A surpreendente vitória do Chile na corrida pela vacina

Idosos na fila para receber a vacina Coronavac no primeiro dia de vacinação em massa no posto montado no Estádio Bicentenário, em Santiago: Chile vacinou 5,5% da população em uma semana (Foto: Martin Bernetti/AFP – 03/02/21)

Em uma semana, governo chileno já vacinou 5,5% da população contra a covid-19, com aposta em negociação antecipada e diversificação

Por The Conversation | ODS 3 • Publicada em 11 de fevereiro de 2021 - 09:17 • Atualizada em 19 de fevereiro de 2021 - 20:19

Idosos na fila para receber a vacina Coronavac no primeiro dia de vacinação em massa no posto montado no Estádio Bicentenário, em Santiago: Chile vacinou 5,5% da população em uma semana (Foto: Martin Bernetti/AFP – 03/02/21)

Veronica Diaz-Cerda*

À primeira vista, pode parecer que a corrida para adquirir as vacinas covid-19 foi vencida apenas por Israel e pelas grandes nações ocidentais do Hemisfério Norte. Mas, ao lado do Reino Unido, Canadá, EUA e União Europeia, outro país também garantiu um alto número de doses em relação à sua população: o Chile.

Até o momento, o governo chileno encomendou cerca de 90 milhões de doses de vacina – o suficiente para vacinar totalmente sua população de 19,2 milhões de pessoas duas vezes. Está pronto para receber vacinas da Pfizer, AstraZeneca, Sinovac, Sputinik e Johnson & Johnson, bem como a Covax, do programa global de fornecimento de vacinas coordenado pela OMS.

Como este país sul-americano conseguiu ficar ao lado das nações mais ricas do mundo para garantir doses de vacina suficientes para imunizar seu povo? A economia certamente foi um fator, mas não da mesma forma que para os outros líderes da corrida das vacinas.

O Chile não é um país pobre. Tem sido uma das economias de crescimento mais rápido da América Latina nas últimas décadas. Também é membro da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), um “clube de países em sua maioria ricos” que reúne nações com os mais altos níveis de renda e desenvolvimento humano. Ainda assim, a desigualdade de renda no Chile é maior do que em qualquer outro país da OCDE e 65% maior do que a média da OCDE.

Por causa dessa enorme desigualdade, o Chile está imerso em uma crise sociopolítica desde o final de 2019. Manifestações massivas e protestos violentos contra a desigualdade fizeram com que o governo enfrentasse a mais séria agitação social desde o fim da ditadura de Pinochet. Como consequência, o índice de aprovação do presidente Sebastián Piñera é o mais baixo para um líder de governo desde o retorno do país à democracia em 1990.

Idosa vacinada com a Coronavac em posto de vacinação em Santiago: Chile vacinou mais de 1 milhão de pessoas em seis dias (Foto: Martin Bernetti/AFP)
Idosa vacinada com a Coronavac em posto de vacinação em Santiago: Chile vacinou mais de 1 milhão de pessoas em seis dias (Foto: Martin Bernetti/AFP)

Em junho de 2020, um aumento acentuado nos casos de covid-19 gerou fortes críticas à capacidade do governo de lidar com a pandemia, o que só aumentou as desgraças do presidente. Em resposta, Piñera parece ter entendido que a única maneira de aumentar sua popularidade antes do fim de sua presidência, no final de 2021, é garantir o maior número possível de vacinas.

Isso significou voltar atrás em seus esforços anteriores de pintar o país como um exemplo de estabilidade e gestão econômica sólida. Em vez disso, Piñera argumentou o contrário para conseguir melhores negócios com as empresas farmacêuticas.

O status do Chile como um país de alta renda aos olhos do Banco Mundial tinha sido um obstáculo particular ao negociar pedidos com fabricantes de vacinas, especialmente a AstraZeneca. Para evitar pagar um preço alto, o governo precisou demonstrar que, devido à pandemia e à crise sociopolítica, a posição econômica do Chile é pior do que a das economias mais avançadas do mundo e, por isso, merecia pagar menos pelas vacinas. Esta reformulação do Chile como um país que enfrenta dificuldades econômicas parece ter funcionado.

Em uma ordem internacional caracterizada por cálculos de soma zero (na teoria econômica, isso significa que, quando um ganha, outro tem que perder – nota do tradutor) e defesa apenas de seus próprios interesses, Piñera e o governo chileno têm seguido as regras do jogo para aumentar suas próprias chances de sobrevivência.

Mas o governo chileno não teve sucesso apenas alegando falta de fundos. Também tem adquirido doses através da construção de um portfólio altamente diversificado de vacinas, composto de diferentes tipos em diferentes estágios de desenvolvimento, para se proteger de riscos causados por desabastecimento ou dependência de fornecedores.

Diversificação e negociação antecipada

Embora outros governos também tenham feito isso, o Chile adotou essa estratégia muito cedo. Ele entrou rapidamente em negociações com muitas empresas farmacêuticas, incluindo pioneiros como AstraZeneca e Pfizer, mas também Johnson & Johnson, que estava mais atrasada no desenvolvimento. Isso foi ajudado pela tradição da economia chilena de ser altamente aberta ao comércio: os negociadores comerciais chilenos têm fortes habilidades, uma ampla gama de contatos internacionais e estão acostumados a enfrentar ambientes incertos.

É justo dizer que, em sua estratégia de diversificação, o Chile foi muito além das economias mais avançadas, apostando na vacina CoronaVac, desenvolvida pela empresa chinesa Sinovac (já encomendou 60 milhões de doses). Em contraste, a maioria dos países europeus escolheu apenas vacinas ocidentais, apesar da vantagem comparativa da enorme capacidade de fabricação das empresas chinesas e de suas vacinas serem fáceis de transportar.

A enfermeria Zulema Riquelme recebe a vacina da Pfizer/Biontech no início da vacinação dos profissionais de saúde no Chile: aposta na diversificação (Foto: Marcelo Segura/Governo do Chile/AFP - 24/12/2020)
A enfermeria Zulema Riquelme recebe a vacina da Pfizer/Biontech no início da vacinação dos profissionais de saúde no Chile: aposta na diversificação (Foto: Marcelo Segura/Governo do Chile/AFP – 24/12/2020)

A decisão de participar dos ensaios clínicos das vacinas covid-19 também fortaleceu a posição de negociação do Chile. AstraZeneca, Johnson & Johnson, Sinovac e CanSino realizaram testes de fase 3 no país.

O Chile tem proteção regulatória rigorosa para participantes de ensaios clínicos, mas isso não dissuadiu os desenvolvedores de conduzir pesquisas lá. Isso pode ter sido contrabalançado pela perspectiva internacional das universidades chilenas, algumas das quais já haviam estabelecido laços estreitos com essas empresas farmacêuticas antes da pandemia.

A Pontifícia Universidade Católica do Chile, por exemplo, já havia estabelecido vínculos com a Sinovac para o desenvolvimento de vacinas contra vírus respiratórios antes da pandemia da covid-19. Portanto, não foi difícil convencer o governo chileno a fornecer fundos para sediar o programa de testagem da CoronaVac no país. Em troca, Sinovac prometeu acesso antecipado às doses e um preço melhor.

A ambiciosa meta do governo chileno é vacinar 80% de sua população até junho de 2021. Apesar de ter garantido o dobro das doses necessárias, agora está negociando acordos adicionais caso esses contratos falhem.

Apesar de ter começado apenas no início de fevereiro, a distribuição da vacina em massa ao público está avançando rapidamente (em uma semana, até 10 de fevereiro, o Chile já havia vacinado 1 milhão de pessoas, o que equivale a 5,5% da população; para comparação, no Brasil, após três semanas, a vacinação ainda não alcançou 2% dos habitantes – nota do tradutor).

A vacinação em massa, com idosos à frente, começou com a Coronavac. Mas antes, no fim de dezembro, profissionais de saúde da linha de frente do combate à pandemia tinham sido vacinados com o imunizante fabricado pela Pfizer/Biontech. O sistema de saúde chileno tem experiência significativa em programas de imunização em massa, e muitos centros de vacinação foram criados em todo o país para cumprir essa meta.

Por enquanto, a estratégia do governo de colocar o Chile entre os primeiros países a garantir as doses da vacina parece ter valido a pena. No entanto, é muito cedo para prever se isso terá um efeito positivo em Piñera e na popularidade do governo.

*Veronica Diaz-Cerda é professora de Relações Internacionais na Aston University (Birmingham, Inglaterra)

Tradução: Oscar Valporto

The Conversation

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