O preço justo do gelo e os carros da Zona Sul

Pressionada, prefeitura do Rio preserva estacionamentos e desloca bicicletários

Por Clarisse Linke | ODS 16 • Publicada em 9 de julho de 2018 - 08:00 • Atualizada em 10 de julho de 2018 - 23:40

Os novos bicicletários ocupam o equivalente a três vagas de estacionamento., o que provocou protestos de moradores. Foto Divulgação
Os novos bicicletários ocupam o equivalente a três vagas de estacionamento., o que provocou protestos de moradores. Foto Divulgação
Os novos bicicletários ocupam o equivalente a três vagas de estacionamento., o que provocou protestos de moradores. Foto Divulgação

Uma das questões que alçaram o filósofo norte-americano Michael Sandel ao patamar de ídolo pop foi apresentada em sua palestra mais famosa, Justiça, que mais tarde se tornou um dos mais concorridos cursos de Harvard. Sandel apresenta o seguinte problema: “No verão de 2004, o furacão Charley varreu o Golfo do México até a costa da Flórida, alcançando o oceano Atlântico. A tempestade causou 22 mortes e um prejuízo de US$ 11 bilhões em danos, e também deixou em seu rastro um debate sobre a manipulação de preços”.

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Derrubar o fetiche pelo carro, símbolo máximo de status do século XX, pode nos levar a dias melhores, mas não apenas no que se refere a uma mobilidade mais sustentável. É preciso criar modos mais sustentáveis de negociar com o coletivo, e isso requer pôr em xeque todo este individualismo.

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Com medo de perder alimentos e sem energia elétrica, a população precisava de gelo para conservar seus estoques. O pequeno saco plástico com um quilo de gelo, antes vendido por dois dólares, se supervalorizou. Donos de postos de gasolina começaram a vendê-los por dez dólares. Outros produtos que supririam necessidades básicas também dispararam. Nada muito diferente do que vimos por aqui durante a greve dos caminhoneiros: em todo o país, a situação caótica e o peso da lei da oferta e da procura foram os gatilhos de aumentos abusivos, com postos de combustível vendendo o litro da gasolina a oito ou dez reais. Transporte público parando, desabastecimento, reação em cadeia.

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Mas nem todas as notícias são ruins. A bicicleta provou, mais uma vez, que pode nos socorrer diante do caos. No Rio de Janeiro, as bicicletas compartilhadas do sistema Bike Rio tiveram um aumento de uso de 25% em apenas sete dias. Observar situações de crise, como fez Sandel, pode nos ajudar a entender as lógicas que fundamentam a vida em sociedade. Ao mesmo tempo em que a bicicleta prova seu valor como modo de transporte, moradores da Zona Sul do Rio têm feito barulho por conta do reposicionamento das estações do Bike Rio. A empresa operadora do serviço, Tembici, instalou novos equipamentos, que ocupam mais espaço no solo.

O sistema anterior tinha 2.600 bicicletas, 260 estações e 3.000 vagas (docks). Ou seja, 1.15 vaga por bicicleta. O recomendável é que a relação seja de 2.5 vagas por bicicleta, e houve uma mudança positiva neste sentido. Enquanto as estações anteriores eram modulares e tinham entre 12-14 vagas, com a renovação da concessão o sistema permanece com 2.600 bicicletas e 260 estações, mas terá estações maiores, mais ajustadas à demanda, com, em média, 19 vagas, algumas destas chegando a mais de 30 docks. No total, serão oferecidas 4.680 vagas, ou 1.8 vaga por bicicleta. Isto amplia o conforto dos usuários, que não precisam pedalar mais do que o necessário para encontrar uma vaga para devolver a bicicleta. Uma estação com 19 vagas atende, portanto, dezenas de usuários do serviço.

Na rua Teresa Guimarães, em Botafogo, as vagas dos carros deram lugar às bicicletas. Foto ITDP Brasil
Na rua Teresa Guimarães, em Botafogo, as vagas dos carros deram lugar às bicicletas. Foto ITDP Brasil

Porém, um fator despertou humores azedos: os novos equipamentos ocupam o equivalente a três vagas de estacionamento. A recente crise poderia ensinar sobre o quão urgente é superar a dependência dos carros, mas a escolha que a Prefeitura tem feito, muitas vezes sem consultar setores técnicos, é de simplesmente reposicionar as novas estações em calçadas ou retirá-las. Não é razoável optar por três carros em detrimento de 19 bicicletas, que podem ser usadas por dezenas de pessoas a cada hora. Lamentavelmente, esta é uma lição que o governo e a sociedade não tem conseguido absorver nem mesmo na pior crise dos últimos tempos, o que nos faz ter certeza de que situações como esta se repetirão.

Derrubar o fetiche pelo carro, símbolo máximo de status do século XX, pode nos levar a dias melhores, mas não apenas no que se refere a uma mobilidade mais sustentável. É preciso criar modos mais sustentáveis de negociar com o coletivo, e isso requer pôr em xeque todo este individualismo. Abrir mão de vagas de estacionamento é um caminho para, um dia, vendermos gelo por um preço justo.

Clarisse Linke

É Diretora do ITDP no Brasil e atua com políticas públicas desde 2001, com experiência no Brasil, Moçambique e Namíbia. É Mestre em Políticas Sociais pela London School of Economics. Entre 2006-2011, foi responsável pela expansão da BEN Namibia, se tornando a maior rede de bicicletas integrada a empreendimentos sociais na África sub-Saariana. Em 2010, foi premiada pela Ashoka no Desafio “Mulheres, Ferramentas e Tecnologia”. Clarisse é uma pessoa que só pensa em como transformar as cidades em lugares de felicidade.

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Um comentário em “O preço justo do gelo e os carros da Zona Sul

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