O método ‘papo reto’

Treino dos alunos do projeto social Faixa Preta de Jesus

Faixa Preta de Jesus

Por Marcelo Ahmed | Mapa das ONGsODS 10 • Publicada em 15 de agosto de 2016 - 08:00 • Atualizada em 3 de setembro de 2017 - 01:21

Treino dos alunos do projeto social Faixa Preta de Jesus
Treino dos alunos do projeto social Faixa Preta de Jesus
Aquecimento antes da aula de luta no Faixa Preta de Jesus

Quando dava entrevista para falar do seu projeto, o Faixa Preta de Jesus, Ricardo Cavalcante pediu licença ao repórter para receber com privacidade uma mãe, de pouco mais de 30 anos. Antes que a conversa de aproximadamente meia hora terminasse, entrou na sala o filho dela, de 15 anos. “A mãe achou em casa droga e uma pistola. Estava envergonhada, coitada. Esculachei o moleque. Dei um papo reto”, relatou Ricardo sobre a reunião com os dois, anunciando em seguida que o menino seria o mais novo integrante do trabalho que resgata jovens através das artes marciais.

“Papo reto” é a metodologia usada por esse homem de corpanzil, 48 anos, voz potente, para tirar jovens do mundo das drogas e do crime. Exemplos do que ele era antes de, 15 anos atrás, se converter ao Evangelho. Ricardo descreve o sistema de forma simples e direta: “Onde tem peru e boceta tem problema. O que a gente oferece é simples, igual a água”.

Mas na sua vida, e na da maioria dos assistidos num amplo galpão no Centro de Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, nada parece tão simples. Sua mãe veio de João Pessoa, capital da Paraíba, com ele na barriga, fruto de um relacionamento com o patrão. “No Rio, minha mãe virou prostituta. Aos 13 anos, conheci as drogas. Primeiro fumando maconha, depois cocaína. Comecei a roubar e a traficar. Virei mendigo em Copacabana e fiquei sete meses vivendo assim. Aí um dia me converti ao Evangelho e estou aí”, conta.

Maior orgulho de Ricardo é Thiago Lucas Fernandes, 23 anos, o Mamute. “Encontramos ele na cracolândia, pesando 30 quilos, cagado, mijado e cheio de mosca em cima”, lembra Ricardo, referendado por uma foto mostrando o rapaz dormindo na rua sob um cobertor.

Mamute dormindo na cracolândia
Mamute dormindo na cracolândia

Hoje, Mamute, que mede 1,81m, pesa 81 quilos e dá aulas principalmente para as crianças, de quem vive rodeado. “O Ricardo foi na cracolândia com meu pai e quando me viu me abraçou e me beijou. E eu fedia”, revela.

Atualmente professor de artes marciais e lutador profissional, Mamute começou trabalhando para o tráfico pouco antes dos 15 anos de idade, no Morro da Chatuba, em Mesquita, também na Baixada Fluminense. “Logo depois comecei a usar crack. E roubei dos produtos que vendia. Reclamaram na boca (de fumo), mas consegui sair com vida”.

Ao voltar à área onde moram os pais, dominada pela milícia, tentaram matá-lo e ele foi se refugiar na cracolândia, que funcionava em Manguinhos. “Fiquei um ano lá usando droga todo dia. Até que meu pai conheceu o Ricardo e os dois foram me resgatar”, lembra ele. “Ricardo veio e me deu um papo reto: Se continuar nessa, vai morrer. Ele me levou para a Igreja e disse: Não faço milagre. Vou te buscar em casa e vou te ligar de cinco em cinco minutos”.

O rapaz começou a treinar, mas Ricardo não parava de ligar. “Eu ficava bolado com ele. Tinha vezes que até desligava o celular”, relatou Mamute, há cinco anos livre das drogas e das ruas e referência no atendimento do Faixa Preta de Jesus. “Eu já gostava de luta. E agora, além de trabalhar numa parada profissional, vivo de luta e sou feliz”.

Ricardo e Mamute (de camiseta preta) no galpão do Faixa Preta de Jesus
Ricardo e Mamute (de camiseta preta)

O projeto social Faixa Preta de Jesus existe desde 2008 e, há quatro anos, funciona em um galpão de quase 2 mil m² na região central de Nova Iguaçu, com tatame espalhado por grande parte do espaço, que conta ainda com um octógono, um ringue e arquibancadas. É um ginásio esportivo. Em um canto, foi montada uma sala com carteiras onde são dadas aulas de reforço por professores voluntários, dentro das disciplinas do currículo escolar.

O batismo do projeto, segundo seu idealizador, veio de um sonho: “Deus me deu o nome. Faixa Preta de Jesus”, disse Ricardo, que é faixa roxa em Jiu Jitsu. Conta que começou o trabalho em três igrejas, de onde foi expulso, mas insistiu, até que conheceu o pastor Marcus Gregório, do Ministério Apascentar de Nova Iguaçu, atualmente seu maior parceiro.

Treino dos alunos do projeto social Faixa Preta de Jesus
Treino dos alunos no galpão em Nova Iguaçu

O projeto funciona de doações e financiamentos: o aluguel do galpão é pago pela Igreja; o Instituto Irmãos Nogueira (dos lutadores Minotauro e Minotouro) doou o tatame, o ringue e o octógono; o grupo Facility paga os professores e a Piraquê, doa biscoito e macarrão. Há ainda patrocinadores esporádicos, mas Ricardo quer alavancar o trabalho que criou funcionando como um grande marqueteiro. Nas redes sociais, há vídeos de apoio do jogador Neymar, da cantora Ivete Sangalo e do lutador Anderson Silva, entre outras personalidades.

Já passaram pelo Faixa Preta de Jesus, segundo as contas do seu idealizador, cerca de 22 mil jovens. Atualmente, mais de 400 frequentam as aulas de artes marciais, que acontecem nas noites de segunda, quarta e sexta e nas tardes de terça e quinta. Para treinar, basta ter mais de oito anos de idade e levar duas fotos, atestado médico e declaração da escola. “Se não estudar, a gente vai ver por quê”, afirma Ricardo.

Grupo de alunas do Faixa Preta de Jesus
Grupo de alunas do Faixa Preta de Jesus

Para gerenciar tudo e todos, Ricardo não economiza no gogó e potencializa suas ordens e broncas dando gritos que chegam do outro lado do galpão, ao mesmo tempo em que é todo carinho com seus pupilos, distribuindo beijos e biscoitos. Sobre o vínculo religioso, diz que frequentar a igreja depende da vontade e da necessidade de cada um. “Nós vemos um monte de gente que tava jogada no lixo e hoje tá arrebentando. A estratégia é essa: São quase 500 vagabundos que saíram da rua. Não trabalhamos com religião. Trabalhamos com papo reto”.

Marcelo Ahmed

Marcelo Ahmed é um jornalista carioca que começou a carreira em jornais impressos, passando por 'Ultima Hora', 'Tribuna da Imprensa', 'Jornal do Brasil' e 'O Dia'. Foi para a 'TV Globo' para trabalhar no Linha Direta, rodando pelo jornalismo diário, Fantástico e G1. Seu último emprego foi como assessor-chefe da ASCOM do Ministério Público do Rio. Tem dois prêmios Tim Lopes de Jornalismo Investigativo e uma Comenda da Paz por trabalhos em Direitos Humanos. E já é vovô de Théo.

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