Conservatório musical na favela

Apresentação da Orquestra Jovem do Brasil-Foto de Divulgação

Ação Social pela Música

Por Marcelo Ahmed | Mapa das ONGsODS 10 • Publicada em 19 de setembro de 2016 - 08:00 • Atualizada em 3 de setembro de 2017 - 01:21

Apresentação da Orquestra Jovem do Brasil-Foto de Divulgação
Apresentação da Orquestra Jovem do Brasil-Foto de Divulgação
Apresentação da Orquestra Jovem do Brasil

Seis de setembro de 2016. A tarde era das mais agradáveis. Sob a regência do maestro Jean Phillipe, jovens concertistas desfilavam clássicos de música erudita e popular, como Primavera (de Vivaldi), Libertango (de Piazzolla), Mourão (de Guerra Peixe) e Feira de Mangaia (de Sivuca/Glorinha Gadelha). Participavam de ensaio em um dos núcleos da Ação Social Pela Música (ASMB), no Morro dos Macacos, no bairro de Vila Isabel, Zona Norte do Rio. Única nota dissonante acontecia do lado de fora: por conta de uma operação policial na comunidade com Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), o som de um tiroteio deixou tensos professores e alunos, que tiveram dificuldade em deixar o local.

O núcleo do Morro dos Macacos é um entre nove onde há atividade desenvolvida pela ASMB, uma organização não governamental, sem fins lucrativos, que trabalha a inclusão social de crianças e adolescentes em comunidades em situação de vulnerabilidade por meio da música. Há ainda outras três unidades no Rio de Janeiro (Chapéu Mangueira, Alemão e Cidade de Deus, duas em Petrópolis e uma em Piraí (interior do Rio), uma em João Pessoa (Paraíba) e uma em Ji-paraná (Rondônia).

Os alunos estudam no segundo andar de um prédio no fim da Rua Torres Homem, subida do Morro dos Macacos. As aulas vão da iniciação musical até a formação da Orquestra Jovem do Brasil (OJB) passando pelo aperfeiçoamento na prática orquestral, com possibilidade de condução a universidades e à profissionalização.

A música clássica interpretada por esses jovens, transmitida no ensaio da orquestra ou que fluía fortuitamente das salas de aula, traz uma sensação diferente. Mas não há como identificar com precisão se é por carregarem bagagem de vida dramática ou se é nossa própria sensação diante da imagem desses meninos e meninas de origem carente honrando cada nota tirada de instrumentos que não fazem parte do cotidiano de favelas cariocas.

Iniciação musical

Felipe-Foto de Marcelo Ahmed
Luiz Felipe toca flauta transversa

Luiz Felipe, 16 anos, toca com bastante desenvoltura a flauta transversa, instrumento que começou a aprender há apenas um ano e meio: “Vem um sentimento, como se acontecesse sozinho, como se me levasse. Eu toco lembrando alguém que já se foi”, afirma Luiz Felipe, referindo-se principalmente ao irmão e ao tio falecidos.

Muitos jovens se interessaram espontaneamente pelas aulas. Todos estudam, alguns se preparam para o Enem ou fazem curso de línguas. Mas vivem em uma comunidade onde a vida não é fácil e, muitas vezes, aprender música clássica pode soar como luxo. “Há três anos, minha mãe falou que eu tinha que deixar de estudar aqui para trabalhar e ajudar dentro de casa. Eu estudava música desde os 15 anos. Meu irmão e meu padrasto estavam desempregados. Minha sorte é que eles conseguiram emprego e pude continuar meus estudos de música”, contou Lucas Freitas, 19 anos, que já dá aulas de violoncelo dentro da ASMB e faz parte da orquestra.

A ASMB foi criada em 1994 pelo maestro David Machado, que morreu em 1995, e por sua mulher, a violoncelista Fiorella Solares, que atualmente é a coordenadora do projeto. Foi inspirado no El Sistema, da Venezuela, do maestro José Antônio Abreu, que forma dezenas de orquestras, algumas de prestígio internacional. No país, há um total de 1.200 jovens atendidos e, no Estado do Rio, 850.

Desejamos que eles sejam conhecidos pelo talento e criatividade e não por tudo o que lhes falta

Fiorella, guatemalteca naturalizada brasileira e violoncelista profissional há 38 anos, diz que é importante democratizar a prática e o acesso à música clássica. “Desejamos que eles sejam conhecidos pelo talento e criatividade e não por tudo o que lhes falta”, afirma.

A conceituada professora de teoria musical Marcilda Clis, que atua no projeto, ressalta que, diferentemente da maioria das ONGs que trabalham nessa área, a ASMB não ensina só de ouvido: “Aqui se lê partitura. É um trabalho de seriedade”.

Trabalho voluntário

Segundo Fiorella, os professores são remunerados com um “pró-labore eventual”, quando há patrocínio. “Quando não há, eles atuam como voluntários durante meses, pelo menos aqui no Rio de Janeiro”, diz. Sobre a violência, ela acha que compromete o trabalho nas comunidades afetadas. “Estamos muito preocupadas com o esmorecimento das UPPs”.

Por conta dos conflitos recentes, já se pensa em um outro local nas imediações que não ofereça tantos riscos a alunos, professores e funcionários. Na terça-feira do 6 de setembro mencionado no início da reportagem, muitos alunos deixaram de ir à sede da escola de música por conta do tiroteio que acontecera na parte da manhã, mas que, à tarde, havia dado uma trégua, oferecendo uma aparente tranquilidade para quem chegasse nesse horário.

O comando das Unidades de Polícia Pacificadora informou que naquele dia houve uma operação realizada por homens da UPP do Morro dos Macacos e da Polícia Civil. Resultado: dois presos, drogas e uma granada apreendidas. E, além de um monte de gente aterrorizada, um trabalho social comprometido.

Marcelo Ahmed

Marcelo Ahmed é um jornalista carioca que começou a carreira em jornais impressos, passando por 'Ultima Hora', 'Tribuna da Imprensa', 'Jornal do Brasil' e 'O Dia'. Foi para a 'TV Globo' para trabalhar no Linha Direta, rodando pelo jornalismo diário, Fantástico e G1. Seu último emprego foi como assessor-chefe da ASCOM do Ministério Público do Rio. Tem dois prêmios Tim Lopes de Jornalismo Investigativo e uma Comenda da Paz por trabalhos em Direitos Humanos. E já é vovô de Théo.

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