Como Bolsonaro incendiou a Amazônia

Imagem aérea dos incêndios na região de Boca do Acre, na Amazônia, capturada no último fim de semana. Foto Lula Sampaio/AFP

Relembre dez ações e discursos que fizeram do presidente o autor intelectual deste crime ambiental

Por Agostinho Vieira | ODS 15 • Publicada em 29 de agosto de 2019 - 09:57 • Atualizada em 23 de maio de 2020 - 12:16

Imagem aérea dos incêndios na região de Boca do Acre, na Amazônia, capturada no último fim de semana. Foto Lula Sampaio/AFP

Assim como o escorpião na lenda do sapo e o rio, faz parte da natureza do presidente Jair Bolsonaro ser incendiário. Talvez agora, com a Amazônia em chamas, ele tenha ido longe demais, mas nada disso é novidade. No entanto, ainda há quem enxergue traços de autenticidade ou estratégia em frases como “o Brasil é uma virgem que todo tarado quer”, “a questão ambiental só é importante para os veganos” e “competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou os seus índios”. Muitos chegaram a acreditar que na presidência seria diferente, sonhavam com um estadista equilibrado que, simplesmente, não compareceu ao trabalho. Para ilustrar o drama político e diplomático no qual fomos envolvidos, o #Colabora fez uma lista com dez ações ou pistas que podem levar qualquer cidadão um pouco mais atento ao mentor intelectual deste terrível crime ambiental.

Não vou mais admitir o Ibama sair multando a torto e a direito por aí, bem como o ICMbio. Essa festa vai acabar

1 – Fim do Ministério do Meio Ambiente – O primeiro dos indícios pode ser encontrado logo no início do mandato. O recém-eleito Jair Bolsonaro prometeu acabar com a pasta do Meio Ambiente. Ela seria fundida com a Agricultura e teria um representante do agronegócio no comando. A promessa não foi cumprida, mas a área ambiental foi esvaziada, perdeu a Agência Nacional de Águas para o Desenvolvimento Regional e o Serviço Florestal Brasileiro para o Ministério da Agricultura. Afinal de contas, como diz o presidente, “a questão ambiental só é importante para veganos que comem só vegetais”.

2 – A indústria das multas – A cruzada contra a tal “indústria das multas” sempre foi uma obsessão de Bolsonaro. Nessa batalha, vale até inventar números, como os R$ 15 bilhões anuais em multas que seriam aplicadas pelo Ibama e ICMBio. Os dados, fictícios, são 4 ou 5 vezes maiores do que a realidade: “Não vou mais admitir o Ibama sair multando a torto e a direito por aí, bem como o ICMbio. Essa festa vai acabar”, afirmou o presidente. Dessa vez, a promessa foi cumprida. De janeiro a maio, o número de multas aplicadas pelo Ibama por desmatamento ilegal foi o mais baixo em 11 anos. A queda foi de 34%. Em diferentes situações, a fiscalização foi desautorizada pelo governo. A ponto de o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, criticar publicamente os fiscais que destruíram equipamentos usados por criminosos para retirar madeira ilegal de uma Unidade de Conservação no Pará. Vale lembrar que o procedimento é permitido por lei. Outro item que favorece e incentiva o infrator é o decreto que criou os chamados “núcleos de conciliação”, que analisam as multas ambientais aplicadas por fiscais em todo o Brasil. Um atalho para a impunidade na floresta.

Nós tiramos dinheiro de ONGs, repasses de fora, 40% ia para ONGs, não tem mais. De modo que esse pessoal está sentindo a falta de dinheiro. Pode estar havendo, não estou afirmando, a ação criminosa desses ‘ongueiros’ para chamar a atenção contra minha pessoa contra o governo do Brasil

3 – Ataque às Unidades de Conservação – Assim que assumiu, o ministro Ricardo Salles anunciou a revisão de todas as Unidades de Conservação do país, desde o tradicional Parque Nacional de Itatiaia, que tem quase cem anos, até o Parque do Boqueirão da Onça, criado na Bahia em 2018. Ao todo são 334. Segundo o ministro, as unidades haviam sido feitas “sem critério técnico” e deveriam ter os traçados revistos ou mesmo serem extintas. Na mesma linha, um projeto de lei apresentado pelo filho do presidente, o senador Flávio Bolsonaro, defende o fim das Reservas Legais, argumentando que elas contrariam o direito constitucional à propriedade. As Reservas são áreas protegidas, previstas no Código Florestal, que não podem ser desmatadas em propriedades rurais. Segundo Bolsonaro, o filho, elas são fruto de uma “ecologia radical, fundamentalista e irracional” que prejudicaria o desenvolvimento do país.  Se aprovado, esse projeto faria com que a área desmatada no país chegasse a 167 milhões de hectares, superior ao estado do Amazonas.

Protestantes no mundo todo fazem apelos em favor do fim das chamas na Amazônia. Foto Kenzo Tribouillard/AFP
Protestantes no mundo todo fazem apelos em favor do fim das chamas na Amazônia. Foto Kenzo Tribouillard/AFP

4 – Esvaziamento do Ibama e do ICMBio – Em abril deste ano, numa feira do agronegócio em Ribeirão Preto, Bolsonaro anunciou que ia fazer um “limpa no Ibama e no ICMBio”. E fez. Dos nove escritórios do Ibama na Amazônia, oito estão acéfalos há oito meses. Esta e outras ações do presidente para esvaziar a fiscalização ambiental no país provocaram um encontro inédito de sete ex-ministros do Meio Ambiente. “Nós temos nossas diferenças políticas e ideológicas, mas nenhum de nós ousou desmontar o ICMBio, o Ibama, propor a extinção de parques ou de terras indígenas já demarcadas e homologadas, ou até mesmo de voltar atrás nos avanços das gestões anteriores. Sempre reconhecemos os avanços das gestões anteriores e fomos adiante”, disse Sarney Filho em coletiva de imprensa após a reunião. Foi do presidente também a decisão de afastar o fiscal do Ibama José Augusto Morelli. Morelli foi quem flagrou o então deputado federal Jair Bolsonaro em um barco com varas de pescar e recipientes para peixes em uma área onde a pesca era proibida: a Estação Ecológica de Tamoios. Hoje, o Ibama tem 2 mil cargos vagos e o ICMBio outros 1.200.

Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios

5 – Desmoralização das lutas indígenas – Essa é outra batalha antiga do presidente.  Bolsonaro garantiu que, sob a sua liderança, não haveria nem mais um centímetro de terra indígena demarcada.  Mas, antes, ele já havia ido bem mais longe: “Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios”, afirmou Bolsonaro, em pronunciamento na Câmara dos Deputados em 1998. Esta semana ele voltou à carga. Em uma reunião com os governadores da Amazônia, que deveria tratar de soluções para as queimadas, o presidente priorizou as reservas indígenas: “Muitas reservas têm o aspecto estratégico. Alguém programou isso. O índio não faz lobby, não fala a nossa língua e consegue hoje em dia ter 14% do território nacional. Uma das intenções é nos inviabilizar”, afirmou, mais uma vez sem entrar em detalhes e nem apresentar provas.

Indígena protesta no Rio de Janeiro contra a perseguição na Amazônia. Foto Mauro Pimentel/AFP
Indígena protesta no Rio de Janeiro contra a perseguição na Amazônia. Foto Mauro Pimentel/AFP

6 – Recusa em sediar a COP 25 – A crise climática planetária, definitivamente, não está entre as prioridades do governo. Mesmo que os impactos sobre o Brasil sejam graves, como preveem 9 em cada 10 cientistas. O Governo cortou 95% das verbas destinadas aos órgãos que acompanhavam o tema e abriu mão de sediar a COP-25, maior encontro climático do mundo, que acabou sendo transferido para o Chile, em novembro. O ministro do Meio Ambiente também chegou a anunciar o cancelamento da Semana do Clima da América Latina e Caribe (Climate Week), em Salvador. O argumento? Seria apenas uma “oportunidade” para se “fazer turismo em Salvador” e “comer acarajé”.  O prefeito de Salvador, ACM Netto (DEM), não gostou da interferência e bancou a realização do evento.

7 – Aliança com a ala mais atrasada do Agronegócio – O discurso do presidente Bolsonaro sobre o Meio Ambiente é simplista e equivocado. Quem diz isso não é um ambientalista radical, mas dois ilustres representantes do agronegócio: Katia Abreu e Blairo Maggi. Ambos temem que a retórica do presidente faça o Brasil perder mercado: “Não tem essa de que o mundo precisa do Brasil. Somos apenas um “player” e, pior: substituível. O mundo depende de nós agora, mas, daqui a pouco isso se inverte e ficamos chupando o dedo”, disse Maggi, em entrevista ao Valor. “Os agricultores que estão alegres hoje vão chorar amanhã”, completou Katia Abreu, ex-presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Para ela, a retórica “antiambiental” de Bolsonaro, na verdade, é “antimercado” e representa o atraso.

Com toda a devastação de que vocês nos acusam de estar fazendo e ter feito no passado, a Amazônia já teria se extinguido

8 – Críticas ao trabalho do INPE – “Com toda a devastação de que vocês nos acusam de estar fazendo e ter feito no passado, a Amazônia já teria se extinguido”, disse Bolsonaro em julho, durante um café da manhã com jornalistas estrangeiros. Repetindo a velha prática de culpar o termômetro pela febre do paciente. As críticas do presidente provocaram a queda do diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), Ricardo Galvão. Um mês depois, dados de satélite coletados pelo INPE, órgão respeitado internacionalmente, confirmaram o crescimento das queimadas na região de Novo Progresso e Altamira, no Pará, onde produtores rurais organizaram o “Dia do Fogo”. O governo foi avisado com três dias de antecedência por fiscais do Ibama, mas nada fez para evitar. A Guarda Nacional, ligada ao Ministério da Justiça, e a PM do Pará disseram que não tinham como ajudar.

Jair Bolsonaro: “Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios”. Foto Mateus Bonomi/AGIF
Jair Bolsonaro: “Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios”. Foto Mateus Bonomi/AGIF

9 – Bombardeio ao Fundo Amazônia – Constrangimento, foi o que o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, provocou ao convocar uma entrevista coletiva para criticar o modelo de gestão do Fundo Amazônia, que existe há mais de 10 anos, já beneficiou milhares de pessoas e é fundamental para a preservação da Amazônia. O Fundo é gerenciado pelo BNDES e cerca de 95% dos seus recursos, que somam mais de R$ 3 bilhões, vêm da Noruega e da Alemanha. Os dois países não concordaram com as mudanças propostas pelo governo, disseram que o Brasil não vinha se esforçando para conter a subida do desmatamento, o crescimento das queimadas e decidiram interromper o fornecimento de recursos. Bolsonaro tem repetido que o governo está sem dinheiro e que os ministros fazem milagres, no entanto, recusou a ajuda dos países do G7 e fez tudo para inviabilizar o Fundo Amazônia.

10 – Acusações sem provas contra as ONGs – Há dez dias, ao ser questionado sobre o crescimento de 70% no percentual de queimadas na Amazônia, o presidente Jair Bolsonaro respondeu: “O crime existe e nós temos que fazer o possível para que não aumente, mas nós tiramos dinheiro de ONGs, repasses de fora, 40% ia para ONGs, não tem mais. De modo que esse pessoal está sentindo a falta de dinheiro. Pode estar havendo, não estou afirmando, a ação criminosa desses ‘ongueiros’ para chamar a atenção contra minha pessoa contra o governo do Brasil”. Prova? Nenhuma.

Na última sexta-feira, o presidente Jair Bolsonaro assinou uma autorização preventiva para Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que permitiu o envio das Forças Armadas para ajudar no combate aos incêndios na Amazônia. Ontem, ele decidiu proibir as queimadas pelos próximos 60 dias. Duas ações tardias, porém importantes. Mas nada vai mudar se ele não alterar o discurso. Bolsonaro continua com a tocha acesa na mão, pronto para incendiar o Brasil.

(*) A lenda do Escorpião e o Sapo – Para quem não conhece, aí vai a história. Qualquer semelhança é mera coincidência: “Era uma vez um escorpião que queria atravessar para a outra margem do rio. Então ele pediu ao sapo que o levasse até lá. O sapo, desconfiado, disse: Se eu te levar até lá corro o risco de ser picado. O escorpião, que tinha uma boa lábia, respondeu: Não temas “amigo” sapo. Se eu te picasse nós dois morreríamos afogados. Podes confiar em mim. O sapo pensou, pensou e achou que aquilo tinha alguma lógica. Então resolveu ajudar o escorpião. Porém, no meio da travessia, o escorpião picou o sapo que, agonizante e incrédulo, disse: você disse que não ia me picar. Agora ambos vamos morrer afogados! O escorpião ainda teve tempo de responder: desculpa seu sapo, mas é da minha natureza”.

Agostinho Vieira

Formado em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Foi repórter de Cidade e de Política, editor, editor-executivo e diretor executivo do jornal O Globo. Também foi diretor do Sistema Globo de Rádio e da Rádio CBN. Ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo, em 1994, e dois prêmios da Society of Newspaper Design, em 1998 e 1999. Tem pós-graduação em Gestão de Negócios pelo Insead (Instituto Europeu de Administração de Negócios) e em Gestão Ambiental pela Coppe/UFRJ. É um dos criadores do Projeto #Colabora.

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2 comentários “Como Bolsonaro incendiou a Amazônia

  1. Ana Carolina Calomino Navarro disse:

    Boa noite, Agostinho!
    Me chamo Ana Carolina e sou uma das alunas que participou do bate-papo incrível no dia 28 de agosto.
    Deixo essa mensagem para dizer: QUE BOM QUE VOCÊ PUBLICOU A MATÉRIA! Ficou incrível, bem acessível e didática! Muito obrigada por produzir esse conteúdo que, para mim, vem a cada dia se tornando um referencial para mim daquilo que quero ser um dia.
    Mais uma vez, parabéns e obrigada!

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