ODS 1
Ascensão e glória do ridículo político
Novo livro de Márcia Tiburi tenta explicar o crescimento da estupidez na vida pública
Depois do sucesso do livro ‘Como conversar com um fascista‘, em que destrincha o autoritarismo daqueles que não suportam o diferente e tentam silenciar o outro, a filósofa Marcia Tiburi trata agora de dissecar o fenômeno dos que conseguiram agregar valor ao camarote da estupidez política e da brutalidade social.
Em ‘Ridículo político’ (Record), ela se propõe a entender o mecanismo que muitos políticos utilizam para transformar o negativo em valor positivo, em algo admirado. O subtítulo do livro dá algumas pistas: ‘Uma investigação sobre o risível, a manipulação da imagem e o esteticamente correto’.
[g1_quote author_name=”Marcia Tiburi” author_description=”Filósofa” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Trata-se de um livro bastante didático, no sentido de ter uma fala bem compreensível. É preciso mostrar o que está em jogo. A política precisou ser desmontada, aviltada, humilhada em benefício desses espertalhões, que fazem política mascarando o próprio ato político
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Veja o que já enviamos“Percebi que havia aspectos novos na cena política brasileira, e a relação entre a estética e a política ainda é muito pouco discutida no jornalismo, na ciência política e na sociologia”, afirma, ao relatar o que gerou o livro. A opção pela análise da presença e da força do ridículo na política nasceu de um insight provocado por Michel Temer – entre as situações que estimularam a identificação, ela cita a presença do então vice-presidente na abertura da Feira Literária de Frankfurt em 2013, quando o evento foi dedicado ao Brasil.
“Ele se apresentou como um poeta diante de todos aqueles escritores”, lembra, aos risos. Em seu discurso, Temer citou a publicação de seu livro de poemas ‘Anônima intimidade’ como uma “ousadia literária”.
“Temer foi o personagem que primeiro me fez pensar em ridículo político, um conceito genérico, não pessoal, relacionado à atuação pública dele. Ele é um personagem constante das cenas do ridículo político, assim como o Jair Bolsonaro (deputado federal), como o João Doria (prefeito de São Paulo), assim como vários outros personagens, menos protagonistas, mais secundários”, explica a filósofa.
Para Tiburi, os políticos que vestem o uniforme do ridículo têm conseguido a proeza de transformar o indesejável e o estapafúrdio – o ato de protagonizar cenas constrangedoras – em algo capaz de gerar identificação e popularidade. O ridículo seria, assim, uma exaltação da falta de vergonha.
Outro exemplo que ela cita é o da eleição de Tiririca para deputado federal. Ressalta que muitos justificaram seu voto como um ato de protesto sem perceber o que ela classifica de “manipulação” – a representação do papel de palhaço fora de seu lugar, o circo. A votação de Jair Bolsonaro – um deputado que nunca teve um projeto aprovado, frisa – também é colocada em patamar semelhante.
“As pessoas consideram que ele é engraçado, que não é fascista, que é incapaz de colocar em prática o que propõe”, diz. Para Tiburi, esse tipo de situação só é possível com o descrédito da atividade política, que permite que candidatos – todos políticos, filiados a partidos – se apresentem como não políticos e sejam bem vistos pelos eleitores. Uma iniciativa que dela recebe o carimbo de “cínica”. “O cínico precisa do otário”, resume, definindo, assim, o papel de quem legitima o ridículo.
No capítulo 22, “A dialética do cínico e do otário”, Tiburi fala do esvaziamento da atividade política, da mudança na qualidade da relação política: “Agora, o senhor é o cínico e o escravo é o otário. Já não há mais luta pelo poder ou pela liberdade porque o otário, menos do que o escravo, não tem a menor chance. Chance é consciência. Mas ela foi aniquilada. Envenenado por doses altíssimas de programas televisivos, dopado pelos religiosos neoliberais, pelas ofertas do campo do consumo, o otário não é capaz de virar o jogo porque não tem consciência do que fazem com ele”. Num outro trecho: “Cínicos são os que acionam a armadilha da não política; otários são os que caem no elogio da vida sem política”.
Ao falar do livro e da situação do país, Tiburi elabora quase um manifesto. Ressalta o papel político no exercício da cidadania, no risco que representa a farsa da negação da política. “Trata-se de um livro bastante didático, no sentido de ter uma fala bem compreensível. É preciso mostrar o que está em jogo. A política precisou ser desmontada, aviltada, humilhada em benefício desses espertalhões neoliberais, que fazem política mascarando o próprio ato político”, ressalta. Como está no livro, em outras palavras: “Em política, a bufonaria pode tornar-se populista no momento em que cidadãos e seus representantes fazem um pacto em torno do ridículo.”
Mas o que explicaria a capacidade de sedução dos ridículos, a popularidade que demonstram ter? Para Tiburi, um fator é a ingenuidade de boa parte da população, que não acreditaria em tamanha vilania, na quantidade de desvios de dinheiro, nas tramas desenvolvidas nos bastidores do poder. Uma fé que, afirma, é reforçada pelo que classifica de grupos hegemônicos de comunicação. O apelo ao lugar comum feito por esses políticos também contribuiria para a adesão.
Num dos capítulos do livro, ela atenta para “o falar merda e a naturalização do político”: “Uma covardia diante da crítica cria as condições para uma cultura em que a falação de merda é tratada como normal e a ridicularizarão é cada menos percebida (…)”. Na entrevista ao #Colabora, Tiburi ressalta que foi perdida “a vergonha de se falar sem base”: “Falar merda virou regra, há uma autorização radical para se falar o que se quiser”, diz.
Na busca do processo que legitima os “ridículos”, a filósofa também cita o que chama de “introjeção da ideologia dominante”, um mecanismo compensatório, de negação da própria realidade, que levaria “à mulher machista, ao negro racista e ao pobre capitalista”. “As pessoas – diz – são movidas na política por afetos, projeções e identificações, isso tudo está embolado, não dá para embolar em laboratório”.
E é nessa busca de identificação com símbolos de uma classe dominante que, no livro, ela introduz conceitos como “ipanemismo” e “madamismo”. Para tratar deste último, ela recorre ao filme “Que horas ela volta?”, de Anna Muylaert, que explicita relações de domínio entre patroa e empregada. Tiburi vê no “madamismo” uma forma de submissão da patroa a determinados padrões que supostamente a colocariam num nível superior – o “madamismo”, escreveu, “é importante na construção do ridículo político aplicado ao gênero”.
Na entrevista, ela afirma que vê no filme a configuração plástica da representação da madame, de uma visão de protagonismo social muito bem aproveitada por aqueles que classifica de ridículos. “Os políticos que vencem hoje serão sempre arrumadinhos, homens brancos, heterossexuais e capitalistas, defensores do neoliberalismo. Se você for negro, se não tiver um dedo na mão, se for mulher, gay, nordestino, estará marcado como esteticamente incorreto”, diz.
Das trincheiras em forma de capítulos surgem, aqui e ali, esperanças e alternativas estéticas capazes de contaminar o exercício político. Como naquele em que a autora exalta Valesca Popozuda. Tiburi ressalta que a cantora transita entre pobres e ricos, agrada à grande maioria, e faz um “deboche por inversão”: “Tudo o que parece fino e elegante, os tecidos, os materiais caros, o figurino de luxo, ela os transforma em ‘coisa de pobre’. Transfigura esses materiais, ironiza a estética burguesa e parece se divertir com isso”, escreveu.
Segundo a filósofa, Valesca escancara a “cafonice da classe média, torna ridícula a estética burguesa”. “Toda a estética tem uma política, toda a política tem uma estética. Valesca ofereceu um espelho às pessoas que ficam apegadas a esse teatro”, afirma. No livro, ela diz que a artista é um “Robin Hood estético, rouba simbolicamente dos ricos para dar aos pobres. Agradando os excluídos do gosto, ela conquista corações e mentes”. No fim das contas, num mundo em que o ridículo se apresenta arrumadinho, o inconformismo viria, portanto, de quem brinca com o conceito de luxo, e exercita o que a autora classifica de “declaradamente fake”. “Valesca é a denúncia, o espelho e o flerte mais radical com a atual verdade brasileira”, conclui.
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É carioca, jornalista e escritor. Trabalhou na 'Folha de S.Paulo', 'O Estado de S.Paulo', 'O Globo', TV Globo, 'O Dia', CBN, 'Veja' e CNN. Coordenou o MBA em Jornalismo Investigativo e Realidade Brasileira da Fundação Getúlio Vargas. É ganhador de dois prêmios Vladimir Herzog e integrou a equipe vencedora do Prêmio Embratel de 2015. É autor de seis romances, entre eles, 'Elefantes no céu de Piedade' (Editora Patuá. 2021).
Excelente resenha!