Paola Egonu: medalha de ouro e ataque a mural reabrem debate sobre raça e cidadania na Itália

Vandalismo racista contra desenho retratando a campeã olímpica de vôlei levanta discussão sobre reforma na legislação do país onde quase 800 mil crianças nascidas na Itália, mas filhas de imigrantes, não têm direito à cidadania italiana

Por The Conversation | ODS 10 • Publicada em 27 de setembro de 2024 - 09:46 • Atualizada em 1 de outubro de 2024 - 09:37

O mural em homenagem a campeã olímpica Paola Egonu antes e depois de ser vandalizado: ataque racista reacende debate sobre raça e cidadania na Itália (Reprodução)

(Victoria Donnaloja*) – Quando Paola Egonu – nascida na Itália, filha de pais nigerianos – ganhou uma medalha de ouro no torneio de vôlei dos Jogos Olímpicos de Paris 2024, uma discussão adormecida na política italiana foi reacendida. Egonu – eleita a melhor jogadora da competição – só se tornou cidadã italiana aos 14 anos, depois que seu pai se naturalizou italiano. Agora uma heroína nacional, muitos sentiram que sua história deveria ter sido diferente e que o caminho para a cidadania italiana deveria ser facilitado para os filhos de imigrantes.

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Após sua vitória, um mural retratando Egonu realizando sua cortada característica nas quadras apareceu do lado de fora do escritório do Comitê Olímpico Italiano. A artista de rua Laika deu a ele o título de “Italianidade”. Em 24 horas, alguém pintou a pele da negra Paola com tinta rosa, deixando o título intocado (também foi apagada a inscrição na bola de vôlei: “parem o racismo, o ódio, a xenofobia, a ignorância”). Esse abuso racista esconde uma questão muito mais difícil com a qual os italianos vêm lutando há três décadas: o que torna alguém italiano?

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Esta não é a primeira vez que um evento esportivo força os italianos a encarar a inadequada lei de cidadania da Itália. Quando, em 2020, Great Nnachi, de 14 anos, fez o salto com vara mais alto da história na categoria feminina sub-16 na Itália, seu recorde não pôde ser registrado. Ela era uma das quase 800 mil crianças que nasceram na Itália, mas que não são cidadãs italianas. A lei exige que elas esperem até os 18 anos.

A Itália é, historicamente, um país de emigração. Até a década de 1990, havia mais pessoas saindo do que entrando. É por isso que a cidadania italiana segue um modelo orientado à descendência que escapa às fronteiras nacionais. Mesmo aqueles nascidos no exterior são reconhecidos como italianos, desde que tenham um ancestral italiano.

A italiana Paola Egonu na final olímpica do torneio feminino de vôlei: medalha de ouro e ataque racista a mural reacende debate sobre cidadania e raça na Itália (Foto: Simone Ferraro / CONI)
A italiana Paola Egonu na final olímpica do torneio feminino de vôlei: medalha de ouro e ataque racista a mural reacende debate sobre cidadania e raça na Itália (Foto: Simone Ferraro / CONI)

A cidadania é, portanto, herdada por linhagem, por meio do princípio do ius sanguinis (direito de sangue). Em contraste, o local de nascimento e residência por si só são quase irrelevantes, daí o motivo pelo qual Paola Egonu e tantas outras e outros, apesar de terem nascido na Itália, têm que fazer pedidos de cidadania em vez de simplesmente recebê-la no nascimento. (os constantes ataques racistas chegaram a fazer Egonu deixar de defender a seleção italiana por quase dois anos: nota da redação). 

Em reação ao mural de Egonu ter sido vandalizado, Antonio Tajani, ministro das Relações Exteriores, expressou apoio a uma lei de cidadania mais inclusiva e a Egonu, dizendo: “Coragem Paola, você é nosso orgulho…” No entanto, seu parceiro na coalizão governamental Matteo Salvini, líder da extrema-direita e ministro de Infraestrutura e Transportes, reagiu, dizendo: “Há uma lei, ela funciona, vamos lidar com outra coisa.”

A primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni, ainda não se manifestou. No entanto, em 2018, a última vez que uma proposta de reforma da lei de cidadania chegou ao debate no parlamento, Meloni coletou assinaturas suficientes para garantir um referendo para revogar a reforma se ela fosse aprovada, o que não aconteceu.

Egonu, filha de nigerianos, com Miriam Sylla, filha de marfinenses, na comemoração da medalha de ouro olímpica: filhos de imigrantes só têm direito à cidadania italiana ao completarem 18 anos (Foto: Federação Italiana de Voleibol)
Egonu, filha de nigerianos, com Miriam Sylla, filha de marfinenses, na comemoração da medalha de ouro olímpica: filhos de imigrantes só têm direito à cidadania italiana ao completarem 18 anos (Foto: Federação Italiana de Voleibol)

O público apoia a reforma

Houve inúmeras tentativas de introduzir alguma forma de cidadania por direito de nascença (ius soli, direito de solo) na Itália, mas nenhuma foi bem-sucedida. A forte oposição da direita e o apoio morno da esquerda deixaram cada tentativa fracassada.

A suposição entre os políticos de direita que bloquearam a reforma é que o público italiano não quer mudar a lei. Mas, em 2021, conduzi um estudo no qual meu coautor e eu pedimos a 1.500 pessoas que indicassem a quem, dentre diferentes perfis hipotéticos de crianças, elas seriam a favor de conceder a cidadania italiana.

Mostramos a cada entrevistado dez perfis de crianças nascidas na Itália cujos pais eram imigrantes e que diferiam entre si em 11 atributos, como país de origem, situação de emprego e qual time eles apoiam nas Olimpíadas. Em seguida, pedimos aos entrevistados que indicassem para cada perfil se eram a favor ou contra a concessão da cidadania à criança. Esse design nos permite discernir o que exatamente impulsiona o apoio ou a oposição a uma potencial reforma.

Descobrimos que o público é majoritariamente a favor da concessão da cidadania aos filhos de imigrantes que nasceram na Itália, embora sob certas condições. Apenas 10% eram contra qualquer tipo de cidadania por direito de nascença. A maioria dos italianos apoia mais a cidadania por direito de nascença para crianças, se seus pais imigrantes estiverem empregados, tiverem uma autorização de residência e viverem na Itália por mais de cinco anos.

Os italianos dão muito mais importância a esses critérios do que a outros, como etnia e domínio da língua italiana. Embora os eleitores de direita fossem menos propensos a conceder cidadania em comparação aos eleitores de esquerda, a maioria deles o fez, desde que os pais das crianças tivessem vivido no país por cinco anos e tivessem residência permanente.

Nosso estudo, então, sugere que há uma base eleitoral para a reforma.

A mudança na lei de cidadania faria uma diferença significativa na vida cotidiana de centenas de milhares de crianças. Todas as crianças na Itália têm acesso a cuidados de saúde de emergência e educação, mas seus pais precisam ser residentes legais para que tenham acesso total aos cuidados de saúde, por exemplo. Não cidadãos também podem ser removidos do país, ao contrário dos cidadãos.

Outros direitos importantes associados à cidadania são o direito de livre circulação dentro da União Europeia, de proteção pelo estado em países estrangeiros e de representar o país em competições esportivas.

Mais importante ainda, essas crianças se identificam como italianas, mas não se sentem reconhecidas como tal. A cidadania para elas representa a consolidação e o reconhecimento de sua identidade italiana.

A pesquisa também é clara sobre os benefícios mais amplos de conceder cidadania a crianças. Quando a cidadania é concedida, as crianças se saem melhor na escola e seus pais se integram mais facilmente.

Alemanha, Portugal, Bélgica, Irlanda e Reino Unido já adotaram legislação condicional ius soli de vários tipos. França e Grécia o fizeram de maneiras mais limitadas, enquanto em outros países, como a Suécia, há caminhos para a cidadania para filhos de imigrantes em uma idade muito precoce.

A Itália deve reconhecer que é um país de imigrantes e que seu sucesso, nos esportes e em outros lugares, será determinado pela capacidade do país de reinventar com sucesso o que significa ser cidadão.

*Victoria Donnaloja, pesquisadora no Departamento de Sociologia na Universidade de Essex (Reino Unido) tem PhD em Demografia pelo Departamento de Políticas Sociais, da London School of Economics

The Conversation

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