ODS 1
Arte: a porta de saída da rua
Projeto Quixote
Diante de moinhos de vento, o Quixote de Cervantes enxergou gigantes imaginários, sem medir esforços para cumprir sua improvável missão. O personagem-herói, transformado em adjetivo na linguagem corriqueira para tarefas monumentais, foi justamente a inspiração
para um grupo de profissionais da saúde que viu num desafio da vida real a energia necessária para defender seus ideais.
Fundado em 1996 em São Paulo, o Projeto Quixote foi gestado por integrantes do Programa de Atendimento a Dependentes do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Na ocasião, o grupo foi procurado por educadores sociais que trabalhavam com crianças em situação de rua nas proximidades da Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo (Ceagesp), na Zona Oeste da cidade. O crack havia chegado à capital paulista e atingido a população de baixa renda.
— Os menores de idade que passaram a usar a pedra não queriam mais papo com os educadores, que vieram nos procurar em busca de ajuda. Começamos a ler sobre o tema e não encontramos nada. Era um fenômeno muito novo. Resolvemos, então, escrever um projeto de convênio com o governo do estado e usar nossa expertise na área da saúde mental, especialmente abuso de álcool e drogas. A indignação nos motivou enquanto cidadãos. Nos sentimos bastante quixotescos em trabalhar com algo tão novo — recorda Cecília Motta, psicóloga e integrante do Quixote.
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamosA partir daí, o grupo começou a elaborar um espaço alternativo para crianças e adolescentes em diferentes graus de vulnerabilidade, desde aquelas que estão morando na rua até as que não frequentam a escola. O espaço trabalha de forma multidisciplinar aspectos clínicos,
pedagógicos e sociais através do atendimento psicológico, psiquiátrico e médico, além de oficinas lúdicas como dança, música, informática, entre outras.
Atualmente, há cerca de 400 cadastrados, totalizando 1,2 mil atendimentos individuais mensalmente.
— À medida que as crianças se vinculavam ao projeto, abandonavam a droga com muita facilidade, sem o sofrimento clássico do dependente químico. O uso da droga por crianças na rua é muito mais circunstancial. Costumamos dizer que criança que empina pipa não pipa pedra. Não adianta medicalizar uma questão que é social — resume a psicóloga.
Levantamento do Quixote com crianças realizado na região central de São Paulo em 2011 mostrou que para 71,2% as principais motivações para morar na rua eram o abandono, a negligência e a violência — psicológica, física ou sexual. O uso de drogas era motivação para apenas 12,4% dos entrevistados.
[g1_quote author_name=”Cecília Motta” author_description=”psicóloga e integrante do Quixote” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]O que se apresenta como relevante e demonstra um quadro muito mais complexo da população em situação de rua é a fragilidade microssocial. A família e a comunidade de origem deixam de ser pontos de acolhimento, principalmente por parte de políticas públicas
não dirigidas a esses territórios. A ida para a rua não tem só relação com a droga. É um movimento muito mais associado a grupos marginalizados
Estudo de 2016 elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), excluindo crianças e adolescentes, estimou em cerca de 102 mil o número de pessoas sem-teto em cidades brasileiras. Segundo o último Censo da População em Situação de Rua, realizado pela prefeitura de São Paulo em 2015, havia 15.905 pessoas em situação de rua naquele ano. Destas, 3,1% eram crianças e adolescentes, que na maioria (82%) estavam em centros de acolhida com a família.
— O que se apresenta como relevante e demonstra um quadro muito mais complexo da população em situação de rua é a fragilidade microssocial. A família e a comunidade de origem deixam de ser pontos de acolhimento, principalmente por parte de políticas públicas
não dirigidas a esses territórios. A ida para a rua não tem só relação com a droga. É um movimento muito mais associado a grupos marginalizados — destaca Cecília.
A porta de entrada no projeto é a oficina de arte, um tema universal. Conforme vão se vinculando aos educadores, eles escolhem outras oficinas para participar. Inclusive as famílias são integradas no processo, participando também de vivências e atendimentos
clínicos.
Ao longo dos anos, os fundadores notaram uma demanda muito comum entre os jovens: se inserir no mercado de trabalho. Assim surgiu um núcleo dedicado ao tema.
— As oficinas ensinam desde tirar documento a como se comportar na entrevista. Começamos a fazer parcerias com empresas, sempre de forma muito protegida. Temos pessoas dentro da empresa compromissadas com eles, e uma vez por semana eles vêm ao
Quixote contar as dificuldades. É forma de garantir que eles aproveitem a experiência — detalha Cecília.
A arte é a porta de entrada num universo gigantesco de possibilidades, além de ser uma forma de descobrirem uma aptidão, um desejo. Mesmo que não se tornem cineastas, fotógrafos ou grafiteiros é uma forma de gerar o máximo possível de oportunidades, tentar se
encontrar e ocupar a cabeça, tentar não se envolver em tanta coisa que coloca eles em risco
Uma das formas de inserção dos jovens é a Usina de Imagem, onde aprendem técnicas e produzem vídeos encomendados, sendo remunerados. Coordenador do núcleo e professor de grafite e arte urbana, Otávio Fabro, conhecido como Ota, destaca o papel da arte na
vivência dos atendidos:
— A arte é a porta de entrada num universo gigantesco de possibilidades, além de ser uma forma de descobrirem uma aptidão, um desejo. Mesmo que não se tornem cineastas, fotógrafos ou grafiteiros é uma forma de gerar o máximo possível de oportunidades, tentar se
encontrar e ocupar a cabeça, tentar não se envolver em tanta coisa que coloca eles em risco.
O núcleo nasceu em 2009 como uma forma de pensar os caminhos que os meninos faziam após terem cumprido medidas socioeducativas na antiga FEBEM. A linguagem audiovisual era ferramenta para que os jovens registrassem o cotidiano e, assim, se aproximassem da
arte como forma de expressão.
— Na época, era realmente uma novidade, não tinha Instagram, YouTube… Os meninos produziam filmes autobiográficos. Hoje, existe uma tendência youtuber. Eles criam vídeos de apresentação, videoclipe. São formatos diferentes do que era no início, mais descolados. Mas, no final, eles sempre têm um produto bacana que pode render frutos — compara Ota.
Morador de Jardim Ângela, distrito da Zona Sul paulistana, considerado pelas Nações Unidas, em 1996 o bairro mais perigoso do mundo, Paulo Sérgio prepara-se para uma rotina agora longe das salas do Projeto Quixote. Aos 23 anos, 12 deles em contato com a ONG, projeta abrir uma microempresa de design, a Fenix Arte, com objetivo de colocar em prática os ensinamentos das oficinas que participou.
— Sou um grafiteiro em constante desenvolvimento. Quero fazer trabalhos comissionados com arte e trabalhar em projetos sociais também. Comecei a desenvolver em escolas uma ova metodologia de ensino. Os professores passam muita aula teórica, só apostila, o aluno fica sem fazer nada. Quero passar a teoria junto com a prática, ensinar estilos de artes para, quem sabe futuramente, os alunos trabalharem com isso — projeta.
Relacionadas
É jornalista freelancer. Trabalhou nas editorias de Política, Economia, Internacional e Rio do jornal O Globo durante oito anos. Recentemente, atuou em análises do debate sobre políticas públicas em redes sociais e do impacto de práticas de desinformação.