Diário da Covid-19: coronavírus já matou mais cariocas do que chineses

Banhista corre na praia de Copacabana em meio às cruzes plantadas pela ONG Rio de Paz em protesto contra a política de combate ao covid-19 na cidade e no país. Foto Dikran Junior/AGIF

Para cada habitante da China que morreu ao longo da pandemia existem, até o momento, 230 moradores da Cidade Maravilhosa que perderam a vida

Por José Eustáquio Diniz Alves | ODS 3 • Publicada em 11 de junho de 2020 - 10:19 • Atualizada em 19 de dezembro de 2021 - 11:54

Banhista corre na praia de Copacabana em meio às cruzes plantadas pela ONG Rio de Paz em protesto contra a política de combate ao covid-19 na cidade e no país. Foto Dikran Junior/AGIF

A cidade do Rio de Janeiro bateu uma triste marca e atingiu 4.716 mortes pela covid-19, cifra superior às 4.634 vidas perdidas em todo o território chinês desde o início da pandemia. A diferença é que a China tem 1,44 bilhão de habitantes e a capital fluminense tem 6,7 milhões de habitantes. O coeficiente de mortalidade na China é de 3 óbitos por milhão e na Cidade Maravilhosa de 702 óbitos por milhão (em 10/06). Ou seja, para cada chinês morto há, até aqui, 230 cariocas que perderam a vida. E o mais incrível é que o pouco educado ministro da Educação, Abraham Weintraub, ainda faz piada racista contra o povo do leste asiático.

Os habitantes da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro – que têm forte tradição católica e cristã – viram com pesar a situação das mortes na Itália e muitos cariocas chegaram a chorar com as imagens do Papa Francisco rezando sozinho na Praça de São Pedro, durante a Semana Santa. O que ninguém imaginaria é que, no início do dia de Corpus Christi (11/06), o Rio teria um coeficiente de incidência de 5,8 mil pessoas infectadas por milhão de habitantes, número bem superior aos 3,9 mil casos por milhão da Itália e um coeficiente de mortalidade de 702 óbitos por milhão, contra os 564 óbitos por milhão da Itália.

Mas o Rio não se destaca somente no cenário internacional, pois tem também uma posição proeminente entre as capitais do país. O gráfico abaixo mostra o coeficiente de incidência para todas as capitais estaduais e para o total nacional, no dia 09 de junho. O Brasil apresentou um coeficiente de 3,7 mil casos por milhão de habitantes e a capital fluminense um coeficiente de 5,6 mil casos por milhão. Na dianteira está Boa Vista (capital de Roraima), com quase 12 mil casos por milhão e na outra ponta, com o menor coeficiente está Campo Grande (capital de Mato Grosso do Sul) com 471 casos por milhão.

Mas a posição da cidade do Rio Janeiro é ainda mais difícil quando se considera o número de vidas perdidas. O gráfico abaixo mostra o coeficiente de mortalidade para todas as capitais estaduais e para o total nacional, no dia 09 de junho. O Brasil apresentou um coeficiente de 189 óbitos por milhão de habitantes e a capital fluminense um coeficiente de 688 óbitos por milhão. Na dianteira está Belém (capital do Pará), com 1.097 óbitos por milhão e na outra ponta, com o menor coeficiente está também Campo Grande com apenas 9 óbitos por milhão. Campo Grande tem um coeficiente de mortalidade 123 vezes menor do que Belém e 110 vezes menor do que Fortaleza. Isto mostra que existem capitais que estão conseguindo evitar uma grande mortandade da covid-19.

O novo coronavírus chegou a todos os 162 bairros do Rio de Janeiro conforme mostra o gráfico abaixo, com dados do número de pessoas infectadas, segundo o painel da covid-19 da Prefeitura do Rio. A pandemia se espalhou por toda a cidade, evidentemente, atingindo alguns bairros mais fortemente do que outros.

Os bairros com maior número de óbitos são Campo Grande, Copacabana, Bangu, Realengo, Santa Cruz, Tijuca e Barra da Tijuca. Evidentemente, apenas os números brutos não dão a dimensão dos coeficientes de incidência e de mortalidade dos bairros, nem se leva em consideração a estrutura etária e social. Para uma análise mais detalhada do impacto da pandemia com enfoque inframunicipal, recomendamos o texto “Nota sobre mortalidade pela COVID-19 por bairros no Rio de Janeiro” do demógrafo Gabriel Borges.

O futuro da pandemia na cidade do Rio de Janeiro

A pandemia do novo coronavírus já completou 3 meses desde o primeiro caso registrado na cidade. No dia 07 de março foi anunciada a primeira pessoa infectada, uma mulher de 52 anos que havia viajado para a Itália. No dia 22 de março, foi confirmada a primeira morte na cidade, um homem de 66 anos. De lá para cá os números cresceram de forma exponencial, como mostra o gráfico abaixo.

O número de pessoas infectadas ficou, em média, abaixo dos 500 casos diários até meados de maio, quando deu um salto para 2.535 no dia 20 de maio e depois oscilou em torno de mil novos casos diários. Com os dados mais recentes (muito influenciados pelo fim de semana), a curva do ajuste polinomial de terceiro grau aponta para uma estabilização e até uma ligeira redução dos casos.

Depois de um certo tempo após o crescimento do número de casos, começou o crescimento do número de mortes. No mês de abril, o número de vidas perdidas para o novo coronavírus ficou abaixo de 50 óbitos diários. Mas no mês de maio este número ficou acima de 100 óbitos diários e atingiu o valor máximo de 227 óbitos no dia 03 de junho. Também com os dados atuais (muito influenciados pelo fim de semana), a curva do ajuste polinomial de terceiro grau aponta para uma redução no número de mortes. Mas não existe certeza ainda se esta redução é conjuntural ou estrutural.

O que se nota no mundo é que, na maioria absoluta dos países, a pandemia se reduz bastante depois de 3 meses dos primeiros casos. Na China a pandemia se expandiu em janeiro e fevereiro, mas já estava quase controlada no final de março. Nos EUA cresceu muito em março e abril, ultrapassou o pico em maio e já está em declínio em junho. Itália, Espanha, França e Reino Unido tiveram grande expansão da pandemia nos meses de março e abril, uma redução em maio e números bem mais baixos em junho.

Se este padrão fosse seguido no Rio de Janeiro, depois do grande crescimento em abril, maio e início de junho, seria o momento para estarmos atravesando o pico e iniciando a descida da curva. De fato, os gráficos acima apontam para esta possibilidade. Sem dúvida, é preciso considerar que o impacto da pandemia no Rio de Janeiro já é maior, proporcionalmente, do que em várias nações. Além de ter um coeficiente de mortalidade maior do que o dos grandes países europeus, como a Itália, as 702 mortes por milhão de habitantes do Rio é duas vezes o valor do coeficiente de 348 mortes por milhão dos EUA. Desta forma, já estaria mais do que passando da hora de iniciar a descida da curva.

Contudo, o Rio de Janeiro vive não só uma grande crise sanitária, mas também uma crise política e não existe uma sinergia entre as 3 esferas do poder público e a sociedade. O presidente Bolsonaro, morador da Barra da Tijuca (um dos bairros mais atingidos pela pandemia na cidade) nunca mostrou determinação no combate ao coronavírus e deu inúmeras declarações e incontáveis atitudes no sentido de desmobilizar a população e as políticas públicas na contenção da pandemia. Além disto, o presidente da República está em guerra aberta com o governador do Rio, que por sua vez tem sido alvo de muitas denúncias de corrupção especialmente na área de saúde (onde existe uma longa tradição de falcatruas no Estado). Além de se desentender com o governo Federal, o governador também se desentende com o prefeito, que por sua vez não se entende com as forças vivas da sociedade carioca. Na mais recente novidade, a Assembleia Legislativa (Alerj), no dia em que o Rio ultrapassou a China em número de mortes, decidiu abrir processo de impeachment contra o governador Wilson Witzel.

Apoiador do presidente Bolsonaro usa uma máscara de proteção contra o coronavírus em manifestação no Rio. Foto Carl de Souza/AFP
Apoiador do presidente Bolsonaro usa uma máscara de proteção contra o coronavírus em manifestação no Rio. Foto Carl de Souza/AFP

Parece que ninguém se entende ou não se importa com o crescimento do número de mortes. A barafunda do Poder Público se reflete na sociedade civil (que já tinha as suas dúvidas e seus problemas) que fica ainda mais dividida e confusa com o exemplo que vem das autoridades governamentais. Por conta de tudo isto, o Rio não conseguiu fazer uma barreira sanitária para evitar a propagação do coronavírus. Não conseguiu testar, rastrear e monitorar as pessoas infectadas. Não conseguiu fazer uma quarentena decente. Não adotou corretamente as regras de higiene e proteção. E agora inicia um processo de abertura das atividades econômicas e sociais (inclusive abertura de templos e igrejas) num momento em que o número de casos e de óbitos está no platô mais elevado.

O perigo de haver uma segunda onda é muito grande. O Irã, por exemplo, teve uma segunda onda de casos mais forte do que a primeira, conforme mostrei no Diário da Covid-19 (Alves, 09/06/2020). Uma flexibilização precoce, antes da eliminação do contágio comunitário, pode ser uma atitude não só errada, como irresponsável. A cidade do Rio de Janeiro já teve uma péssima experiência, em meados de 1904, quando houve um surto de varíola na cidade e a grande maioria da população, contrariando as recomendações científicas do médico Osvaldo Cruz, se opôs ao Poder Público promovendo a Revolta da Vacina.

O Rio, apesar de ser uma das cidades mais ricas do país, possui incontáveis carências especialmente na área de saneamento básico, de desigualdade social e de proteção ambiental. Entre as grandes cidades do mundo, a capital fluminense já é uma das mais atingidas (o município de São Paulo, por exemplo, tinha um coeficiente de mortalidade muito menor, de 414 óbitos por milhão no dia 09/06). O Rio tem coeficiente de mortalidade duas vezes maior do que o dos EUA, mas menor do que o da cidade de Nova Iorque. Todavia, se houver uma segunda onda da pandemia, a população carioca poderá obter o título da cidade (com mais de 6 milhões de habitantes) com maior coeficiente de mortalidade do mundo. Mas este é o tipo de título que ninguém deseja.

Frase do dia 11 de junho de 2020

“Cariocas são bonitos

Cariocas são bacanas

Cariocas são sacanas

Cariocas são dourados

Cariocas são modernos

Cariocas são espertos

Cariocas são diretos

Cariocas não gostam de sinal fechado”

Adriana Calcanhotto (compositora e cantora gaúcha)

Referência:

BORGES, Gabriel. Nota sobre mortalidade pela COVID-19 por bairros no Rio de Janeiro, 28/05/2020 https://github.com/gmendesb/obitos_COVID_RJ/blob/master/obitos_por_bairro_Rio_01-06.pdf

ALVES, JED. Diário da Covid-19: Turquia controla a pandemia e o Irã tem segunda onda, #Colabora, 09/06/2020 https://projetocolabora.com.br/ods3/turquia-controla-a-pandemia-e-o-ira-tem-segunda-onda/

José Eustáquio Diniz Alves

José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, mestre em economia, doutor em Demografia pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar/UFMG), pesquisador aposentado do IBGE, colaborador do Projeto #Colabora e autor do livro "ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século" (com a colaboração de F. Galiza), editado pela Escola de Negócios e Seguro, Rio de Janeiro, 2022.

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