O fim dos dinossauros das estradas

Símbolos da opulência econômica movida a petróleo, utilitários americanos estão com os dias contados

Por Henrique Koifman | ODS 12ODS 7 • Publicada em 26 de fevereiro de 2018 - 09:49 • Atualizada em 26 de fevereiro de 2018 - 22:12

O Ford F-150, carro mais vendido nos EUA, com seus seis metros de comprimento, 2,30m de largura, quase dois metros de altura e duas toneladas. Foto Divulgação
O Ford F-150, carro mais vendido nos EUA, com seus seis metros de comprimento, 2,30m de largura, quase dois metros de altura e duas toneladas. Foto Divulgação
O Ford F-150, carro mais vendido nos EUA, com seus seis metros de comprimento, 2,30m de largura, quase dois metros de altura e duas toneladas. Foto Divulgação

Imagine que você estivesse na Terra há 65 milhões de anos e, do alto de uma montanha, avistasse uma enorme procissão de dinossauros, marchando majestosamente em direção ao pôr do sol, enquanto vários outros animais, menores, mais discretos e mais adaptados aos tempos que se iniciavam, assistiam tudo a uma respeitável distância. Sensação equivalente devem ter tido os visitantes do recente Salão do Automóvel de Detroit, provavelmente o mais tradicional evento automotivo do mundo, encerrado em 23 de janeiro último. Ali, pomposamente como sempre, estavam expostas as mais recentes versões das gigantescas picapes americanas, símbolos da pujança motorizada, com suas frentes poderosas e seus enormes e sedentos motores, superpotentes e ambientalmente incorretos. Brilhavam cercadas por estandes com lançamentos e protótipos de carros de passeio híbridos e elétricos, daqueles que quase nem precisam de motorista para rodar.

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A despeito das poses de estrela, é senso comum entre quase todos os especialistas que esta deve ser a última grande safra de “full-size pick-up trucks” com sua configuração tradicional, em tamanho, peso e motorização. A própria indústria norte-americana já anunciou que, durante a próxima década, fará uma transição para veículos híbridos ou movidos somente com eletricidade

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A despeito das poses de estrela, é senso comum entre quase todos os especialistas que esta deve ser a última grande safra de “full-size pick-up trucks” com sua configuração tradicional, em tamanho, peso e motorização. Hoje, sob os vastos capôs, elas trazem motores de grande capacidade volumétrica, de seis ou oito cilindros, tradicionalmente movidos a gasolina ou, mais recentemente, a diesel, mas a própria indústria norte-americana já anunciou que, durante a próxima década, fará uma transição para veículos híbridos ou movidos somente com eletricidade. As próximas “picaponas”, portanto, devem, no mínimo, trazer motores a combustão menores, provavelmente turbinados, construção mais leve e opções híbridas – com o reforço de propulsores elétricos. E, em mais uma década, as puramente elétricas deverão ser as donas do pedaço.

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A primeira Picape Chevrolet. Foto Divulgação
A primeira Picape Chevrolet. Foto Divulgação

O nome dela é clementina. A mudança e a evolução podem parecer óbvias e naturais para a maioria das pessoas, que já sabem que os tempos são de redução de emissões de gases e de diminuição do uso de combustíveis a base de petróleo. Mas nos EUA, onde os carros ainda são tratados como “entes” queridos e ganham nomes próprios, onde há anos as picapes grandes ocupam os três primeiros postos na lista dos modelos de automóveis mais vendidos, isso significa o começo de uma tremenda revolução de hábitos e de costumes.

Revolução que já parece ganhar embalo entre os grandes esportivos utilitários, os SUVs, hoje impulsionada especialmente por marcas europeias e orientais. Faz algum sentido, afinal, as centenárias brutas com caçamba são modelos rudes e fortes, tipicamente masculinos e emocionais, como se fossem versões mecânicas de Silver, o cavalo do Lone Ranger, gritando que ao volante vai “um homem de verdade”. Descendentes simbólicas das carroças dos pioneiros, elas dão vazão ao lado country e desbravador que, no fundo, o americano médio ainda cultiva em sua alma, como num clássico anúncio de cigarros. Já as SUVs e suas tias, as minivans, são mais femininas ou, no mínimo, familiares – e, portanto, têm um apelo um pouco mais prático e racional. O curioso é que, pensando assim, já em 2008 a poderosa General Motors mandara para as lojas versões híbridas da luxuosa e gigantesca Cadillac Escalade e de sua irmã menos rica, Chevy Tahoe. Custando bem mais caro que as demais, não decolaram nas vendas e saíram de linha em 2013. Agora, a previsão é que retornem atualizadas até 2020.

A última versão do tradicional Chevrolet Silverado. Foto Divulgação
A última versão do tradicional Chevrolet Silverado. Foto Divulgação

Automóveis e racionalismo sempre viveram uma espécie de relação de amor e ódio, e não é só nos EUA. Eles até que estiveram unidos em momentos importantes da história da indústria – quando, por exemplo, foram criados e lançados modelos como o acessível Ford T, o popularíssimo VW Fusca e o ecologicamente engajado Toyota Prius. Mas parecem não trocar nem olhares quando o assunto são os carros superesportivos, que combinam beleza com muita velocidade, muito consumo, muito carbono despejado na atmosfera e pouco espaço para duas pessoas pelo preço de um ou mais apartamentos. O mesmo ocorre com as grande picapes americanas, que embora tenham nascido como – e ainda se prestem a ser – verdadeiramente utilitárias, também poderiam ser enquadradas na categoria automotiva dos “irracionais, e daí?” ou dos “tenho porque quero, não porque preciso”. Quase sempre maiores, mais pesadas e mais beberronas do que seria necessário, na prática, raramente são usadas para o trabalho pesado que, para a maioria delas, costuma ser, no máximo, puxar um reboque nas férias de verão.

Donas da rua. Imaginar um carro com quase seis metros de comprimento, 2,30m de largura, quase dois metros de altura e duas toneladas (dados da Ford F-150, o carro mais vendido nos EUA)… quer dizer, imaginar um monte de carros com essas dimensões circulando juntos pelas ruas do Rio de Janeiro ou de São Paulo, fica até difícil. É preciso lembrar, no entanto, que boa parte das estradas e cidades americanas foi planejada justamente para esse tipo de trânsito. Você não as verá dominando a paisagem em Nova York ou São Francisco, mas tive a oportunidade de dirigir dois mastodontes desses em Los Angeles e arredores – onde o Toyota Prius é o carro mais comum na paisagem antenada e descolada – e achei assustadoramente fácil, até mesmo achar vagas para elas em estacionamentos.

Um dos utilitários do futuro, numa versão feita por designers para o concurso promovido pela francesa Michelin. Foto Divulgação
Um dos utilitários do futuro, numa versão feita por designers para o concurso promovido pela francesa Michelin. Foto Divulgação

Menciono isso para prever que, ainda que passando por uma radical mudança tecnológica, as grandes picapes não vão desaparecer de uma hora para outra. Diferentemente dos dinossauros, que incapazes de se adaptarem às mudanças climáticas pereceram – e que, por uma dessas coincidências que servem para amarrar imagens em textos como este, em parte acabaram se transformando em… petróleo –, esses carrões desajeitados vão continuar gastando o asfalto do Tio Sam por um bom tempo. Eles sofrerão um quase transplante de alma, que jogará combustíveis fósseis, fumaça, barulho e, talvez, a total autonomia dos motoristas para o rol das lembranças e dos filmes de época. Mas continuarão no mercado.

Elétrica e eclética. E como serão as picapes do futuro? Nos conservadores EUA, eu aposto que, pelo menos por um tempo, manterão o visual de caminhão pequeno e cara de mau – não à toa, eles as chamam de pick-up trucks, ou seja, “caminhões picape”. Mas em outras partes do mundo, as mudanças podem ser radicais e mais rápidas. Para tentar antecipar e/ou estimular isso, a fabricante de pneus francesa Michelin promoveu no ano passado um concurso aberto a designers de todo mundo, tendo justamente projeções futuristas para esse tipo de veículo como tema. Entre os selecionados, há propostas que mais se parecem com empilhadeiras robotizadas, dando ênfase ao papel utilitário dessas máquinas. Mas há outros projetos em que, debaixo de linhas sinuosas, pouca capacidade de carga e jeitão de carro de corrida, uma eventual utilidade ficou em um segundo ou terceiro plano. Os americanos devem ter gostado.

Henrique Koifman

É carioca e jornalista com passagem por jornais e revistas da grande imprensa. Sócio da Rebimboca Comunicação, dedicada à produção de conteúdo, é apaixonado por carros desde pequeno. Pilota o blog Rebimboca on-line, no portal do jornal O Globo e é apresentador do programa de TV Oficina Motor (canal +Globosat).

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