Tia Lúcia, vida e arte na Gamboa

Expoosição mostra a obra de Tia Lúcia, ícone da Gamboa (Foto Daniela Paoliello)

Apesar de todos os obstáculos, artista negra e uma das lideranças da região construiu uma obra hoje reconhecida e estudada

Por Thaís Britto | ODS 9 • Publicada em 24 de fevereiro de 2019 - 12:38 • Atualizada em 24 de fevereiro de 2019 - 13:08

Expoosição mostra a obra de Tia Lúcia, ícone da Gamboa (Foto Daniela Paoliello)
Expoosição mostra a obra de Tia Lúcia, ícone da Gamboa (Foto Daniela Paoliello)
Expoosição mostra a obra de Tia Lúcia, ícone da Gamboa (Foto Daniela Paoliello)

É difícil pensar na Zona Portuária do Rio de Janeiro sem logo incluir as memórias de Tia Lúcia na história. Moradora da região desde criança, ao chegar da Bahia, Lúcia Maria dos Santos era figura sempre presente, fosse assistindo às apresentações do Escravos da Mauá de sua sacada, fosse dando oficinas de artesanato, fosse apenas no papo com os vizinhos e amigos de toda a vida. Negra e uma das lideranças locais na defesa e preservação da cultura afro-brasileira, Tia Lúcia foi mais do que uma vizinha querida. Foi uma artista que, apesar de toda adversidade, teve uma trajetória dedicada à arte. Falecida em setembro do ano passado, ela e sua obra são protagonistas na exposição “A Pequena África e o MAR de Tia Lúcia”, em cartaz até o fim de fevereiro no Museu de Arte do Rio.

A exposição inaugurou um novo espaço na biblioteca da Escola do Olhar, que pretende abrigar projetos mais experimentais e “construir visibilidade para processos de trabalho que não necessariamente estão no campo estrito da arte”, explica Izabela Pucu, coordenadora de Educação do museu e uma das curadoras da exposição. Mas isso de maneira alguma significa que o trabalho de Tia Lúcia seja menor do que o que se vê no Pavilhão de Exposições – aliás, um de seus trabalhos integra também a mostra “Rio de Samba: resistência e reinvenção”, em cartaz no museu. “Demos um tratamento adequado ao trabalho de uma mulher como Tia Lúcia. É a valorização da produção de uma artista que não veio de uma formação oficial, canonizada, mas que construiu para si esse lugar de artista. Isso é uma contribuição inestimável”, defende Izabela.

Alguns desenhos da artista que tem ligação marcante dom o Museu do Amanhã (Foto divulgação)
Alguns desenhos da artista que tem ligação marcante dom o MAR (Foto divulgação)

Na mostra estão reunidas algumas de suas pinturas mais marcantes, mas também séries menos conhecidas de desenhos e colagens em formas diversas. O conjunto da obra de Tia Lúcia, por si só, deixa para trás a lenda de que ela seria tão somente uma artista naif, espontânea: ali aparece a Tia Lúcia pesquisadora, que explora diferentes materiais e formatos, que numera e dá nomes aos trabalhos, que usa humor nas representações. Ela estava, de fato, e de forma consciente, construindo uma obra, ressalta a curadora.

“Aqui já acho que começa a ter uma diferença no uso da cor, uma abstração maior das superfícies. Ela não está mais tão preocupada em representar, como nos primeiros desenhos”, descreve Izabela, mostrando uma das obras da exposição. “Encontramos também conjuntos de trabalho que são colagens em que ela retira partes, vamos dizer, do universo formal da realidade, e insere em superfícies abstratas. Isso é pura pesquisa.”.

O trabalho em papel mostra que Tia Lucia pesquisava e estava além do naif (Foto Divulgação)
O trabalho em papel mostra que Tia Lucia pesquisava e estava além do naif (Foto Divulgação)

É possível ver ainda o humor em seus diversos conjuntos de personagens, em uma clara experimentação da representação da figura humana. Há desenhos feitos em taras de papel que se estendem por quilômetros e há, numa das séries mais interessantes, rostos desenhados em folhas de papel A4. “Aqui tem uma inteligência na ocupação do suporte. Você vê que o limite do papel está incluído no processo. Ela não foi lá e simplesmente desenhou. Todos são numerados e tem uma pesquisa sobre o uso da superfície inteira do papel”, explica Izabela.

A exposição revela também a relação entre Tia Lúcia e o Museu de Arte do Rio, e como ambos acabaram afetados por esta troca. A artista fazia parte do Programa de Vizinhos, que leva os moradores da região do entorno para reuniões e eventos sobre o dia a dia da instituição. Mas Tia Lúcia foi além da participação passiva: diferente da maioria dos outros moradores, ela adquiriu protagonismo, reivindicando para si o espaço de artista dentro do museu.

Ainda que já tivesse escolhido a arte como seu meio de vida, foi ali que ela entendeu a dimensão disso, na opinião de Izabela: “Quando fiz essa exposição é que me dei conta que muito mais que a obra da Tia Lúcia, o que está sendo mostrado aqui é também a invenção de si como artista de uma mulher que tinha tudo para não se colocar nesse lugar”. E, claro, sendo uma via de mão dupla, a força de uma mulher como Tia Lúcia propõe questões para o museu que não podem ser ignoradas. A própria inauguração do novo espaço expositivo é consequência desta experiência.  Para a curadora, histórias como a de Tia Lúcia evidenciam uma tendência mundial, que é a do museu como protagonista de transformação social.

“A gente sabe que a cultura e a arte estão no centro das disputas simbólicas. É importante que o museu tenha consciência do seu papel social, cultural e político para além de seu papel no campo da arte. As instituições culturais têm um papel plural e existe um movimento recente, que não tem 10 anos, de consciência desse papel por parte de artistas, curadores e pesquisadores. Hoje não se faz mais um museu sem essa dimensão política, antropológica e sociológica dentro de sua estrutura de funcionamento, de sua gestão”, explica.

Tia Lúcia gostava de contar a história de como entrou pela primeira vez em um museu. Foi por acaso: era professora de catecismo e voltava com os alunos de uma missa na Igreja da Candelária quando as crianças escaparam e entraram correndo no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). Na época achava que “museu era coisa de rico”, “uma coisa grande e bonita, mas sem ninguém”. Em sua apropriação ativa dos espaços culturais, ela serve de inspiração para o surgimento de outras Tias Lúcias por aí.

Thaís Britto

Carioca, tradutora e jornalista formada pela Uerj (#resiste), com passagens pelo jornal O Globo e pela editora Record. Fascinada em igual medida por ficção e pela realidade. Cultura, viagens e empatia são provavelmente suas palavras favoritas na vida.

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Um comentário em “Tia Lúcia, vida e arte na Gamboa

  1. Yago germano marques dos santos disse:

    Muito interessante a história dessa senhora negra guerreira, que foi a minha avó tia Lúcia uma pessoa muito iluminada, que adorava alegrar todos a sua volta, as vezes com coisas materiais ou até mesmo só com suas palavras motivadoras e divertidas, sinto muita saudade deste ser humano incrível que nunca mais vou ver na minha vida, mas sempre estará viva na minha memória, ela foi muito importante pra mim na minha infância, porem fico muito feliz como neto dela ver ela sendo representada dessa forma e tenho interesse em conhecer tudo relacionado a ela .

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