Ecocídio: o que é e por que pode ser considerado um crime internacional?

Ativistas e juristas defendem que o ecocídio seja adotado pelo Tribunal Penal Internacional para julgar graves crimes ambientais

Por Diálogo Chino | ODS 16 • Publicada em 26 de janeiro de 2024 - 08:23 • Atualizada em 30 de janeiro de 2024 - 09:13

Equipe de limpeza na praia de Cavero, Peru, uma das 21 praias afetadas pelo vazamento de óleo da Repsol em 2022. A tipificação penal do ecocídio resolveria uma lacuna jurídica para responsabilizar indivíduos sobre impactos ambientais. Foto Musuk Nolte/ Greenpeace

(Fermin Koop*) – Em 2019, o então embaixador de Vanuatu na União Europeia, John Licht, discursou no Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, na Holanda, recomendando tipificar a destruição ambiental como um crime internacional: “Essa ideia radical merece uma discussão séria diante das evidências científicas que mostram que as mudanças climáticas representam ameaças existenciais às civilizações”.

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Pequeno país insular ameaçado pelo aumento do nível do mar, Vanuatu é um dos principais apoiadores da campanha para tornar o “ecocídio” um crime internacional. A ilha argumenta que a destruição deliberada do meio ambiente deveria estar sob a jurisdição do TPI, que atualmente julga quatro crimes internacionais: genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e o crime de agressão — esse último definido como “o emprego das forças armadas por um Estado contra a soberania, integridade ou independência de outro Estado”.

O que é ecocídio?

O ecocídio compreende qualquer atividade que cause, deliberadamente, grandes danos ambientais. Em 2021, um painel de especialistas convocado pela organização Stop Ecocide International (SEI) criou uma das principais definições para esse tipo penal: “atos ilegais ou arbitrários cometidos com o conhecimento de que eles têm uma alta probabilidade de provocar danos graves, amplos ou de longo prazo ao meio ambiente”.

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O conceito de ecocídio foi empregado pela primeira vez para descrever a devastação humana e ambiental provocada pelos Estados Unidos durante a Guerra do Vietnã (1955-1975), principalmente pelo uso do agente laranja, arma química que continua contaminando o solo do Vietnã. Posteriormente, o ecocídio entrou para as discussões regulares da ONU e, em 1998, foi proposto como crime internacional contra a paz no âmbito do Estatuto de Roma, tratado que criou o TPI.

A tipificação penal de ecocídio ainda não foi incluída no Estatuto de Roma. Essa, porém, era uma das grandes missões da advogada escocesa Polly Higgins até morrer de câncer em 2019: dois anos antes, ela fundou a SEI junto à sua colega Jojo Mehta, atual CEO da organização.

Representantes do Parlamento Europeu e ativistas comemoram votação unânime que incluiu o crime de ecocídio na legislação da União Europeia em março de 2023. Foto Stop Ecocide International
Representantes do Parlamento Europeu e ativistas comemoram votação unânime que incluiu o crime de ecocídio na legislação da União Europeia em março de 2023. Foto Stop Ecocide International

Em conversa com o Diálogo Chino, Mehta diz estar confiante no progresso da iniciativa e acredita que o ecocídio seja reconhecido pelo TPI antes de 2030.

“O conceito existe há 50 anos, mas só recentemente começou a se tornar mais popular”, diz Mehta. “O Estatuto de Roma definiu os crimes mais graves que afetam a comunidade internacional. A destruição ambiental severa pertence a essa categoria. Ela é tão grave quanto os crimes contra a humanidade”.

O ecocídio deve ser considerado crime internacional?

Atualmente, o TPI reconhece a destruição ambiental no contexto de conflitos armados e tem a prerrogativa para julgar esses casos como crimes de guerra. Porém, se o tribunal reconhecesse o ecocídio como um crime por si só, seria possível abrir processos contra pessoas físicas por desmatamento, por exemplo — o tribunal responsabiliza apenas indivíduos e, portanto, pessoas no comando de empresas, organizações e governos poderiam enfrentar acusações diretas de ecocídio.

A criminalização do ecocídio também resolveria uma lacuna jurídica sobre o meio ambiente, argumentam ativistas, já que os processos geralmente se baseiam nos danos a indivíduos e propriedades públicas ou privadas. O marco legal também é bastante limitado ao julgar agressores que causam danos ambientais em escala global.

Em 2018, um relatório da ONU sobre as lacunas no direito ambiental internacional concluiu que o marco jurídico atual é fragmentado, confuso e reativo. “Ele é caracterizado pela fragmentação e pela falta de coerência e sinergia de um grande conjunto de estruturas regulatórias setoriais”, diz o relatório, afirmando que isso gera falhas na elaboração e implementação de leis ambientais.

Kate Mackintosh, pesquisadora da Universidade da Califórnia e cocriadora da definição de ecocídio da SEl, disse ao Diálogo Chino que a mudança na tipificação penal atingiria mais duramente o setor privado. “Imagine você discutir um projeto de extração de combustíveis fósseis, e a equipe jurídica dizer que há risco de ecocídio — isso tem um grande valor de dissuasão”, diz ela.

Quem apoia a adoção do conceito de ecocídio?

Em 2022, o Papa Francisco escreveu uma carta para a Associação Argentina de Professores de Direito Penal citando a necessidade de incorporar o ecocídio como um quinto crime contra a paz. O pontífice também pediu a “criação de um sistema normativo que inclua limites inegociáveis e garanta a proteção dos ecossistemas”. Em 2020, a ativista climática sueca Greta Thunberg também apoiou a campanha, doando cem mil euros (cerca de R$ 600 mil à época), parte de um prêmio que ela recebeu, para a Fundação Stop Ecocide.

A Assembleia Nacional da França aprovou, em 2021, um projeto de lei ambiental que tornou o ecocídio um delito civil. No mesmo ano, o Parlamento da Bélgica adotou uma resolução para reconhecer o crime de ecocídio em nível nacional e internacional. Em novembro passado, a União Europeia também atualizou sua legislação de crimes ambientais, punindo casos de destruição de ecossistemas com penas mais severas.

Área desmatada para cultivo de soja e gado no Gran Chaco, na província argentina de Formosa. Caso o TPI reconheça o ecocídio, seria possível julgar indivíduos por delitos de destruição ambiental, como o desmatamento. Foto Martin Katz / Greenpeace

Em agosto passado, o Chile aprovou uma lei que incorporou ao seu Código Penal um novo capítulo sobre crimes contra o meio ambiente, incluindo alguns elementos da definição de ecocídio. Em junho, no Brasil, o Partido Socialismo e Liberdade (Psol) apresentou um projeto de lei sobre ecocídio no Congresso. Já o México deu um passo semelhante com um novo projeto de lei em agosto.

“Há uma forte base de apoio ao ecocídio; há discussões ativas nos parlamentos do mundo todo”, observa Anna Maddrick, analista jurídica da SEI: “O sentimento geral é que, se houver apoio suficiente dos Estados, o Tribunal [Penal Internacional] será a favor dele. O ecocídio é o elemento que falta no Estatuto de Roma”.

Um relatório de 2016 sobre a seleção de casos do TPI destacou a inclinação do tribunal para julgar ações envolvendo a exploração ilegal de recursos naturais, grilagem de terras e danos ambientais. Isso fez com que várias ações contra o ex-presidente Jair Bolsonaro fossem apresentadas ao TPI, citando a destruição que ele empreendeu nas políticas ambientais brasileiras e as violações que ele cometeu aos direitos indígenas. Até o momento, esses casos não foram julgados.

“Se o ecocídio já tivesse sido reconhecido, parte do que aconteceu em lugares como o Brasil teria seguido um caminho diferente”, avalia Mehta.

O que falta para tornar o ecocídio crime internacional?

O movimento para criminalizar o ecocídio ganhou impulso nos últimos anos, mas ainda há uma série de obstáculos para sua inclusão no estatuto do TPI.

Inicialmente, um país deve propor uma emenda ao Estatuto de Roma. Para que essa proposta avance, ela deve ser aprovada pela maioria simples dos 124 países signatários do estatuto. Em seguida, o projeto passa por várias rodadas de negociação antes de retornar à votação. Para ser aprovada, uma emenda precisa do apoio de pelo menos dois terços de seus membros.

Se uma emenda desse tipo for aprovada, as nações signatárias ainda teriam o direito de não ratificá-la nacionalmente — possibilidade que limitaria a jurisdição do TPI para julgar esses casos. Além disso, os Estados que não fazem parte do Estatuto de Roma não seriam afetados, reduzindo ainda mais o alcance da legislação sobre ecocídio.

Embora Vanuatu tenha colocado a questão na agenda global, o país ainda não propôs oficialmente a modificação do Estatuto de Roma. Também é difícil prever se algum outro governo pode liderar essa mudança, mas Mehta argumenta que as chances estão aumentando: “Quanto mais a conversa se intensifica, mais rápido ela se expande politicamente”.

*Fermín Koop é editor do Diálogo Chino para o Cone Sul, com base em Buenos Aires

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