Receita para fechar uma universidade pública de referência

Com os salários atrasados, alguns docentes e técnicos não têm dinheiro sequer para arcar com o custo das passagens de ônibus, trem ou metrô. Foto Tasso Marcelo/AFP

Salários atrasados, professores pedindo exoneração, pesquisas comprometidas, projetos de extensão paralisados e alunos desistindo das inscrições

Por Marcelo Kischinhevsky | ODS 4 • Publicada em 17 de abril de 2017 - 09:25 • Atualizada em 18 de abril de 2017 - 12:35

Com os salários atrasados, alguns docentes e técnicos não têm dinheiro sequer para arcar com o custo das passagens de ônibus, trem ou metrô. Foto Tasso Marcelo/AFP
Com os salários atrasados, alguns docentes e técnicos não têm dinheiro sequer para arcar com o custo das passagens de ônibus, trem ou metrô. Foto Tasso Marcelo/AFP
Com os salários atrasados, alguns docentes e técnicos não têm dinheiro sequer para arcar com o custo das passagens de ônibus, trem ou metrô. Foto: Tasso Marcelo/AFP

As rampas dos 12 andares do cinzento prédio principal do campus Maracanã voltaram a receber o vaivém de alunos, funcionários e professores, após três meses e meio de interrupção das atividades de graduação. Mas há sinais de que este não é um típico início de semestre na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ): em toda a parte, há cantinas fechadas e o movimento está bem abaixo do normal. Com o décimo-terceiro e os salários de fevereiro e março atrasados, um número indeterminado de docentes e técnicos administrativos não tem dinheiro no bolso sequer para arcar com o custo das passagens de ônibus, trem ou metrô. O mesmo acontece com os estudantes que têm bolsas Proiniciar (destinadas aos cerca de 8 mil aprovados pelo sistema de cotas para negros, egressos da rede pública de ensino, deficientes, entre outros com perfil de baixa renda), de Estágio Interno Complementar e de Extensão, que também não recebem há dois meses.

É preciso fazer um pente-fino. Não é possível querer aumentar a contribuição previdenciária dos servidores para cobrir o rombo da Previdência sem rever a farra do crescimento dos cargos em comissão e das isenções tributárias

Esta é só a face mais visível do colapso da quinta melhor universidade do Brasil e 11ª da América Latina, de acordo com o ranking Best Global Universities 2016, elaborado com base na performance das instituições de ensino superior em termos de pesquisa acadêmica, número de professores premiados e reputação regional e global. Um colapso que resulta de uma política de terra arrasada promovida por um governo estadual incapaz de reduzir gastos com cargos comissionados ocupados por afilhados políticos e de rever isenções fiscais que, segundo dados do hoje desacreditado Tribunal de Contas do Estado, representaram renúncia de R$ 138 bilhões em impostos apenas entre 2008 e 2013. Cifra que certamente é bem maior, já que a política de benefícios indiscriminados foi generosamente estendida a joalherias (notórias depois do noticiário sobre a ostentação do ex-governador Sérgio Cabral, hoje recluso no presídio conhecido como Bangu 8, e sua mulher, Adriana Ancelmo), empresas de ônibus e até termas.

No início da noite, apagões são comuns, o que provoca danos em equipamentos eletrônicos nos laboratórios e salas de aula. Foto Tasso Marcelo/AFP
No início da noite, apagões são comuns, o que provoca danos em equipamentos eletrônicos nos laboratórios e salas de aula. Foto: Tasso Marcelo/AFP

O rombo nas contas públicas em 2016, publicado sem alarde e com atraso pelo Governo do Estado, supera R$ 10 bilhões. Isso se pudermos dar algum crédito à contabilidade do governador Luiz Fernando Pezão, que fundiu as secretarias de Fazenda e Planejamento e Gestão, criando uma tremenda desorganização administrativa que resultou em atrasos recorrentes de salários a partir de 2015, mesmo quando havia dinheiro em caixa. “Precisa ser feito um pente-fino. Não é possível querer aumentar a contribuição previdenciária dos servidores para cobrir o rombo da Previdência sem rever a farra do crescimento dos cargos em comissão e das isenções tributárias”, defendeu Lucieni Pereira, diretora da Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil, durante evento da Comissão da Verdade Fiscal, promovido por pesquisadores e professores da Faculdade de Direito da UERJ.

Com as contas em desordem, o governador Pezão esticou a corda, que arrebentou do lado mais fraco: servidores do Judiciário, do Ministério Público e do Tribunal de Contas (inclusive os seis conselheiros presos na Operação O Quinto do Ouro) continuam a receber salários antes mesmo do fim do mês trabalhado. Com um mês de atraso, em média, são pagos os servidores da Educação e da Segurança. Só que a UERJ não é subordinada à Secretaria de Educação, e sim à de Ciência e Tecnologia. Com isso, professores e técnicos da universidade ficam no fim da fila, entre os mais de 200 mil servidores que têm recebido em até sete parcelas – com calendário ainda mais incerto devido aos frequentes arrestos judiciais para pagamento de dívidas.

A UERJ não é cara, como insistem alguns em mostrar, e muito menos uma caixa preta

Pezão espalha aos quatro ventos que a UERJ é uma “planilha cara”, e seus representantes diretos na interlocução com a universidade, como o ex-secretário de Ciência e Tecnologia Gustavo Tutuca, repetem a justificativa para os atrasos a quem quiser ouvir. De fato, a instituição é como uma cidade de pequeno porte. Aos 66 anos, com seis campi em cinco municípios fluminenses, a universidade deixou de ser o escolão encarado como bico por seus professores, que não eram remunerados para pesquisar nos anos 1980 e 1990. Hoje, oferece 33 cursos de graduação, 54 de mestrado, 42 de doutorado e 142 de especialização, segundo dados da Reitoria. Contabiliza 32.220 estudantes de graduação, dos quais mais de 29 mil na modalidade presencial, mais cerca de 4 mil em cursos de mestrado e doutorado, outros 2 mil em cursos de especialização, além dos 1,1 mil nos ensinos fundamental e médio matriculados no Instituto de Aplicação, o CAp-Uerj. Conta com 2.977 professores, a maioria absoluta (2,2 mil) com doutorado, e 4.519 funcionários. Administra, ainda, dois centros médicos de atendimento e pesquisa: o Hospital Universitário Pedro Ernesto, com mais de 500 leitos, 10 mil internações e mais de 180 mil consultas ambulatoriais especializadas por ano, e a Policlínica Piquet Carneiro, responsável por mais de 200 mil consultas e cerca de 8 mil cirurgias ambulatoriais por ano.

Em 2012, deixou de ser a única universidade de grande porte do país a não ter um regime de dedicação exclusiva para professores. Em quatro anos, pouco mais de 500 docentes aderiram e passaram a receber um adicional de 65% sobre o salário-base, sem direito a incorporação na aposentadoria. Basicamente o mesmo número de professores dispõem de uma bolsa de produtividade da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (FAPERJ), conhecida como Prociência e instituída pela Lei Estadual 5.343, de 8 de dezembro de 2008. Prociência envolve um processo concorrido, em que o candidato tem que demonstrar alta produtividade intelectual e técnica, bem como envolvimento com atividades administrativas. Com a bolsa e a dedicação exclusiva, professores têm equiparação salarial aos colegas de universidades federais. Só que o pagamento da bolsa, que já vinha ocorrendo de modo irregular, foi suspenso em outubro, sem explicações da FAPERJ. Curiosamente, o acúmulo de Prociência e adicional de dedicação exclusiva é um dos motivos alegados pelo deputado Tutuca, ex-secretário de Ciência e Tecnologia, para coletar assinaturas na ALERJ com o objetivo de abrir uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a supostamente cara planilha de salários da universidade.

Em janeiro, a Secretaria de Fazenda alardeou que, em 2016, havia repassado R$ 767,4 milhões à universidade, o equivalente a 76% do orçamento aprovado pela Assembleia Legislativa (ALERJ), dos quais R$ 578,2 milhões para pessoal e R$ 189,2 milhões para custeio. “A UERJ não é cara, como insistem alguns em mostrar, e muito menos uma caixa preta”, reagiu o reitor Ruy Garcia Marques, em nota, explicando que o orçamento da instituição aprovado para o ano era de R$ 1,1 bilhão. A conta não fecha, e por isso os servidores receberam apenas 11 das 13 folhas de pagamento, enquanto o bandejão fechava as portas e o lixo se acumulava pelos campi.

Sem fôlego para cumprir com seus compromissos orçamentários, o governo começou a pedalar e empurrou o dia de pagamento do segundo para o quinto e depois o décimo dia útil. Verbas de custeio desapareceram, e funcionários terceirizados de segurança e limpeza amargaram até seis meses de atraso nos pagamentos, comprometendo o funcionamento da universidade. Professores e técnicos decidiram entrar numa greve da qual não havia saída vitoriosa possível. O movimento se arrastou por quatro meses e foi encerrado com o pagamento dos atrasados às vésperas da Olimpíada. A UERJ, vizinha do Estádio do Maracanã, permaneceu fechada mais um mês devido aos Jogos, servindo de estacionamento e base de apoio para o Comitê Olímpico Internacional (COI). As aulas foram, enfim, reiniciadas em setembro e as aulas do primeiro semestre foram até as vésperas do Natal. O restaurante universitário reabriu, com preços mais altos. Havia mais dúvidas do que esperanças na virada do ano, quando o calendário marcava o início das aulas no segundo semestre de 2016 para 17 de janeiro de 2017.

Só que as aulas não começaram. As empresas de limpeza, segurança e administração do restaurante universitário recebiam irregularmente e começaram a demitir em massa. Uma nova firma de limpeza teve que ser contratada, e negociações foram costuradas para a reabertura do bandejão, em meio a uma série de incertezas. A Reitoria, amparada pelo Fórum de Diretores, anunciou que as aulas só voltariam após o pagamento dos atrasados e do custeio. Mas Pezão jogou mais gasolina no fogo ao dizer que a UERJ estava em greve há seis meses e que iria cortar 30% dos salários de professores e técnicos. Depois recuou, diante da impossibilidade de levar a bravata a cabo, alertado pela Procuradoria do Estado de que não havia base legal para o corte.

Aos 66 anos, a UERJ oferece 33 cursos de graduação, 54 de mestrado, 42 de doutorado e 142 de especialização. Foto Tasso Marcelo/AFP
Aos 66 anos, a UERJ oferece 33 cursos de graduação, 54 de mestrado, 42 de doutorado e 142 de especialização. Foto: Tasso Marcelo/AFP

O esvaziamento se aprofundou com os atrasos ainda maiores nos pagamentos de salários e bolsas. A queda no movimento foi tão prolongada que levou ao fechamento de diversos negócios no entorno do campus Maracanã, como o tradicional bar e restaurante Planeta do Chopp. Cantinas e serviços de cópias reduziram o pessoal ao mínimo possível para manter atividades parciais e atender aos alunos de pós-graduação, que vêm tendo aulas normalmente na maioria das unidades acadêmicas.

Na graduação, as aulas voltaram no último dia 10 de abril sem que se atendessem às principais reivindicações, e o cenário é de destruição. Entre os aprovados no último vestibular, o percentual dos que não se matricularam oscila na faixa de 50% em todos os cursos. Os mais procurados poderão preencher as vagas na rematrícula, mas há algumas carreiras que recebem historicamente menos alunos, o que causa apreensão entre professores das mais diversas áreas. Aliás, 80 professores jogaram a toalha e pediram exoneração no ano passado, optando por outros empregos. Ainda não há dados sobre quantos docentes decidiram abrir mão da dedicação exclusiva para assumir vagas em regime parcial em universidades privadas.

O resultado é devastador. Pesquisas estão comprometidas, e diversos projetos de extensão, como o Escritório Modelo de Direito, que atendia à população gratuitamente, estão paralisados. Em março, um disjuntor queimou e a página oficial da UERJ na internet ficou fora do ar por mais de uma semana. A subestação da Light que atende o campus encontra-se com equipamentos obsoletos e em nível de deterioração tão grande que funcionários da área de tecnologia da informação da universidade temem por uma pane que derrube os servidores e comprometa a própria memória da instituição. No início da noite, apagões são comuns, e não raro a sobrecarga no momento em que a luz é religada provoca danos em equipamentos eletrônicos nos diversos laboratórios e salas de aula.

Professores e técnicos, muitas vezes endividados até o limite do crédito consignado (30% da renda) e sem outra fonte de renda, sofrem humilhações devido ao atraso nos salários e bolsas. Muitos foram despejados por não conseguir pagar o aluguel em dia; outros estão devendo a agiotas, correndo risco de vida; vários enfrentam distúrbios físicos e emocionais, como depressão. Cresce, com isso, a possibilidade de os professores entrarem em greve – os técnicos já estão com os braços cruzados desde o início do ano.

A expansão e a consolidação conquistadas a duras penas ao longo da última década por uma universidade que virou sinônimo de inclusão, pioneira na adoção de cotas sociais em seus vestibulares, estão sendo destruídas em tempo recorde. Levará pelo menos outra década para a UERJ se recuperar da ação das saúvas instaladas no Palácio Guanabara.

Neste contexto, surpreende a passividade da população diante desse ataque ao ensino superior. Afinal, é um futuro melhor para os jovens do Rio que está sendo roubado, e pelos mesmos que assaltaram os cofres públicos e desorganizaram o estado em nome de interesses pessoais. Se a sociedade não reagir, não há dúvidas de que o desmonte da universidade vai inspirar outros governantes Brasil afora, aqueles que veem a educação e a saúde como despesas, e não como investimento.

Marcelo Kischinhevsky

Professor do Núcleo de Rádio e TV da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGCOM/UERJ), é doutor e mestre pela Escola de Comunicação da UFRJ, onde também se formou em Jornalismo. Autor de livros como Rádio e mídias sociais (Ed. Mauad X), trabalhou em veículos como Jornal do Brasil e O Dia ao longo de 15 anos.

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