Bispo do Xingu: incêndios são premeditados

Dom Erwin Kräutler, bispo emérito do Xingu: “Ninguém nunca pensou que a Amazônia deve ser internacionalizada ou qualquer coisa do gênero. Aqui nunca pensamos isso, muito menos os bispos” (Foto: CNBB)

Envolvido na organização do Sínodo da Amazônia, Dom Erwin Kräutler diz que visão do governo sobre a região precisa mudar

Por Chico Alves | ODS 15 • Publicada em 13 de setembro de 2019 - 10:51 • Atualizada em 24 de setembro de 2019 - 19:58

Dom Erwin Kräutler, bispo emérito do Xingu: “Ninguém nunca pensou que a Amazônia deve ser internacionalizada ou qualquer coisa do gênero. Aqui nunca pensamos isso, muito menos os bispos” (Foto: CNBB)
Dom Erwin Kräutler, bispo emérito do Xingu: "Ninguém nunca pensou que a Amazônia deve ser internacionalizada ou qualquer coisa do gênero. Aqui nunca pensamos isso, muito menos os bispos" (Foto: CNBB)
Dom Erwin Kräutler, bispo emérito do Xingu: “Ninguém nunca pensou que a Amazônia deve ser internacionalizada ou qualquer coisa do gênero. Aqui nunca pensamos isso, muito menos os bispos” (Foto: CNBB)

Nascido austríaco e naturalizado brasileiro, o bispo Dom Erwin Kräutler vive há 54 anos na Amazônia. Mais precisamente no município de Altamira, no Pará, o maior do Brasil em extensão. A região é uma das mais atingidas pela gigantesca queimada que nos últimos dias assombrou o mundo.  Aos 80 anos, o bispo emérito do Xingu já enfrentou muitos dos criminosos que costumam agir na região em nome das madeireiras e mineradoras ilegais para destruir as matas e atacar os indígenas. Por conta disso, Dom Erwin está há 13 anos sob a vigilância de dois policiais que garantem sua segurança. Mesmo para quem está acostumado a tais adversidades, o que vê agora é assustador. “Não é que alguém tenha deixado cair uma ponta de cigarro, é algo premeditado, e posso imaginar que há muito tempo premeditado”, lamenta ele.

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O religioso faz parte do seleto grupo de 18 bispos que prepara o Sínodo da Amazônia, organizado pelo Vaticano e que começa no dia 6 de outubro, em Roma. O incêndio na floresta deverá fazer do encontro objeto de atenção da imprensa mundial. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército e atual assessor do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), criticou o evento e disse que seu “viés político” preocupa o governo. Nesta entrevista, Dom Erwin rebate a acusação, fala das consequências da queimada e critica a ideia de que para explorar economicamente a selva é preciso derrubá-la:  

As lideranças da Igreja estão sendo criminalizadas e consideradas inimigas da pátria. Quem hoje luta pela Amazônia é considerada persona non grata. Eu digo para o presidente e também para os generais: leiam a encíclica “Laudato Si”, que mostra a posição do Papa sobre a ecologia. Ele fala da casa comum, da nossa comum responsabilidade. A certa altura fala da Amazônia, que, claro, é responsabilidade dos estados nacionais. Nunca se trata de ameaçar a soberania nacional. Não sei quem inventou isso

#COLABORA – Ao comentar o Sínodo da Amazônia, o general Villas Bôas se disse preocupado pelo “viés político” e avisou que não vai admitir interferências nas questões internas do país. Como recebeu essa declaração?

Dom Erwin Kräutler – Isso é loucura. A nossa queixa é que lideranças da Igreja estão sendo criminalizadas e consideradas inimigas da pátria. Quem hoje luta pela Amazônia é considerada persona non grata. Eu digo para o presidente e também para os generais: leiam a encíclica “Laudato Si”, que mostra a posição do Papa sobre a ecologia. Ele fala da casa comum, da nossa comum responsabilidade. A certa altura fala da Amazônia, que, claro, é responsabilidade dos estados nacionais. Nunca se trata de ameaçar a soberania nacional. Não sei quem inventou isso.  Sugiro que leiam também o instrumento de trabalho, que se baseia nas respostas de cerca de 80 mil pessoas do povo sobre o que estão pensando e querendo que a Igreja faça. Baseado nisso, se elaborou esse texto. O Papa escolheu 18 pessoas para formar o conselho pré-sinodal e eu sou membro desse grupo e estive em Roma várias vezes. Eles têm que ler esse texto. Não é um documento clandestino, o presidente pode ler, os generais podem ler, todo mundo pode ler. Aí poderão dizer que sabem o que os bispos estão querendo. E vão descobrir que não tem nada, nada disso. O texto é um instrumento para termos a base temática, um ponto de partida e um guia para nossas discussões e debates.

Como vê as declarações de integrantes do governo de que o alarme dentro e fora do Brasil por causa das queimadas é causado por quem é inimigo da soberania nacional?  

Dom Erwin – Ninguém nunca pensou  que a Amazônia deve ser internacionalizada ou qualquer coisa do gênero. Aqui nunca pensamos isso, muito menos os bispos.  Claro que essa região é território brasileiro, sempre será, isso não se discute. Porém, é do interesse da humanidade por sua função reguladora do clima planetário, isso não podemos negar. Até mesmo o Sul e o Sudeste do país não se deram conta de que eles sobrevivem naquela área em virtude da floresta amazônica, que ser for arrasada vai causar desertificação. Isso não é um fantasma ou argumento alarmista, mas é provado cientificamente, não se discute mais isso. Essa fumaça negra que  cobriu São Paulo não saiu de uma fábrica, mas desceu aqui da região para lá.

Um hectare ou dois queimados não é uma catástrofe, os bichos podem ir embora, isso se recompõe. Já quilômetros e mais quilômetros vira catástrofe, acaba com a flora, acaba com a fauna, a fumaça intoxica, as crianças ficam com problema respiratório, quem mora por perto nem sabe como se defender. O ar poluído é terrível. É como se fosse um estado inteiro queimando.

E quanto à acusação de que as ONGs causaram o fogo?

Dom Erwin – Como se pode criminalizar as ONGs? A gente tem que dizer “obrigado”. Fico preocupado quando vejo alguém falando isso. Se você vê o Instituto Socioambiental, são brasileiros. O Greenpeace no Brasil deve ter algum estrangeiro, mas eu nunca vi. São brasileiros interessados no próprio país. Há muitas besteiras que se falam em alto e bom som, como a de que a Europa já arrasou tudo. Isso é desconhecimento total. Na Alemanha, 30% é floresta, na Suécia é quase 60%, na Áustria é quase metade floresta. Dizer que arrasaram tudo é fake news. 

Dom Erwin Kräutler, 80 anos e 54 de Amazônia: "- Como se pode criminalizar as ONGs? A gente tem que dizer "obrigado" (Foto: Maurício Santana/CNBB)
Dom Erwin Kräutler, 80 anos e 54 de Amazônia: “- Como se pode criminalizar as ONGs? A gente tem que dizer “obrigado” (Foto: Maurício Santana/CNBB)

A Amazônia é mais da metade do Brasil, mas é vista como província madeireira, província mineral, última fronteira agrícola, província energética. Olham a floresta sempre numa perspectiva de “vamos buscar”, “vamos tirar”, “vamos enriquecer”, “só podemos aumentar o PIB nacional se a gente derrubar”. Essa é a filosofia que está por trás disso. E é perigosa.

Como o sr.  pode dar a dimensão do estrago causado pelas queimadas?

Dom Erwin – Altamira é o maior município do Brasil, o que tem a maior extensão, isso já dá a grandeza dessas queimadas. O que mais nos preocupa desde o início é aquela ideia que alguns tiveram de fazer o Dia do Fogo. É premeditado, provocado, parece o Dia D para a Amazônia. Nesse sentido, acho que  deveria ser levada mais a sério toda essa situação. Como alguém pode chegar e dizer: “vamos nos unir para botar fogo na floresta”? Isso é um absurdo. Não é que alguém tenha deixado cair uma ponta de cigarro, é algo premeditado, e posso imaginar que há muito tempo premeditado, no contexto desse governo que diz querer “abrir” a Amazônia, desde a campanha o presidente fala isso. Ele acha que “abrir a Amazônia” é, derrubar a floresta tropical para  conseguir pasto para o rebanho bovino ou então áreas contínuas para a plantação de soja, cana de açúcar e outras coisas mais. Tudo isso é consequência de uma visão de Amazônia que não é salutar. 

A segunda coisa é a visão da região como província. A Amazônia é mais da metade do Brasil, mas é vista como província madeireira, província mineral, última fronteira agrícola, província energética. Olham a floresta sempre numa perspectiva de “vamos buscar”, “vamos tirar”, “vamos enriquecer”, “só podemos aumentar o PIB nacional se a gente derrubar”. Essa é a filosofia que está por trás disso. E é perigosa. 

Qual a diferença da queimada que acontece agora para as que o sr. viu antes?

Dom Erwin – Há muito tempo são feitas queimadas. As primeiras nos anos 60 e 70, eram mais para conseguir uma área para plantar. O lote rural da Transamazônica era de 100 hectares, podendo se utilizar para essas  finalidades 20%. O restante tinha que ficar em pé. Isso nunca funcionou. Tinha uma reserva florestal de 20 km dos dois lados da estrada, que foi derrubada e invadida. Só que essas pequenas queimadas de então a própria natureza se encarregou de recompor. Mas assim, em grande escala, quilômetros e mais quilômetros, é um grande absurdo. Um hectare ou dois queimados não é uma catástrofe, os bichos podem ir embora, isso se recompõe. Já quilômetros e mais quilômetros vira catástrofe, acaba com a flora, acaba com a fauna, a fumaça intoxica, as crianças ficam com problema respiratório, quem mora por perto nem sabe como se defender. O ar poluído é terrível. É como se fosse um estado inteiro queimando. Você não pode imaginar, até onde se enxerga há fogo e fumaça no céu. As perspectivas não são boas. Mas não adianta apenas dar o remédio, é preciso evitar a doença, é preciso ação permanente, mudar de visão. Amazônia é uma dádiva divina que temos que ajudar e cuidar.

O sr. considera que as providências tomadas pelo governo são suficientes?

Dom Erwin – Mandaram o Exército e agora vamos salvar o que é possível. Mas é preciso mudar de visão. A Amazônia não é para isso.Vamos apagar o fogo, punir os responsáveis, mas você já sabe como são as punições…

Chico Alves

Chico Alves tem 30 anos de profissão: por duas vezes ganhou o Prêmio Embratel de Jornalismo e foi menção honrosa no Prêmio Vladimir Herzog. Na maior parte da carreira atuou como editor-assistente na revista ISTOÉ, mais precisamente por 19 anos. Foi editor-chefe do jornal O DIA por mais de três anos. É co-autor do livro 'Paraíso Armado', sobre a crise na Segurança Pública no Rio, em parceria com Aziz Filho.

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2 comentários “Bispo do Xingu: incêndios são premeditados

  1. Luiz Acácio de Sene disse:

    Alguns pontos importantes para evitar que continuem devastando as nossas florestas, a ressaltar: a fiscalização firme e contínua com severa punição, estendida a todos os envolvidos, atingindo desde o menor até os grandes que podem livrar-se na justiça, manter bem informada a população local. Tornar crime inafiançável para quem praticar novas derrubadas ou queimadas, independente de qual seja o motivo fora da lei, exceto as áreas de lavouras indígenas, as quais monitoradas para evitar incêndios indesejados em partes da floresta. As áreas destinadas á mineração devem resguardar o meio ambiente, com meios para evitar poluição dos rios e de nascentes, com base sólida em estudos e aprovação de especialistas para a construção e exploração, respeito ás normas ambientais para manter a segurança das pessoas e das áreas envolvidas. O governo tem que ser o primeiro a dar o exemplo, deve empenhar-se e procurar apoio de toda a população pela importância que tem o eco-sistema para todos nós.

  2. Luiz Acácio de Sene disse:

    Alguns pontos importantes para evitar que continuem devastando as nossas florestas, a ressaltar: a fiscalização firme e contínua com severa punição, estendida a todos os envolvidos, atingindo desde o menor até os grandes que podem livrar-se na justiça, manter bem informada a população local. Tornar crime inafiançável para quem praticar novas derrubadas ou queimadas, independente de qual seja o motivo fora da lei, exceto as áreas de lavouras indígenas, as quais devem ser monitoradas para evitar incêndios indesejados em partes da floresta. As áreas destinadas á mineração devem resguardar o meio ambiente, e com meios para evitar a poluição de rios e de nascentes, com base sólida em estudos e aprovação de especialistas para a construção e exploração, respeito ás normas ambientais para manter a segurança das pessoas e das áreas envolvidas. O governo tem que ser o primeiro a dar o exemplo, deve empenhar-se e procurar apoio de toda a população pela importância que tem o eco-sistema para todos nós. Cada um que faça a sua parte.

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