“Travesti e Respeito” foi o lema da primeira campanha do Dia Nacional da Visibilidade Trans. No dia 29 de janeiro de 2004, ativistas transgêneros e travestis foram a Brasília lançar a campanha e promoveram um ato público no Congresso Nacional, que conseguiu grande repercussão e transformou a data em marco para o movimento. Na época, questões de saúde e a necessidade de inclusão social e respeito aos direitos das pessoas trans eram as prioridades dos ativistas. Duas décadas depois, as reivindicações continuam sendo pelo direito ao reconhecimento, à existência, a viver.
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A luta por igualdade, respeito e dignidade continua longe do fim. O Brasil segue sendo o país que mais mata pessoas trans, e não desocupa a liderança no ranking mundial há 17 anos. Foram assassinadas 122 pessoas trans e travestis no país no ano passado, segundo dados do dossiê “Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2024”, lançado na última segunda-feira (27), pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).
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Veja o que já enviamosCoordenadora da pesquisa, a presidente da Antra, Bruna Benevides, destaca na sua mensagem inicial: “Não seremos apagadas. A resistência é nossa arma mais poderosa, e cada conquista é um passo rumo a um futuro onde viver com dignidade não seja um privilégio, mas um direito de todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero. Nossa existência é resistência, e resistiremos hoje, assim como resistimos no passado, com a certeza de que nossa luta é justa e necessária para a construção de um futuro onde ser trans não seja um ato de coragem, mas um direito fundamental”.
Neste Dia Nacional da Visibilidade Trans, #Colabora listou oito reivindicações para o movimento que luta por um futuro onde a visibilidade trans não seja apenas um lembrete anual, mas uma realidade diária.
1. Reconhecimento da identidade de gênero em dados oficiais
Apesar do trabalho de pesquisa e levantamento de informações realizados por organizações como a Antra e a Rede Trans Brasil — que, no último sábado (20), também lançou dossiê sobre registro de mortes de pessoas trans em 2024 –—, faltam dados oficiais sobre essa população. A exclusão vai além de números em planilhas: afeta condições de vida e acesso a direitos básicos, como educação e saúde.
“Existe uma subnotificação destes dados, uma vez que os órgãos oficiais do governo ainda não se propõem à realização de nenhuma pesquisa nem quantitativa e muito menos qualitativa a respeito da comunidade de pessoas trans no Brasil”, afirma o documento da Rede Trans Brasil. Essa reivindicação também já foi declarada em manifesto da 1ª Marsha Trans BR, em janeiro de 2024: “Clamamos pela inclusão de perguntas sobre identidade de gênero no Censo do IBGE, destacando que a fome tem raça, sexualidade, religiosidade e identidade de gênero!”.
O #Colabora também já mostrou o desrespeito à identidade de gênero até na hora – e depois – da morte em reportagem que conta a história de Amanda Souza, mulher trans de São Gonçalo, vítima de transfeminicídio, que teve negado o direito de ter o nome social registrado na certidão de óbito.
2. Fim da violência e do transfeminicídio
A violência contra pessoas trans e o transfeminicídio está no centro das preocupações do movimento – segundo levantamento da Antra, o perfil das vítimas são, majoritariamente, mulheres trans e pessoas transfemininas jovens e negras. “A luta pela segurança das travestis e mulheres trans não deve ser meramente reativa, mas proativa, e um diálogo contínuo sobre as leis existentes é necessário para garantir que as legislações sejam atualizadas para incluir explicitamente as identidades de gênero, e para que a proteção seja estendida às mulheres trans e travestis sem qualquer ressalva. O reconhecimento do transfeminicídio como feminicídio é não apenas uma questão de justiça social, mas uma questão de dignidade humana”, afirma o dossiê da Antra.
3. Direito ao uso de banheiros conforme a identidade de gênero
O uso do banheiro de acordo com a identidade de gênero já é uma prática comum, mas projetos de lei que impedem o acesso de pessoas trans a espaços adequados têm se multiplicado, e casos de proibições e retiradas forçadas têm se tornado mais frequentes em casas legislativas de todo o país. Segundo a Antra, há pelo menos 30 leis aprovadas que impedem o acesso das pessoas trans a banheiros, de acordo com seu gênero.
Em junho do último ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou recurso sobre o uso do banheiro por essa população ao tratar, em junho de 2024, de caso em que uma mulher trans foi impedida de usar o banheiro feminino por um funcionário de um shopping em Florianópolis (SC). Segundo o STF, o caso não apresentava uma questão constitucional a ser analisada. A Antra, entretanto, argumenta que “impedir pessoas trans e travestis de usar o banheiro é transfobia” que, após a decisão, lançou a campanha “STF Libera Meu XIXI”.
Com mais de 138 mil assinaturas no abaixo-assinado virtual, a iniciativa demonstra a importância deste tema para a comunidade trans. “Pessoas trans, em geral, já utilizam o banheiro de acordo com sua identidade de gênero. Isso só passou a ser visto como um problema quando a extrema-direita adotou uma agenda política prioritária contra os direitos trans, politizando o pânico e o medo através da disseminação massiva de estigmas negativos”, afirma texto do campanha da Antra.
4. Cotas para inclusão educacional e no mercado de trabalho
A implementação de cotas para pessoas trans em universidades e concursos públicos é uma reivindicação prioritária do movimento, como medida para promover a inclusão e a equidade, ajudando a combater a marginalização e a exclusão histórica. Algumas instituições federais e estaduais já adotam políticas afirmativas para estimular o ingresso de trans no ensino superior. Reportagem do #Colabora também mostrou que a falta de cotas para trans em concursos são mais uma barreira no acesso ao mercado de trabalho.
A baixa representatividade de pessoas trans no ensino superior e no mercado de trabalho formal demonstra a necessidade urgente de ações afirmativas. Dados da Antra revelam que menos de 0,3% da população trans está nas universidades, e cerca de 70% abandonam os estudos no ensino médio devido à violência e ao preconceito. Essas vivências se refletem no mercado de trabalho: conforme a mesma associação, 90% da população trans brasileira tem a prostituição como principal fonte de renda e única possibilidade de subsistência.
Em trecho de nota técnica sobre acesso à universidade, a Antra afirma que “as cotas para pessoas trans são uma medida essencial para promover a inclusão e a equidade dessa população em diversos setores da sociedade, especialmente na educação, em concursos públicos e no mercado de trabalho”.
5. Proteção da infância e juventude trans
A luta pelos direitos das crianças trans ainda é incipiente e enfrenta muita resistência. A principal barreira é a falta de reconhecimento, que impede o avanço na discussão de seus direitos, segundo a fundadora e presidente da ONG Minha Criança Trans — primeira organização não-governamental do Brasil a tratar exclusivamente das questões que envolvem os direitos de crianças e adolescentes trans. “Muito mais do que visibilidade, as crianças trans precisam urgentemente ter a sua existência reconhecida! Para a gente falar de direitos de crianças e adolescentes trans, a gente precisa primeiro falar do reconhecimento e naturalização da existência deles. Para que, assim, possamos lutar pelos seus direitos e defender suas vivências e adversidades”, afirma Thamyris Nunes, mãe de uma menina transgênero e diretora da ONG, que explicou os desafios em entrevista ao #Colabora. O manifesto da 1° Marsha Trans também pede pela juventude: “Clamamos pela inclusão de medidas específicas para a proteção de meninas e meninos trans no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Apelamos aos pais para que amem incondicionalmente seus filhos trans!”
6. Direito à saúde transespecífica no SUS
O acesso à saúde transespecífica no Sistema Único de Saúde (SUS) é uma reivindicação fundamental para a comunidade trans, que enfrenta barreiras de acesso e discriminação no sistema de saúde. O SUS conta com um Processo Transexualizador, que oferece acesso a procedimentos como hormonização, cirurgias de modificação corporal e genital, além de acompanhamento multiprofissional mas, como relatou o jornalista Caê Vasconcelos, ao contar em reportagem do #Colabora, a história do seu processo de transição de gênero, ainda são recorrentes os casos de transfobia médica.
O manifesto da 1ª Marsha Nacional pela Visibilidade Trans defende o acesso à saúde para todas as pessoas trans. “Exigimos a ampliação de ambulatórios especializados, cirurgias de afirmação de gênero e o fim de práticas discriminatórias. Demandamos uma maior oferta de cirurgias de afirmação de gênero, reconhecendo a importância desses procedimentos para o bem-estar e a autonomia das pessoas trans. Apelamos à desconstrução dos padrões binários na saúde, promovendo uma abordagem mais inclusiva e diversificada e ressaltamos a importância da luta das pessoas trans vivendo com HIV+, buscando garantir acesso igualitário a tratamentos e apoio”.
7. Reconhecimento das realidades de pessoas trans com deficiência
A sobreposição entre identidade de gênero e deficiência impõe desafios específicos e demanda um olhar atento às particularidades de cada pessoa. É preciso reconhecer que pessoas trans com deficiência enfrentam múltiplas formas de discriminação e exclusão, e que suas demandas e necessidades precisam ser consideradas na formulação de políticas e ações afirmativas.
Thomas Nader, homem trans e autista, 32 anos, entende na pele essa falta de reconhecimento. “Descobri a deficiência já na fase adulta, então enfrentei muito o famoso masking [estratégia para tentar assimilar comportamentos considerados “típicos”, para mascarar características de pessoas com autismo]. Tive que me adaptar por muitos anos, por ser uma pessoa trans, e agora entendo minhas diferenças e como isso está ligado a deficiência. No mercado temos sempre que ser 20 vezes melhor do que uma pessoa cis; tendo deficiência isso se intensifica”, conta o especialista em gestão de Recursos Humanos.
Conversar e expor esses atravessamentos é o primeiro passo. Thomas acha que “ser uma pessoa com deficiência na comunidade é algo que ainda precisamos falar mais. Mas, aos poucos, vamos nos encontrando e nos fortalecendo”. Esses encontros são possíveis, por exemplo, a partir do ValeMaps, um mapeamento de espaços acessíveis em diferentes cidades brasileiras, iniciativa do coletivo Vale PCD, que atua com as pautas de pessoas com deficiência LGBTQIA+.
8. Promoção da assistência e acolhimento para pessoas trans
A população trans reivindica a implementação de serviços assistenciais específicos, como abrigos para pessoas trans idosas e jovens expulsos de casa e programas de geração de renda, que atendam às suas necessidades. A falta de acesso a serviços assistenciais adequados coloca as pessoas trans em situação de risco e vulnerabilidade.
Para a Antra, espaços transcentrados (específicos para pessoas trans), são de vital importância, pois “garantem que as necessidades específicas de pessoas trans sejam atendidas de maneira adequada. Serviços de saúde, apoio psicológico, assistência social e jurídica podem ser oferecidos de forma sensível e informada, respeitando as particularidades dessa comunidade”.
Referências:
BENEVIDES, Bruna G. Dossiê: assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2024. Brasília, DF: Distrito Drag; ANTRA, 2025.
MANIFESTO DA 1ª MARSHA TRANS BR. 1ª Marsha Nacional pela Visibilidade Tr, Brasília, DF, 28 de janeiro de 2024.
NOGUEIRA, Sayonara Naider Bonfim; ARAÚJO, Tathiane Aquino. DOSSIÊ: Registro nacional de mortes de pessoas trans no Brasil em 2024: da expectativa de morte a um olhar para a presença viva de estudantes trans na educação básica brasileira. 9. ed. Rede Trans Brasil, 2025.