Anonimato contra o crime

Disque Denúncia

Por Wilson Aquino | Mapa das ONGsODS 10 • Publicada em 5 de dezembro de 2016 - 09:00 • Atualizada em 3 de setembro de 2017 - 01:20

Campanha do Disque Denuncia. Foto de Divulgacao
Campanha do Disque Denuncia. Foto de Divulgacao
Campanha do Disque Denúncia reforça a filosofia de garantir o anonimato ao denunciante. Foto de Divulgação

No mundo moderno em que vivemos, onde as pessoas são incapazes de decorar o telefone da própria mãe, um número ocupa a memória de, praticamente, todos os homens de bem – e do mal: 2253-1177. É o telefone do Disque Denúncia do Rio de Janeiro – uma espécie de confessionário a serviço do combate ao crime. A instituição rivaliza, em termos de importância, com qualquer órgão de segurança instalado na cidade. É uma organização civil independente, que não recebe um tostão dos cofres públicos, mas que interfere na tradicional cadeia da investigação policial a ponto de se tornar imprescindível. Mais do que ajudar a prender bandidos, o desafio diário é convencer o cidadão comum a contar tudo que sabe em troca do sigilo absoluto da sua identidade. A garantia do anonimato é o segredo do seu sucesso.

Depois de receber dois milhões de denúncias em 21 anos de existência, não há registro de um único caso de vazamento da identificação do informante – se houve, ninguém ligou denunciando. Os dados estatísticos do Disque Denúncia impressionam: seja pela quantidade de prisões realizadas a partir da informação do cidadão anônimo ou pela abundância de crimes. Desde os idos de 1995, quando surgiu para auxiliar no combate à indústria do seqüestro, o serviço contabiliza 21 mil capturados. Programas semelhantes existem à beça mundo afora. São cerca de 40 mil projetos espalhados pelos Estados Unidos e pela Europa, que recebem o nome de “Crime Stoppers”.

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Nossa tarefa é mostrar que nossos procedimentos são corretos e que o anonimato está garantido. Essa confiança foi conquistada dia a dia, hora a hora, ligação a ligação

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A diferença entre o Disque Denúncia e os similares mundo à fora é que, no exterior, o xerife de um condado americano, por exemplo, pede informações sobre o arrombamento da padaria do seu Manoel. “Aqui trabalhamos em escala industrial”, conta Zeca Borges, o marqueteiro que tomou para si a missão quase impossível de convencer o cidadão comum a pegar o telefone e denunciar. É que as pessoas, especialmente no Rio de Janeiro, têm medo da polícia, do traficante ou dos dois. “Nossa tarefa é mostrar que nossos procedimentos são corretos e que o anonimato está garantido. Essa confiança foi conquistada dia a dia, hora a hora, ligação a ligação”, explica o criador do Disque Denúncia.

Crime em escala industrial

Zeca Borges do Disque Denuncia. Foto de Divulgacao
Zeca Borges, o criador do Disque Denúncia.  Foto de Wilson Aquino

Quando Borges fala do crime “em escala industrial” está coberto de razão.  No estado do Rio de Janeiro, especialmente na capital, as denúncias são de roubos, violência contra mulheres, idosos e crianças, estupros, tráfico de drogas, armamentos contrabandeados, sequestros, homicídios… É um cardápio amargamente farto. Há 21 anos, quando foi criada, o slogan da entidade era até um pouco clichê: “A arma do cidadão”. O cartaz também não era nada genial. Ao contrário. Havia, inclusive, quem preferisse cartazes do velho oeste americano, onde os criminosos eram retratados pelo traço de um desenhista – até, porque, a recompensa era em dólar. Ao longo dos anos, o Disque Denúncia criou um padrão que se tornou familiar.  Um cartaz com muito vermelho, amarelo e preto e a foto do acusado, abaixo da palavra “procurado” em letras garrafais. E o valor da recompensa, é claro – paga sempre em dinheiro vivo.

Cartaz do Disque Denuncia. Foto de Divulgacao
Cartaz do Disque Denúncia. Foto de Divulgação

O primeiro cartaz contendo o valor da recompensa é de 1999. À época, foram oferecidos R$ 2 mil por informações do paradeiro do traficante Marcio Amaro de Oliveira, o “Marcinho VP”. O então chefe do tráfico no morro Dona Marta ficou muito conhecido em 1996, quando o astro pop Michael Jackson gravou um clip numa laje da comunidade de Botafogo, Zona Sul do Rio. “VP” foi preso no ano seguinte e acabou assassinado na penitenciária, em 2003. A maior recompensa oferecida até hoje envolvia o traficante Luiz Fernando da Costa, o “Fernandinho Beira-Mar”: R$ 100 mil. “Não pagamos nada”, conta Borges, lembrando que o exército colombiano realizou a prisão em 2001, em plena selva amazônica, quando trocava armas e drogas com guerrilheiros.

Antes de oferecer recompensa por uma informação, o Disque Denúncia tem que se virar para assegurar o pagamento. “Não temos dinheiro em caixa para recompensa. Eu ligo para dois, três patrocinadores e digo: estou precisando de um ‘stand by’. Vou pedir R$ 50 mil pelo fulano de tal, se, ele for preso, você garante o dinheiro?”, explica Borges, que, aliás, é a única cara conhecida. O anonimato é garantido a todos os outros envolvidos na operação: quem denuncia, quem recebe a ligação e quem paga a recompensa.

Uma crise no meio do caminho

A crise econômica que abateu-se sobre o país desestabilizou o trabalho da entidade, que tem um custo anual de R$ 6 milhões. O Disque Denúncia está funcionando no vermelho e acumulando um prejuízo mensal de R$ 85 mil. “Estamos sem condições financeiras de melhorar a estrutura de TI, que é fundamental para o nosso trabalho”, admite Borges. Outro efeito negativo foi a necessidade de enxugar a estrutura: 30% da equipe foi dispensada, o que envolveu atendentes e analistas treinados para reduzir a margem de erro e identificar o grau de seriedade da informação. Quando o denunciante faz questão de dar seu nome, endereço, CPF e identidade, já se sabe que a informação é falsa. “O denunciante que tem informação mais forte está nervoso, erra, às vezes não sabe nem onde está. A gente sabe que aquilo é importante e tem que resolver”, conta Borges, que monitora aqueles que costumam ligar passando informações falsas. “Em alguns casos temos filtros marcando. Quando dá o endereço o sistema alerta a gente. Para não demandar uma ação e desgastar a polícia à toa. Temos poucos trotes”.

Atuação diversificada

Apesar de o foco ser o combate ao crime, violência e impunidade, o Disque Denúncia atua em diversas outras áreas, como crimes ambientais e desaparecidos. “Nosso maior problema é o desaparecido adulto”, conta Zeca Borges, explicando que as pessoas costumam aparecer em três dias. “Teve um achado no cinema com o namorado. Um marido que estava numa festa com mulheres, em Fortaleza. E teve outro que disse que foi abduzido”, lembra Borges, salientando que quer ajudar, mas não pode pôr em risco a credibilidade do serviço.

O Disque Denúncia também promove campanhas como a doação de sangue e o combate à violência contra a mulher. “Nosso espectro é muito grande, vai da área de vigilância sanitária (Dengue, Zika) até sequestro”, conta. Sem falar no resgate de animais ou denúncia envolvendo supermercados que vende produto com data de validade vencida. “É comum ouvirmos: vocês são minha última esperança”. Sem falar nas denúncias folclóricas. Ele conta que, certa vez, ligaram informando que um Disco Voador havia pousado na vizinhança. “Claro que não acionei a NASA”, conclui Borges, em tom de brincadeira.

Wilson Aquino

Wilson Aquino é repórter e autor do livro Verão da Lata (editora Leya)

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