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Pelo direito inalienável ao som e à fúria

Silenciamento de mulheres vítimas de abusos, sob as bênçãos do pacto da “broderagem” masculina, é mais uma violência misógina que nos é imposta cotidianamente

ODS 16ODS 5 • Publicada em 21 de janeiro de 2025 - 09:49 • Atualizada em 21 de janeiro de 2025 - 13:58

Eu nunca li a obra de Shakespeare, responsável por uma expressão que sempre me encantou, juntando duas palavras aparentemente feitas uma para a outra: “som” e “fúria”. Sempre invejei um pouco a precisão poética e pragmática e a interdependência ideal entre os verbetes: é difícil sentir fúria em silêncio e é difícil estar em silêncio quando a fúria nos consome. A menos que você seja mulher.

De nós, espera-se que estejamos sempre em tom baixo, contidas, quietas, discretas, sem sinal de som ou de fúria – o que me deixa ainda mais furiosa só de escrever a respeito. Recentemente, ouvi o episódio da Rádio Novelo que tem causado furor pela internet desde que foi ao ar. Não vou entrar em detalhes sobre o episódio porque não é a questão.

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Mas desde que ouvi o episódio, não consigo parar de pensar em como tentam, de todas as maneiras, nos impor um silêncio absoluto sobre as dores e violências que nos são inflingidas. Para além das pessoas públicas envolvidas nesse caso específico,  comecei a pensar como esperam sempre que a gente fique em silêncio sobre o próprio trauma- seja ele qual for. Sob risco de sermos tachadas de “histéricas, vingativas” e sabe-se o que mais caso decidamos irromper, em altos e bons som e fúria, sobre os abusos que nos impõem. Além de carregarmos as cicatrizes, querem que a gente faça sem incomodar, sem fazer barulho, sem protagonismo da nossa própria dor.

Mulheres têm o direito inalienável ao som e à fúria (Ilustração: RosZie / Pixabay)
Mulheres têm o direito inalienável ao som e à fúria (Ilustração: RosZie / Pixabay)

“Quer destruir a vida do cara”, “Vingativa”, “Maluca”, “Não consegue superar essa história”, “Mas tem que ver se foi isso mesmo que aconteceu”…Pergunte a qualquer mulher que sofreu abuso e eu tenho certeza absoluta de que todas foram atacadas quanto à veracidade do que relataram, nos casos em que tiveram coragem para expor o que sofreram.

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“Ah, isso é cultural”. Ao cravar o que se tornaria o emblema “não se nasce mulher, torna-se mulher,” Simone de Beauvoir já enfatizava que o gênero é uma construção cultural e social, não uma essência biológica e imutável. Assim, ela abre as portas para a gente compreender como a cultura patriarcal determina o papel das mulheres  na sociedade e molda sua identidade ao longo da história, mostrando que a opressão feminina é um produto de processos culturais cons-tru-í-dos atendendo a certos interesses,  e não uma condição natural, dada, imutável.

A tentativa de nos manter caladas sobre as violências que sofremos é a tentativa burra de tentar manter a cultura presa em uma gaiola, estática. Por mais que haja um sólido pacto da masculinidade, uma broderagem pronta a nos desqualificar como loucas e invalidar o que dizemos, não há isolamento acústico no mundo que abafe o som de uma voz coletiva. O silêncio vitimou e ainda vai vitimar muitas mulheres, mas a cada vez que uma consegue romper a mordaça, ela fala por todas nós.

Toda mulher tem um arsenal bem guardado de raiva potencialmente útil contra aquelas opressões, pessoal e institucional, que fez com que aquela raiva existisse. Focadas com precisão, elas podem se tornam poderosas fontes de energia servindo ao progresso e à mudança

Audre Lorde
Escritora e feminista

E vez ou outra, encontramos algumas brechas. Com a corajosa e dolorosa história de Gisèle Pelicot,  que decidiu levar a público o julgamento do marido e de outros 50 homens acusados de estuprá-la após ser dopada por ele. Com o caso de Mari Ferrer, jogada ao escrutínio público. Anielle Franco, que foi silenciada por tanto tempo e desrespeitada em seu próprio silêncio. Tantas outras mulheres que relatam suas dores apesar do medo de represália, de violência, ou, no mínimo, de julgamento.

Cada vez mais,  tenho pensado em quanto somos interditadas de sentir raiva como algo legítimo, mesmo diante das maiores atrocidades praticadas contra nós. Desde pequenas, aprendemos a neutralizar, leia-se entubar, nossa ira. “Menina não briga”, “Não seja mal educada”, “Não responda”, “Seja obediente”, “Vai dar um beijo no tio, sim”. Querem que aceitemos o que vier  – e nunca é só bom -serenas, tranquilas, subservientes. E caladas, de preferência.

Desde que descobri, uns bons anos atrás, Audre Lorde, autointitulada “poeta, negra e lésbica”, mais do que minha autora feminista favorita, ela se tornou um guia, uma guru. E dois trabalhos seus falam exatamente de pontos que me pegaram desde que ouvi o dito episódio da Rádio Novelo: a raiva que nos é negada, e o silêncio que nos é imposto*. Obviamente, ela fala de uma perspectiva da qual o racismo não pode ser excluído da equação, mas que se estende a muitas opressões a que somos submetidas. Até porque, como ela mesma lembra, “não existe hierarquia de opressão”.

Para Lorde, “toda mulher tem um arsenal bem guardado de raiva potencialmente útil contra aquelas opressões, pessoal e institucional, que fez com que aquela raiva existisse. Focadas com precisão, elas podem se tornam poderosas fontes de energia servindo ao progresso e à mudança”. Usar a raiva como arma contra o que a causou, perfeito. Munição não há de faltar.

E sobre os silêncios, os impostos por outros ou por nós mesmas, pelo motivo que for, ela diz algo que sentiu quando descobriu que estava com câncer de mama: “Eu ia morrer cedo, tivesse falado ou não. Meus silêncios não tinham me protegido. Tampouco protegerá a vocês. Mas cada palavra que tinha dito, cada tentativa que tinha feito de falar as verdades que ainda persigo, me aproximou de outras mulheres, e juntas examinamos as palavras adequadas para o mundo em que acreditamos, nos sobrepondo a nossas diferenças.”

Valei-nos, Audre Lorde! Que nunca nos falte som e fúria.

*Ambos os textos, “Usos da raiva:  as mulheres reagem ao racismo ” e “A transformação do silêncio em linguagem e ação” estão no livro “Irmã Outsider- Ensaios e conferências”, publicado no Brasil em 2019 pela Autêntica.

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