ODS 1
IPCC: última década teve o maior crescimento de emissões da história
Relatório aponta, entretanto, que humanidade já dispõe de tecnologias de mitigação capazes de reduzir emissões pela metade em 2030
Em 2009, o maior encontro de chefes de Estado feito até então em toda a história gritou nas ruas de Copenhague por ação imediata contra a mudança climática. O que se viu em vez disso na década seguinte foi o maior aumento de emissões de gases de efeito estufa da história humana. A contradição flagrante entre o diagnóstico e a ação foi esfregada na cara dos governos pelo IPCC, o painel do clima da ONU, nesta segunda-feira (4).
O painel lançou o terceiro e último volume de seu AR6 (Sexto Relatório de Avaliação), um tríptico de mais de 8.500 páginas contendo o estado da arte do conhecimento humano sobre a crise do clima. O novo relatório foi produzido pelo Grupo de Trabalho 3 do IPCC, que trata de mitigação (redução de emissões).
O documento mostra que, das 2,4 trilhões de toneladas de gás carbônico emitidas pelos seres humanos desde a Revolução Industrial, metade (48%) foi para o ar desde 1990. E 17% das emissões ocorreram apenas entre 2010 e 2019. Ou seja, entre as conferências do clima de Cancún e Madri, quando o Acordo de Paris começou a ser negociado e implementado, as emissões subiram como nunca antes.
“As últimas duas décadas viram o maior aumento de emissões da história humana, mesmo com a gente sabendo o tamanho do problema. A próxima década não pode seguir o mesmo padrão”, disse a secretária-executiva do Pnuma (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente), Inger Andersen, no evento de apresentação do relatório.
Leu essa? Distopia climática à vista
O secretário-geral da ONU, António Guterres, fez um discurso duro e cheio de frases de efeito na cerimônia. Chamou o relatório de “um rosário de promessas climáticas quebradas” de “radicais perigosos” os países que ainda investem em combustíveis fósseis. “Alguns governos e líderes empresariais dizem uma coisa e fazem outra. Ou seja, eles mentem”, afirmou o diplomata português.
A principal conclusão do novo relatório é agridoce: o IPCC afirma que, para que a humanidade tenha uma chance maior do que 50% de manter o aquecimento da Terra no limite de 1,5º C preconizado pelo Acordo de Paris, será preciso que as emissões de gases de efeito estufa cheguem ao pico em algum momento dos próximos três anos e caiam 43% até 2030. Na última década, elas subiram 12%.
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Veja o que já enviamosA boa notícia é que existem soluções para isso. Hoje a humanidade já dispõe de tecnologias de mitigação capazes de reduzir emissões pela metade em 2030 ao custo de menos de US$ 100 por tonelada de CO2 abatida. Na verdade, metade desse potencial está em soluções que custam menos de US$ 20 por tonelada.
Os exemplos mais evidentes são a energia eólica e a solar, cujo preço na última década caiu 55% e 85%, respectivamente. Em muitos lugares do mundo, como o Brasil, a energia solar fotovoltaica já é a opção mais barata para gerar eletricidade.
Também há potencial de corte de emissões – até 14 bilhões de toneladas de CO2 até 2050 –no setor de uso da terra, que inclui agropecuária e desmatamento. “E uma parte desse potencial está em coisas que a gente já domina; o manual da conservação a gente já tem”, disse a ecóloga Mercedes Bustamante, da Universidade de Brasília, uma das cientistas brasileiras que ajudaram a escrever o relatório.
No entanto, prossegue o IPCC, reduções “profundas” precisam ser feitas imediatamente para que a fresta de possibilidade ainda aberta para a estabilização em 1,5oC não se feche. Do contrário, a humanidade precisará recorrer maciçamente a tecnologias caras de retirada de carbono da atmosfera, enquanto encara um fenômeno que os cientistas dos grupos 1 e 2 do IPCC já previram e temem: o overshoot.
É o nome dado à ultrapassagem temporária do limite de 1,5oC, que pode ter consequências duradouras para a sociedade e os ecossistemas. “A mensagem é que o caminho para 1,5º C é muito estreito e se fecha rápido”, diz Bustamante. “E volta lá nos outros relatórios para ver o que é comprar um overshoot.”
As principais conclusões do relatório do IPCC
• As emissões de gases de efeito estufa no mundo foram de 59 bilhões de toneladas em 2019, um valor 12% maior do que em 2010 e 54% maior do que em 1990. A última década teve o maior crescimento de emissões da história humana: 9,1 bilhões de toneladas a mais do que na década anterior – mesmo com a consciência da escala do problema e da urgência da ação.
• Desde a era pré-industrial até hoje, a humanidade já emitiu 2,4 trilhões de toneladas de CO2. Desse total, 58% foram emitidos entre 1850 e 1989, e 42% entre 1990 e 2019. Dezessete por cento de todo o carbono emitido foi lançado no ar apenas na última década.
• Para que a humanidade tenha uma chance de pelo menos 50% de estabilizar o aquecimento global em 1,5oC acima dos níveis pré-industriais, como determina o Acordo de Paris, as emissões globais de gases de efeito estufa precisam atingir seu pico entre 2020 e 2025 e cair 43% até 2030. Só que desde 2010 elas cresceram 12%.
• As políticas públicas de clima adotadas no mundo até 2020 levarão a Terra a um aquecimento de 3,2oC, mais do que o dobro do limite do Acordo de Paris.
• O gás carbônico já emitido até hoje corresponde a 80% de tudo o que a humanidade pode emitir se quiser ter uma chance de 50% ou mais de estabilizar o aquecimento da Terra em 1,5oC, como preconizado pelo Acordo de Paris.
• A intensidade de carbono do setor industrial e da queima de combustíveis fósseis (o total de CO2 por unidade de energia produzida) caiu 0,3% por ano na última década. Para atingir a meta de 1,5oC de temperatura, essa queda precisaria ser 7,7% por ano, ou 25 vezes maior.
• Existe uma imensa diferença regional e social entre as emissões: 10% dos lares do mundo respondem por 35% a 45% das emissões de gases de efeito estufa, e 50% dos lares responde por 13% a 15% desse total. Os países mais pobres do mundo e as nações-ilhas, as principais vítimas dos impactos climáticos, contribuíram juntos com menos de 4% das emissões do mundo em 2019.
• Pelo menos 18 países, a partir do Protocolo de Kyoto (o primeiro acordo internacional de redução de emissões), vêm reduzindo de forma consistente suas emissões de gases-estufa há mais de uma década.
• O mundo tem hoje condições de cortar emissões pela metade em 2030 em relação a 2019 lançando mão de estratégias e tecnologias de mitigação que custam até US$ 100 a tonelada. Metade dessas estratégias custa menos de US$ 20 a tonelada, e no setor de energia, em especial em eólica e solar, há potencial de redução a custo negativo – ou seja, é mais barato adotar as renováveis do que seguir com as fósseis. Na última década, o preço da energia solar e das baterias de íon de lítio caiu 85%, o da energia eólica caiu 55%, enquanto a adoção de carros elétricos cresceu 100 vezes e a instalação de painéis solares cresceu 10 vezes.
• As metas climáticas (NDCs) adotadas em Paris e atualizadas até 2020 reduziram em 15% a 20% o hiato entre o que é emitido e o que é necessário emitir para estabilizar o clima. O chamado “gap de emissões” para uma chance de 50% de estabilizar o aquecimento em 1,5oC é de 16 bilhões a 23 bilhões de toneladas em 2030, se todas as NDCs forem cumpridas com régua e compasso.
• A infraestrutura fóssil existente e planejada hoje já tem emissões de carbono comprometidas (“locked-in”) suficientes para impedir o cumprimento da meta de 1,5oC. O recado tácito do IPCC é que esses projetos precisarão ser descontinuados ou ter suas emissões compensadas de alguma forma.
• Quanto mais rápida e profundamente a humanidade cortar emissões, menor será a necessidade da chamada “remoção de dióxido de carbono”, nome dado a estratégias que vão desde o reflorestamento até a extração direta de CO2 do ar (DACCS) e o armazenamento geológico de CO2 em termelétricas fósseis (CCS) ou em usinas de bioenergia (BECCS). Menos também é o risco de um “overshoot”, uma ultrapassagem temporária – mas cujo dano pode ser permanente – do limite de temperatura de 1,5º C.
• Em cenários de estabilização da temperatura em 1,5º C sem “overshoot” ou com um “overshoot” limitado, o uso de carvão mineral precisa cair 95%, o de petróleo 60% e o de gás natural 45% até 2050.
• Isso significa que a indústria fóssil poderá ter “ativos encalhados”, ou seja, investimentos que não poderão chegar ao mercado. Segundo o IPCC, para uma estabilização da temperatura global em 2ªº C, os ativos fósseis em risco de encalhe são de US$ 1 trilhão a US$ 4 trilhões entre 2015 e 2050. Ativos de carvão podem encalhar já em 2030. Isso é um alerta para o Brasil, que vem ampliando investimentos no pré-sal e neste ano sancionou uma lei permitindo a construção de novas termelétricas a carvão até 2040.
• As cidades são uma das principais preocupações do novo relatório do IPCC. Segundo o painel, as urbes podem se aproximar da emissão líquida zero por meio de mudanças no consumo energético e material, eletrificação do transporte e pelo sequestro de carbono no meio ambiente urbano. Sem medidas de mitigação, as cidades passarão de 29 bilhões a 40 bilhões de toneladas de CO2 e metano em 2050. Com medidas ambiciosas e imediatas, esse total cai para 3 bilhões de toneladas.
• O setor de construções, essencial para as cidades, também tem um enorme potencial de mitigação, e corre risco de “lock-in”, ou emissões comprometidas, dada a longa vida útil dos prédios. Desde 1990, as emissões da construção cresceram 50%, mas elas têm potencial de redução de 61% até 2050.
• Os veículos elétricos têm o maior potencial de mitigação no setor de transportes, que não deverá atingir a emissão líquida zero em 2050 e precisará ter seu carbono compensado de alguma forma. Os biocombustíveis sustentáveis – que não competem por terras com a produção de alimentos ou com comunidades tradicionais – também podem auxiliar no corte de emissões no curto e médio prazo. Já para a aviação e a navegação, segundo o IPCC, não existem hoje tecnologias escaláveis que possam dar conta de toda a redução necessária nesses
setores. Novos biocombustíveis de alta densidade são uma das soluções no horizonte.
• O uso da terra (Afolu, na sigla em inglês), que inclui agropecuária e desmatamento, tem potencial de reduzir emissões de até 14 bilhões de toneladas por ano até 2050 a custos de US$ 100 ou menos por tonelada. Metade desse potencial está em estratégias e tecnologias de menos de US$ 20 a tonelada – a principal delas é a redução do desmatamento nos trópicos, outro tema de interesse direto do Brasil. Segundo o IPCC, medidas de mitigação no setor de Afolu não podem ser usadas como substituto para a redução em outros setores.
• Quando se considera os custos dos impactos climáticos e das medidas de adaptação, cortar emissões não impacta de forma significativa o PIB global. É esperado que o PIB do mundo dobre até 2050, enquanto trajetórias de mitigação compatíveis com 1,5oC a serem adotadas de agora a 2025 produziriam uma redução de 0,04 a 0,09 ponto percentual por ano na riqueza global.
• Os fluxos financeiros não estão alinhados com a necessidade. Para a meta de 1,5ºC é preciso que o financiamento climático seja seis vezes maior do que é hoje. Dinheiro existe, segundo o IPCC – há liquidez de capital global para fechar as brechas de financiamento –, mas há barreiras de todos os tipos para que o recurso seja aplicado.
• Os povos indígenas são citados nada menos do que 12 vezes no sumário executivo do Grupo 3 do AR6. O painel alerta para os potenciais benefícios e riscos de estratégias de mitigação que envolvam uso da terra para essas comunidades, para a necessidade de garantir os seus direitos territoriais e de incorporar os conhecimentos indígenas às políticas de redução de emissões de gases de efeito estufa.
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O Observatório do Clima é uma rede que reúne entidades da sociedade civil para discutir a questão das mudanças climáticas no contexto brasileiro.