ODS 1
#RioéRua – Tradição foliã resiste em Ipanema
Em novo ataque ao Carnaval, prefeitura tenta mudar horário dos desfiles de Simpatia e Banda de Ipanema
Se o Rio de Janeiro e sua exuberante beleza natural são a imagem do Brasil no resto do planeta, o som do nosso país é Garota de Ipanema, apontada em estudo no começo desta década como a segunda música mais tocada e gravada do mundo – atrás apenas de Yesterday, dos Beatles. Esta crônica apela para a canção de Tom Jobim e Vinícius de Moraes porque este sucesso mundial até o prefeito Marcelo Crivella – ele mesmo cantor, com mais de 10 álbuns de músicas religiosas gravados – conhece e é capaz de entender seu significado cultural. Está provado, contudo, que não conhece nem é capaz de entender o Carnaval carioca. Seu mais recente ataque à folia foi determinar a mudança no horário dos desfiles dos blocos mais tradicionais do bairro da garota de Tom e Vinícius: a Banda de Ipanema e o Simpatia é Quase Amor.
LEIA MAIS: O Carnaval não tem nada a ver com a confusão
LEIA MAIS: O Carnaval do retrocesso
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamosOs cariocas já estão cansados de saber – exaustos, na verdade – que o prefeito não gosta da cidade e não gosta de Carnaval. Deixa isso claro desde o primeiro ano de sua gestão quando fez questão de, simbolicamente, deixar de entregar a chave da cidade ao Rei Momo, tradição de quase 80 anos, e não apareceu na Passarela do Samba – primeiro prefeito ausente desde a inauguração. Depois, a prefeitura cortou subvenções às escolas de samba, implicou com rodas de samba, atormentou a vida dos blocos com novas exigências a cada ano, criou constrangimentos como propostas de criar um blocódromo e botar catracas: fez o que pode para atrapalhar a folia. Virou alvo das críticas dos desfiles – das escolas na Sapucaí e dos blocos pelas ruas do Rio.
Neste ano de 2020, depois de anunciar um Carnaval de 50 dias aberto por evento pouco carnavalesco em Copacabana que acabou em confusão e pancadaria promovida pela Guarda Municipal e a PM, a Prefeitura resolveu – de maneira autoritária e unilateral – transferir o horário do desfile da Banda de Ipanema e do Simpatia, que há décadas saem no fim da tarde, para o início da manhã. A alegação é fazer coincidir os horários com megablocos que desfilam no Centro nos mesmos. Carece ainda de explicação porque é melhor para segurança e infraestrutura eque dois blocos grandes saiam no mesmo horário; é inexplicável que sejam os blocos tradicionais os obrigados a mudar de horário e não os caçulas da folia.
Como convém sempre repetir, o prefeito não entende a cidade e não entende de Carnaval. Então cabe explicar:a Banda de Ipanema,a foi para a rua pela primeira vez em 13 de fevereiro de 1965: Crivella era criança e o país estava sob ditadura, após o golpe do ano anterior. Foram pouco mais de 100 foliões, liderados por artistas, intelectuais, humoristas, em um desfile marcado por deboche e ironia. A faixa de abertura trazia o lema “Yolhesman Crisbelles – emprestado de um vendedor de Bíblias na Central do Brasil que anunciava o fim do mundo – que foi investigado pelos órgãos da repressão até descobrirem que nada significava. Autoridades policiais chegaram a pedir veto aos desfiles da banda pelas subversivas faixas exibidas como “A praça é do povo” e “República livre de Ipanema”. O cartunista desfilou com uma rolha na boca para criticar a censura.
A Banda de Ipanema – que já teve marinhas ou padrinhos como Clementina de Jesus, Nássara, Bibi Ferreira, Leila Diniz, Aracy de Almeida, Grande Otelo, Clara Nunes, João Nogueira, Martinho da Vila, Nelson Cavaquinho e Cartola – faz três desfiles a cada Carnaval: o primeiro dois sábados antes da folia, outro no sábado de Carnaval, e o último na terça-feira. Em 1972, dois sábados antes do Carnaval, a Banda de Ipanema já tinha deixado sua concentração na Praça General Osório quando chegou a notícia de que Pixinguinha tinha acabado de morrer do coração, num banco da Igreja Nossa Senhora da Paz. Era, então, no trajeto do desfile da banda que ali parou e ficou tocando as músicas do maestro. Até hoje, Carinhoso, clássico sucesso de Pixinguinha (Crivella também deve conhecer), é executado quando a Banda de Ipanema passa pela Rua Joana Angélica.
Foi a campanha das Diretas Já que deu origem ao Simpatia é Quase Amor, descendente da banda pela irreverência e pela sua ligação com Ipanema. Ao desfilar pela primeira vez, em 1985, o bloco foi batizado com o apelido de Esmeraldo, galanteador personagem, criado pelo escritor e compositor Aldyr Blanc; as cores amarelo e lilás teriam sido inspiradas pelas do Engov, tradicional remédio contra a ressaca. Enquanto a Banda de Ipanema desfila ao som de sambas clássicos e marchinhas, o Simpatia leva para a rua sambas compostos especialmente para seu desfile que vão de odes à cidade, sua paisagem e seus personagens, passando pelos amores e alegrias do Carnaval até temas mais críticos que prevaleceram após as afrontas à folia do atual prefeito.
Nestes 56 anos de Banda e 36 de Simpatia, os blocos cresceram e mudaram. A Banda de Ipanema deixou de ser reduto de intelectuais e foi ficando mais diversa a cada ano, abrigando alas trans e de outros grupos LGBTs e atraindo cada vez mais famílias, crianças e turistas. O Simpatia é Quase Amor, criado por jovens embalados pela democracia recém-conquistada, agora é liderado por senhoras e senhores grisalhos mas ainda de alma foliã. São parte da história e da cultura da cidade: estão gravados na decoração da estação do metrô do bairro. Levam cada um agora milhares de pessoas às ruas de Ipanema; após novas regras estabelecidas pela prefeitura na primeira década do milênio, reduziram o trajeto – que começava e terminava na General Osório e parava o trânsito do bairro – e adequaram seus horários para evitar desfiles de nove horas.
A tradição de sair no fim da tarde, com a bênção do sol na passagem pela orla, foi sempre mantida. E será: os blocos, o Carnaval e o Rio são mais fortes e não se curvaram as idiossincrasias do prefeito. Em mais uma prova que a cidade tem uma gestão que nada entende sobre sua maior festa, a Polícia Militar, o Metrô e até representantes de órgãos municipais argumentaram com a mudança – e a coincidência de horários – é uma péssima ideia. O prefeito não terá outra alternativa a não ser recuar e se render à tradição foliã de Ipanema.
Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade