Desigualdade mata 21 mil pessoas por dia, afirma relatório da Oxfam

A Gávea e a Rocinha, lado a lado, no Rio: crise climática afeta ricos e provas, mas agenda urgente não circula pela população. Foto Custodio Coimbra

Na pandemia, mais de 160 milhões de pessoas caíram abaixo da linha da pobreza enquanto bilionários dobraram suas fortunas

Por Oscar Valporto | ODS 1ODS 10 • Publicada em 17 de janeiro de 2022 - 16:42 • Atualizada em 30 de janeiro de 2022 - 12:10

A Gávea e a Rocinha, lado a lado, no Rio: crise climática afeta ricos e provas, mas agenda urgente não circula pela população. Foto Custodio Coimbra

Relatório divulgado pela Oxfam – a pandemia colocou na pobreza mais de 160 milhões de pessoas e a renda de 99% da humanidade caiu durante os quase dois anos de enfrentamento da covid-19. “A desigualdade mata” destaca o título do documento, apontando que pelo menos 21 mil pessoas por dia ou uma pessoa a cada quatro segundos morrem vítimas da iniquidade social. Segundo a entidade, essa conta – baseada nas mortes globais provocadas pela pobreza, pela fome, pela falta de acesso à saúde pública, pela violência de gênero e pela crise climática – ainda é conservadora.

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Para reforçar o cenário de desigualdade, o relatório calcula, com base nos números da Forbes, que os 10 homens mais ricos do mundo mais que dobraram suas fortunas (de US$ 700 bilhões para US$ 1,5 trilhão) durante os dois primeiros anos da pandemia, com ganhos de US$ 15 mil por segundo ou US$ 1,3 bilhão por dia. De acordo com a Oxfam Brasil, o nosso país ganhou 10 novos bilionários, desde março de 2020, quando a pandemia foi declarada. O aumento da riqueza entre eles durante a pandemia foi de 30% (US$ 39,6 bilhões), enquanto 90% da população teve uma redução de renda de 0,2% entre 2019 e 2021. Os 20 maiores bilionários do país têm mais riqueza (US$ 121 bilhões) do que 128 milhões de brasileiros (60% da população).

A dura verdade que a pandemia nos trouxe é que o acesso desigual à renda e a oportunidades faz mais do que criar sociedades injustas, insalubres e infelizes: na verdade, ele mata as pessoas

Jayati Ghosh
Economia indiana do o Conselho de Economia da Saúde para Todos da OMS

O relatório da Oxfam lembra que 17 milhões de pessoas já morreram de covid-19, mas a análise dos números revela que pandemia fez a desigualdade recrudescer e mostrar sua face mais cruel. “A pandemia de coronavírus tornou-se efetivamente mais mortal, mais prolongada e mais prejudicial aos meios de subsistência por conta da desigualdade. A desigualdade de renda é um indicador mais assertivo para saber se você morrerá de covid-19 do que a idade”, destaca o documento.

Os pesquisadores da Oxfam analisaram estudos do FMI, do Banco Mundial,11 do Credit Suisse12 e do Fórum Econômico Mundial, todos indicando que a pandemia desencadeou um aumento na desigualdade nos países em todo o mundo. “A dura verdade que a pandemia nos trouxe é que o acesso desigual à renda e a oportunidades faz mais do que criar sociedades injustas, insalubres e infelizes: na verdade, ele mata as pessoas”, afirma a economista indiana Jayati Ghosh, integrante do Conselho de Economia da Saúde para Todos da OMS, que contribuiu para o relatório.

“Nos últimos dois anos, pessoas morreram após contraírem uma doença infecciosa porque não receberam vacinas a tempo, muito embora essas vacinas pudessem ter sido mais amplamente produzidas e distribuídas se a tecnologia tivesse sido compartilhada. Eles morreram porque não receberam cuidados hospitalares essenciais ou oxigênio quando precisaram devido à deficiência de sistemas de saúde pública com poucos recursos”, acrescentou Jayati Ghosh, em artigo que serve como prefácio para o relatório da Oxfam.

As desigualdades escararam os riscos no período de pandemia. O documento reúne dados de todo o mundo. “No Brasil, os negros são 1,5 vezes mais propensos a morrer de Covid-19 do que os brancos; uma pessoa afrodescendente que enfrenta profundas desigualdades educacionais, baixos níveis de educação e analfabetismo tem quase quatro vezes mais chances de morrer do que uma pessoa afrodescendente com ensino superior. Nos EUA, nativos americanos, latinos e negros têm de duas a três vezes mais chances de morrer de Covid-19 do que os brancos. Na Austrália e no Reino Unido, as pessoas pobres e as pessoas que vivem em áreas mais pobres têm quase 2,6 a 4 vezes mais probabilidade de morrer da doença do que as pessoas mais ricas”, aponta a Oxfam.

O documento enfatiza que, “em alguns países, as pessoas mais pobres têm quase quatro vezes mais chances de morrer de Covid-19 do que as mais ricas”, e acrescenta que a pandemia escancarou a desigualdade na saúde. “Estima-se que 5,6 milhões de pessoas morrem todos os anos por falta de acesso a atendimento de saúde em países pobres. Atendimento de saúde de boa qualidade é um direito humano, porém, muitas vezes, é tratado como um luxo para pessoas ricas. Ter mais dinheiro não apenas compra o acesso ao atendimento médico; ele compra também uma vida mais longa e saudável. Por exemplo, em São Paulo, no Brasil, pessoas que vivem nas áreas mais têm expectativa de vida 14 anos maior do que aquelas que vivem nas áreas mais pobres”, destaca o relatório ‘Desigualdade mata’.

Os pesquisadores da Oxfam lembram ainda que até mesmo as vacinas – instrumento definitivo para a contenção da pandemia – também serviram para escancarar a desigualdade. “Essas vacinas, que trouxeram tanta esperança a todos na Terra, foram desde o primeiro dia trancafiadas atrás de uma barreira de lucro privado e monopólio. Em vez de vacinar bilhões de pessoas em países de baixa e média renda, criamos bilionários das vacinas. O ano de 2021 é definido, sobretudo, por este vergonhoso apartheid vacinal, uma mancha na história da nossa espécie. Essa catástrofe provocada pelo homem ceifou a vida de milhões de pessoas que poderiam ter sido salvas em países com pouco acesso a vacinas”, denuncia o relatório.

O documento da Oxfam lembra que, quando a crise do coronavírus começou, quase metade da humanidade – 3,2 bilhões de pessoas – vivia abaixo da linha da pobreza do Banco Mundial, de US$ 5,50 por dia. A pandemia levou a um aumento acentuado da pobreza em todo o mundo e atualmente, há mais 163 milhões de pessoas, engrossando esse número trágico e vivendo com menos de US$ 5,50 por dia, em comparação com o início de 2020.

E as projeções apontam que a desigualdade, incrementada pela pandemia, só deve aumentar. O Banco Mundial estima que a renda dos 20% mais ricos da humanidade já está em recuperação em 2021 enquanto os 20% mais pobres devem perder mais 5% de sua renda em 2021. “Isso ocorre em grande parte porque o crescimento econômico está sendo retomado nas nações ricas, onde a maioria dos 20% mais ricos vive, enquanto o mesmo não é verdadeiro em países de baixa e média renda, onde vive a maioria dos 20% mais pobres. O abismo é o resultado do apartheid vacinal persistente”, enfatiza a Oxfam.

O documento também sugere que todos os governos deveriam tributar imediatamente os ganhos obtidos pelos super-ricos durante a pandemia e usar esse recursos para ajudar o mundo a enfrentá-la; redirecionar essa riqueza para salvar vidas, investindo em sistemas de saúde pública de qualidade e redes de proteção social; e reescrever as regras nas suas economias que criam essas diferenças colossais, além de agir de modo a distribuir a renda e mudar o poder na tomada de decisões econômicas.

“Neste momento, mudar de rumo é essencial. Precisamos de soluções sistêmicas, é claro: da reversão das desastrosas privatizações das finanças, do conhecimento, dos serviços e bens públicos, dos recursos naturais comuns. Mas também precisamos de políticas fiscais acessíveis, como a tributação das fortunas e das empresas multinacionais. E precisamos desconstruir as desigualdades estruturais de gênero, raça, etnia e casta que alimentam as disparidades econômicas”, aponta a economista indiana Jayati Ghosh, lembrando que o relatório da Oxfam indica que “a desigualdade é mortal, mas as soluções estão ao nosso alcance”.

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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