias nublados. Ama viajar. Está no Instagram em @CarlaLencastre 

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