Comunidade judaica racha no apoio a Bolsonaro

Partidários do candidato do PSL minimizam a presença do símbolo nazista em pichações com o nome dele

Por Simone Intrator | ODS 9 • Publicada em 25 de outubro de 2018 - 08:07 • Atualizada em 26 de outubro de 2018 - 21:45

Suástica pichada com o número de Bolsonaro na Universidade Federal de Mato Grosso. Reprodução
Suástica pichada com o número de Bolsonaro na Universidade Federal de Mato Grosso. Reprodução

No muro das universidades. Na porta do apartamento de uma moradora de Botafogo, no Rio. Na sala de aula da PUC-Rio. Na biblioteca da Unicamp. Na parede da capela de Nova Friburgo. Nos muros de diversas cidades brasileiras. Suásticas vêm sendo pichadas desde antes do fim do primeiro turno das eleições presidenciais no Brasil. A onda de violência extremista que se vale de um símbolo nazista, usado por Adolf Hitler na Alemanha dos anos 1930 para perseguir o povo judeu, não foi suficiente para a união do grupo nas urnas.

Grande parte dos 107.331 judeus brasileiros — somos mesmo pouquíssimos, segundo o Censo do IBGE de 2010 — vota no candidato do PSL, Jair Bolsonaro. Outra vê com preocupação a ascensão do capitão nas pesquisas e atribui a ela a maré de agressões gravíssimas dos últimos 20 dias (temos de lembrar que, além das suásticas, estudantes foram agredidos com barras de ferro no Rio; o capoeirista Moa do Katendê foi assassinado em Salvador; pichações homofóbicas proliferaram).

Os que apoiam Jair Bolsonaro o fazem por ele ser antipetista como boa parte da elite brasileira, que é contra as cotas, o Bolsa Família e qualquer forma de ampliação de direitos da população como um todo. Isso já era esperado

Grupos nas redes sociais e no WhatsApp começaram a se organizar. O Judeus Pela Democracia, recém-criado, levou Fernando Haddad, candidato do PT à presidência, nesta terça (23) à Associação Scholem Aleichem, organização que se autointitula laica, democrática e defensora dos direitos das minorias. No encontro, Haddad disse aos judeus: “Vocês são o povo do Livro e eu aprendi a amar os livros com o povo de vocês”.

No movimento Judeus Contra Bolsonaro, uma das integrantes, Monica Fagundes, produziu material de campanha associando valores da tradição judaica à democracia, ao combate de fake news, à defesa das minorias e contra a tortura. A cisão está presente na comunidade, como no resto do país, e explicar os motivos não é missão fácil.

Para dar mais uma pitada de complexidade ao cenário já caótico, o presidente da Federação Israelita do Estado do Rio de Janeiro (Fierj), o advogado criminalista Ary Bergher, declarou em vídeo na última semana, durante encontro com o braço-direito de Jair Bolsonaro, Gustavo Bebianno, o apoio da instituição ao PSL: “…em nome da Conib (Confederação Israelita do Brasil), por intermédio de seu presidente, Fernando Lotemberg, e eu, Ary Bergher, presidente da Federação Israelita, encaminhamos este documento de apoio à democracia (…) e de apoio ao nosso presidente”.

O ato foi considerado uma irregularidade ao estatuto da Fierj. E Bergher falou indevidamente em nome da Conib, já que a confederação entregou documentos iguais aos dois presidenciáveis. Quarenta e oito horas depois, o advogado se licenciou após ter sido acusado de agredir verbal e fisicamente e ameaçar de morte uma senhora de 88 anos durante o Festival de Dança Israeli do Rio, no último fim de semana no Clube Hebraica, em Laranjeiras. A vítima é uma das responsáveis pela programação cultural do clube. A Hebraica Rio já havia sido palco de outra polêmica, em abril de 2017, ao receber Jair Bolsonaro para uma palestra em que ele proferiu frases racistas. O evento, talvez, tenha sido o primeiro grande racha na imagem pública dos judeus.

Bolsonaro em encontro na Hebraica, em abril: frases racistas. Foto de divulgação
Bolsonaro em encontro na Hebraica, em abril: frases racistas. Foto de divulgação

Para a historiadora Keila Grinberg, professora titular do Departamento de História da Uni-Rio, que durante anos deu aulas de História Judaica numa escola israelita do Rio, é importante ressaltar que há vários grupos de judeus se opondo e se organizando para frear a ascensão do candidato de extrema-direita. Não só os recém-criados, como os Judeus Pela Democracia, como alguns segmentos dos movimentos juvenis. “Os que apoiam Jair Bolsonaro o fazem por ele ser antipetista como boa parte da elite brasileira, que é contra as cotas, o Bolsa Família e qualquer forma de ampliação de direitos da população como um todo. Isso já era esperado”, aponta a professora.

Ela confessa seu espanto. “Imagina-se que os judeus, por conta do seu passado, não deveriam votar na extrema-direita. Essas pessoas, ou suas famílias, que sofreram com o extremismo, não se chocam hoje ou tentam negar que as suásticas tenham de fato caráter antissemita. Porque admiti-las deixa esses eleitores numa posição moralmente desconfortável demais”.

A única pregação dele foi contra o kit gay nas escolas. Mas ele representa a todos. Não há propostas de governo contra mulheres, pobres ou homossexuais. A esquerda usa como tática a criação de rótulos para ele porque não consegue provar que é  um candidato corrupto

A questão que rachou a comunidade judaica ficou evidente até mesmo no show de Roger Waters, que aconteceu nesta quarta-feira, no Maracanã. Por meio de projeções no gigantesco telão de alta resolução, ele mandou mensagens para a plateia a favor dos direitos humanos e atacando políticos que considera “neofascistas”. “Resistir ao anti-semitismo”, dizia uma das frases.

O comerciante Natan M. Benchimol, judeu, 30 anos, argumenta que as pichações de suásticas não podem ser atribuídas à ascensão do candidato do PSL. Segundo ele, Bolsonaro não propaga ódio às minorias, principalmente aos judeus — seria um candidato pacífico, que mobilizou manifestações sempre pacíficas, vítima de difamações da esquerda. “A única pregação dele foi contra o kit gay nas escolas. Mas ele representa a todos. Não há propostas de governo contra mulheres, pobres ou homossexuais. A esquerda usa como tática a criação de rótulos para ele porque não consegue provar que é  um candidato corrupto”

Benchimol acredita que devido à imensa disseminação de fake news, Bolsonaro não pode ser comparado a Hitler, porque o que aconteceu na Alemanha não pode ser banalizado. “Com relação a Hitler, como seria possível um presidente implementar o fascismo se este mesmo presidente defende a liberação das armas? O nazismo pregava o desarmamento, como faz o PT. Como seria imposto um regime como este com a população armada?”, defende. “Ele estaria jogando ao contrário. Seu discurso conservador não pode ser comparado ao fascismo”.

Mensagem no telão do show de Roger Waters, no Maracanã, Rio de Janeiro (Foto Simone Intrator)
Mensagem no telão do show de Roger Waters, no Maracanã, Rio de Janeiro (Foto Simone Intrator)

O comerciante tampouco enxerga divisão da comunidade. “Uma pequena parcela dos judeus de esquerda, liderada por movimentos juvenis de esquerda, como Habonim Dror e Hashomer Hatzair, que fazem muito barulho, está contra Bolsonaro. Mas é só constatar a expressiva votação dele em Israel para ver que a comunidade não está partida.” Benchimol repete o discurso “do cidadão de bem que está cansado de ser roubado” e do “voto da classe média trabalhadora que paga uma alta carga de impostos”. E garante: Bolsonaro é o que mais representa a comunidade judaica porque sempre cita sua admiração por Israel, “ao contrário dos partidos de esquerda que são antissemitas”.

Daniel Becker, pioneiro da Pediatria Integral – conceito que propõe olhar para a criança de forma mais abrangente –, integrante do Judeus Pela Democracia, vê com muita tristeza o que está acontecendo no cenário eleitoral brasileiro, em especial na comunidade judaica. Para ele, há uma onda de ódio se disseminando, muito pelas características da internet, onde não há o confronto olho no olho, e pela educação antiesquerdista que tomou conta da sociedade brasileira, chegando ao ponto de se chamar de comunistas pessoas que defendem direitos humanos, as minorias e a educação pública de qualidade.

“Movimentos como “Vem pra rua” e MBL (Movimento Brasil Livre), de extrema-direita, foram se popularizando a tal ponto que criaram uma cultura na qual os valores que a esquerda defendem são criminalizados”, constata ele. Qualquer pessoa que mencione direitos humanos, qualquer artista que fale em cultura, qualquer um é chamado de vagabundo, comunista. A estratégia é cultural, de mudança de valores de uma sociedade inteira, que remete diretamente ao fascismo”.

Becker lembra, então, que Joseph Goebbels (ministro da Propaganda do regime nazista) agiu exatamente assim: educando as massas. “O petista, a esquerda, é o novo judeu. E é incrível que a comunidade judaica esteja também ela mergulhada nesse sistema que equaliza tudo que é esquerda ao demônio”, lamenta. “É terrível ver judeus acreditando num candidato mundialmente reconhecido como neofascista, que apoia o que apoia. Os judeus são predominantemente ricos e conservadores, poderiam não votar na esquerda. Mas existe uma diferença brutal entre apoiar um conservador e apoiar um neofascista. Como as pessoas não conseguem vislumbrar que os esquerdistas são os novos judeus e que o que eles estão apoiando é um movimento neofascista com as mesmas estratégias que Hitler usou na Alemanha e deu no que deu?”, questiona o pediatra.

Ele se agarra à tradição de seu povo e na Torá (livro sagrado dos judeus) para lembrar o valor à diversidade, à dúvida. “O Talmude (livro com os registros das discussões rabínicas) é baseado na discussão e no debate. E a gente está indo na direção oposta disso tudo. Uma parcela importante da comunidade judaica está apoiando um candidato neofascista que ameaça trazer para o Brasil o mesmo tipo de sistema de uma Alemanha dos anos 1930, mas desta vez o objeto de perseguição talvez não sejam os judeus, mas, sim, os negros, os gays, qualquer defensor dos direitos humanos, qualquer professor de faculdade que seja a favor do Estado e contra a perseguição. É um candidato que promove milicianos que percorrem as ruas matando gente, oprimindo pessoas, batendo em estudantes com barras de ferro, assassinando capoeiristas, mutilando mulheres, pichando suásticas em muros”, critica. “Judeus estão votando junto com os neonazistas. É um fenômeno incompreensível que só pode ser minimamente entendido pela análise de uma estratégia goebbeliana de comunicação de massa muito bem-sucedida”.

A jornalista e administradora Laila Benchimol, de 33 anos, irmã de Natan, também eleitora de Bolsonaro, não vê semelhanças entre o candidato e o ditador que liderou a Segunda Guerra Mundial. “Ele me representa como uma oposição ao PT e ao regime de esquerda. Ele não defende a morte de inocentes, mas de bandidos. Quis a redução da maioridade penal para prender Champinha (Roberto Aparecido Alves Cardoso), que tinha 16 anos quando cometeu o assassinato de Liana Friedenbach e seu namorado em São Paulo, em 2003”, explica ela. “Defendo o Bolsa Família, sou a favor do aborto, mas quero menos poder ao Estado. E também sou a favor do porte de armas. Essa imagem de semelhança com Hitler foi criada pelo PT e pela oposição. Não é real. E quanto aos judeus, Bolsonaro é amigo de Israel. Já visitou o país várias vezes e defende Jerusalém como sua capital”.

O advogado Ricardo Brajterman acredita que muitos judeus votam em Bolsonaro por ele ser o candidato que de forma mais incisiva e veemente se diz a favor de Israel. “A imagem que muitos eleitores judeus têm da esquerda é aquela em que Babá, do PSOL, há mais de dez anos, aparece queimando a bandeira de Israel, atitude tão truculenta e abominável quanto o discurso homofóbico, racista e sexista do candidato do PSL”, lembra. “Mas o que se deve de fato observar é que o que pode ser bom só para meu núcleo pode não ser para a sociedade. O antissemitismo cresceu nos Estados Unidos a partir do momento em que Donald Trump declarou seu amor pelos judeus, deixando de lado as religiões de matriz africana. E quem passou pelo o que os judeus passaram deve ficar atento não somente à perseguição de que pode ser vitima, mas também a da que outras minorias podem sofrer”, pondera.

Muitos judeus que declararam voto em Jair Bolsonaro nas redes sociais e em grupos de WhatsApp não quiseram ter suas imagens atreladas ao candidato nesta reportagem.

Simone Intrator

É jornalista e por 17 anos trabalhou nos jornais O Globo e Extra, no Rio, nas editorias de saúde, turismo e cidade. Também foi autora de uma coluna sobre sobre literatura no suplemento infantil Globinho e, em 2014, lançou o livro Parque e Jardins: refúgios cariocas, da editora Papelera Cultural. Mãe da Marina, de 15 anos, e do Rodrigo, de 11, Simone há três anos estuda psicopedagogia para se dedicar às suas duas maiores paixões: educação e crianças.

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