Pandemia faz indígenas Xavante passarem fome

A cacica da aldeia Paranoá, Heroína Rewanhiré, de 93 anos, irmã do cacique e deputado Mario Juruna, falecido em 2002: xavantes sofrem com a fome durante a pandemia (Foto: José Medeiros/Amazônia Real)

Com avanço da covid-19, problema crônico da falta de alimentos se agrava em aldeias no leste do Mato Grosso e indígenas sobrevivem com doações

Por Amazônia Real | ODS 2ODS 3 • Publicada em 25 de fevereiro de 2021 - 14:07 • Atualizada em 7 de março de 2021 - 14:24

A cacica da aldeia Paranoá, Heroína Rewanhiré, de 93 anos, irmã do cacique e deputado Mario Juruna, falecido em 2002: xavantes sofrem com a fome durante a pandemia (Foto: José Medeiros/Amazônia Real)

Marcio Camilo*

Cuiabá (MT) – Para não passar fome, a cacica da aldeia Paranoá, Heroína Rewanhiré, decidiu ir à cidade de Barra do Garças, no leste de Mato Grosso, pedir doações. Aos 93 anos, a anciã se esforçava para levar comida às sete famílias do povo Xavante de seu território, que desde o início da pandemia sofrem com o agravamento de um problema crônico: a falta de alimentos. Em 29 de dezembro passado, ela conseguiu seis cestas básicas na sede da Fundação Nacional do Índio (Funai) no município. Mas, naquele dia, Heroína estava sem dinheiro para retornar. Assim como a Funai, que não tinha verbas para abastecer quatro camionetes paradas no pátio sem combustível. E mesmo se tivesse não havia funcionários à disposição para dirigir os veículos. A cacica teve, então, de esperar mais duas semanas até conseguir uma carona para levá-la de volta ao seu povo.

O repórter fotográfico José Medeiros, enviado especial da Amazônia Real à Barra do Garças com todo o protocolo de segurança exigido pela pandemia do novo coronavírus e autorizado pelo povo Xavante, acompanhou a viagem de Heroína Rewanhiré em busca de comida. Ela é irmã de Mário Juruna – uma liderança histórica dos Xavante que morreu em 2002, sendo o primeiro indígena brasileiro a se tornar deputado federal. Sempre que vai à cidade, a cacica tem de ficar na casa de uma filha. O local é afastado do centro, onde fica a coordenação regional da Funai. Isso a obrigava a caminhar por pelo menos meia hora até chegar ao órgão. “Estou doente, cansada e com diarreia. Difícil para mim ter que ir todo dia na Funai”, desabafou.

Informados pela reportagem da situação dramática da aldeia de Heroína Rewanhiré, integrantes da campanha SOS Xavante doaram outras cinco cestas básicas, com a ajuda do guia turístico Maurinho Xavante. Turistas que visitavam a Serra do Roncador e o coordenador do Movimento de Luta Pela Terra Nacional (MLT), Batista da Silva Pereira, também se sensibilizaram. Pereira doou 400 quilos de mandioca, além de ramas do alimento cultivadas no assentamento Wilmar Peres, na região de Barra do Garças. Já os turistas deram uma ajuda financeira para a compra de mais alimentos.

A jornalista Ana Paula Xavante, uma das coordenadoras do SOS Xavante, explica que a demanda da etnia pelo alimento é uma necessidade real. Desde o início da pandemia do novo coronavírus, a organização formou uma rede de apoio para doar alimentos a diferentes comunidades indígenas. “Temos aldeias que passam fome”, declarou. “Lutar por alimento é uma questão antiga e que se agravou com a pandemia.” A campanha SOS Xavante já doou, desde o início da crise sanitária, mais de 3 mil cestas de alimentos.

Heroína Rewanhiré, na aldeia Paranoá, em Mato Grosso: "“Estou doente, cansada e com diarreia." (foto: José Medeiros/Amazônia Real)
Heroína Rewanhiré, na aldeia Paranoá, em Mato Grosso: ““Estou doente, cansada e com diarreia.” (foto: José Medeiros/Amazônia Real)

“São as crianças que mais sofrem”

Dos 80 indígenas que vivem na aldeia Paranoá, cerca de 20 são crianças e adolescentes. Sem incentivo para a produção na própria terra e diante de uma política pública que não garante a segurança alimentar, os indígenas se tornaram dependentes de doações de cestas básicas. E mesmo quando chegam, elas não conseguem atingir todas as aldeias. Às vezes, a fome é tanta que não chegam a durar uma semana. Entre morrer de fome ou contaminado pela Covid-19, os povos têm se arriscado a ir para a cidade. O desespero se reflete nos olhos dos pequenos.

“Pois são as crianças que mais sofrem com a fome”, afirmou o professor Bonifácio Ubnatsewawe Tsirobowe. Ele conta que o arroz, feijão, óleo e farinha escassearam na comunidade a partir de junho e a situação persiste até o momento, ainda num cenário de muita preocupação e incertezas diante de uma provável segunda onda de Covid-19, e da falta de planejamento do governo federal para vacinar as populações indígenas.

A comunidade onde vive Bonifácio fica próxima à Serra do Roncador, um dos mais importantes pontos turísticos de Mato Grosso. O local se situa em uma faixa de vegetação composta pela floresta amazônica e pelo cerrado. Paranoá é uma das 58 aldeias da TI São Marcos, ficando isolada das demais. Ela faz divisa com uma série de fazendas de criação de gado e de eucalipto.

Essa localização desfavorece a comunidade, que não possui sinal de internet. Os moradores precisam se deslocar, no mínimo, 10 quilômetros até a porteira de fazenda mais próxima para captar algum sinal e se comunicar com a cidade, seja na busca por alimentos ou para emergência de saúde. A pandemia só escancarou a grande falha que há na rede proteção aos povos originários, que deveria ser garantida pela Funai. É por essa razão que a cacica Heroína, antes do regresso à sua aldeia, declarou à reportagem que a Funai “ajuda muito pouco e sempre enrolou muito para ajudar”.

Na aldeia Paranoá, são poucos os que recebem salário. No local, há dois professores e três agentes de saúde indígena. Outros contam com algum tipo de auxílio do governo federal ou são aposentados. Uma vez por mês, algumas dessas pessoas juntam seus ganhos e com muita dificuldade de locomoção vão até à cidade comprar os alimentos.

Jovens xavantes na aldeia Paranoá: escassez de arroz, feijão, óleo e farinha (Foto: José Medeiros/Amazônia Real)
Jovens xavantes na aldeia Paranoá: escassez de arroz, feijão, óleo e farinha (Foto: José Medeiros/Amazônia Real)

A exploração do povo Xavante

“Tudo piorou e só aumentou de preço desde a chegada da pandemia”, afirmou o professor Bonifácio. De sua aldeia até Barra do Garças, são cerca de 200 quilômetros, onde fica a Coordenação Regional (CR) Xavante da Funai em Mato Grosso. Para se deslocarem até lá, os moradores de Paranoá dependem dos freteiros, um serviço de transporte que já era caro para os indígenas e que aumentou ainda mais de valor nos últimos meses: “O frete para ir à cidade está caro e os alimentos também. Nosso dinheiro não dá. O que a gente compra de comida não dá para passar o mês, é 20 dias no máximo”, preocupava-se Bonifácio.

Uma viagem de ida e volta da aldeia Paranoá até Barra do Garças, em alguns casos, chega a custar mil reais. Isso ocorre quando um indígena precisa levar uma pessoa junto para ajudar a transportar os alimentos, por exemplo. Cada “carona”, como chamam os freteiros, é sobretaxada em 150 reais. “Isso é uma brincadeira, uma falta de respeito que eles fazem com a gente”, criticou Bonifácio, que ganha um salário mínimo, (R$ 1.100) para lecionar como professor de ensino fundamental em sua aldeia.

Enquanto isso, os que ficam na comunidade tentam se virar como podem. Sanção Xavante procura repassar a tradição antiga de caça ao seu filho Wanderlei Xavante. Foi assim que durante a volta de uma fazenda, onde os dois também foram pedir doações, que eles conseguiram caçar uma seriema. Não foi tarefa fácil para o jovem Wanderlei, mas com a orientação do pai, ele conseguiu cercar e capturar a presa. Naquele dia, a seriema e um bocado de arroz seriam a refeição da família de Sanção, que conta com dois adultos, quatro crianças e dois adolescentes.

Em Mato Grosso, indígenas Xavante passam por dificuldades e recebem doações (Foto José Medeiros/Amazônia Real)
Em Mato Grosso, indígenas Xavante passam por dificuldades e recebem doações (Foto José Medeiros/Amazônia Real)

Morte por suspeita de Covid-19

Na pandemia, a falta de comunicação se tornou um problema ainda mais grave em Paranoá. Em junho de 2020, o indígena João Bosco Tomotsudzarebe, de 41 anos, morreu com suspeita de Covid-19 sem que a comunidade conseguisse retirá-lo a tempo da aldeia. Foi impossível fazer um contato rápido com o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Xavante. Quando João Bosco piorou, ao sentir uma grande dificuldade de respirar, Bonifácio e outros indígenas decidiram caminhar até a porteira da fazenda. Assim teriam acesso à internet e poderiam entrar em contato com o Dsei. O contato foi estabelecido, mas quando retornaram, Bosco já tinha morrido. Ao todo foram seis horas de caminhada em vão. “Restou apenas o carro da funerária para levar o corpo”, contou Bonifácio.

Com uma população de 22.256 em Mato Grosso, os Xavante, autodenominados A´uwe (“gente”), da família linguística Jê, é a etnia mais afetada pelo novo coronavírus no Brasil. Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), 68 Xavante já morreram de Covid-19, de acordo com atualização de casos divulgados em 22 de janeiro. Já a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) contabiliza 49 mortes e 908 casos de Covid-19.

Mato Grosso é o segundo estado brasileiro com mais mortes indígenas por causa da pandemia: 152 até 22 de janeiro. Ele fica atrás apenas do Amazonas, com 35 óbitos. A Apib contabiliza mais de 49.140 casos confirmados da doença entre 162 povos indígenas e 970 mortes.

A indígena Aalexandrina Rootsiwanario na aldeia xavante Paranoá: etnia mais atingida pela covid-19 (Foto: José Medeiros/Amazônia Real)
A indígena Aalexandrina Rootsiwanario na aldeia xavante Paranoá: etnia mais atingida pela covid-19 (Foto: José Medeiros/Amazônia Real)

“Queremos comer o que a gente planta”

O professor Xavante ressalta que os moradores da aldeia Paranoá querem “oportunidade, insumos agrícolas, estrutura para fazer o roçado, sementes para o plantio e curso de capacitação para fazer o manejo da terra”. “Queremos comer o que a gente planta”, resume Bonifácio Ubnatsewawe Tsirobowe.

Félix Tsiwetsudu Tseredze, vice-presidente da Associação Xavante Warã, ressaltou que os Xavante só vão conseguir uma segurança alimentar concreta quando receberem apoio do governo e serem capacitados em gestão territorial. Félix é primo de primeiro grau da cacica Heroína e mora na aldeia Nossa Senhora de Guadalupe, que também fica na TI São Marcos. É um dos poucos Xavante com ensino superior, sendo formado em Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental pela Universidade de Brasília (UNB). Foram os estudos e os aprendizados do pai, o grande líder histórico dos Xavante, Apoena Tseredze Aptsire, que lhe deram conhecimento sobre segurança alimentar, para que ele e sua família não dependessem apenas das doações dos órgãos indigenistas.

Atualmente, Félix desenvolve em sua comunidade um projeto de criação de galinhas, que foi aprovado pela Funai, que custeará o projeto com insumos e recursos para a construção da estrutura que abrigará os animais. Para ele, esse tipo de conhecimento faz falta para a comunidade de Heroína e outros grupos Xavante que moram em nove terras indígenas ao leste de Mato Grosso. “É a formação em gestão, em manejo com a terra, na elaboração de projetos que vai garantir a sustentabilidade das famílias. É preciso que a Funai, que o governo, apoie os indígenas com políticas públicas nesse sentido. Para que a gente não dependa só de doações. Elas, claro, são importantes, mas não resolvem o problema. Depois que as doações acabam, o problema continua”, explicou.

Por estarem muito distantes das demais aldeias de São Marcos, as famílias de Paranoá sofrem ainda mais em relação ao acesso dos alimentos. Outro problema grave, conforme a liderança, é o impacto social causado pelos não indígenas na cultura, costumes e filosofia de vida dos Xavante, que tradicionalmente é um povo que produz o seu próprio alimento.

“Por conta da influência do homem branco, desses alimentos processados, muitos Xavante largaram a roça, a agricultura, o costume de produzir seu próprio alimento. Nós temos terras para produzir, mas essa influência do não indígena tem tirado a nossa coletividade, que é a característica mais forte do nosso povo. E, a partir disso, vamos para a cidade em busca dos alimentos processados”, observou Félix.

Funai admite estar sem recursos

O coordenador regional da Funai em Barra do Garças, Álvaro Luís de Carvalho Peres, disse à reportagem que 12 cestas básicas foram compradas para serem destinadas à Paranoá, inclusive as 6 entregues à família de Heroína. Peres reconheceu que a Funai está sem recursos financeiros para levar as demais cestas à comunidade, e os servidores estavam de férias no mês de janeiro.

“Tenho carro aqui no pátio para fazer o transporte e entregar as cestas nas aldeias, mas sempre, no final do ano, o governo federal recolhe os recursos. No momento nem servidores eu não tenho como entregar nas aldeias. Mas se tivesse os servidores aqui, eu não teria como deslocar os mesmos por falta de diária que será repassada pelo governo assim que iniciar a gestão econômica do ano de 2021”, argumenta o coordenador da Funai.

Diante da falta de logística para entregar as cestas, Peres pede que os próprios indígenas se dirijam à Barra do Garças. “Através de meu telefone atendo os caciques e digo que se eles tiverem como vir à cidade eu autorizo o fornecimento das cestas que a aldeia tem direito. Caso não possam vir, digo que esperem nas aldeias que tão logo eu tenha recursos financeiros e humanos eu vou transportar as cestas até as respectivas aldeias”, garante.

Álvaro afirma que Funai procura estimular que os indígenas plantem em suas terras. “O que a Funai pode fazer, está fazendo. E queremos estender para todo o povo Xavante o etnodesenvolvimento. Dessa forma, eles vão parar de viver de assistencialismo”, disse ao comentar que programas com esse viés já estão em curso na Terra Indígena Sangradouro, também dos Xavantes.

Em janeiro, o coordenador regional da Funai afirmava que o órgão entregaria 900 cestas básicas para as 52 aldeias de São Marcos.

*Amazônia Real

Amazônia Real

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