O fogo no palácio da Independência

O fogo continuou por horas no Museu Nacional,na Quinta da Boa Vista, com um prejuízo ainda incalculado. Foto Francisco Proner Ramos/AGIF

Paço de São Cristóvão: palco da história antes de virar museu

Por Oscar Valporto | ODS 11ODS 4 • Publicada em 3 de setembro de 2018 - 14:31 • Atualizada em 5 de setembro de 2022 - 20:16

O fogo continuou por horas no Museu Nacional,na Quinta da Boa Vista, com um prejuízo ainda incalculado. Foto Francisco Proner Ramos/AGIF

Setembro chegou azul e este cronista da cidade pretendia falar de outro Paço e de sua praça no centro da cidade, onde tomavam-se as decisões que fizeram o Brasil independente de Portugal, quase 200 anos atrás. Mas a tragédia do incêndio no Paço da Imperial Quinta de São Cristóvão, residência da família real brasileira durante toda a monarquia, obriga a mudança da nossa prosaNão vou falar do fogo, nem dos maus tratos sistemáticos do governo ao patrimônio histórico nem da catástrofe científica da destruição do Museu Nacional: são 200 anos de coleções de arqueologia, geologia, botânica, paleontologia, zoologia, que não tenho capacidade de mensurar sua perda.

No dia 2 de setembro de 1822, exatamente 196 anos antes do incêndio, a princesa, regente em exercício, chamou o Conselho de Estado no Paço Real e comandou, ao lado do ministro José Bonifácio, homem de confiança do casal, a reunião que decidiu pela separação definitiva entre Brasil e Portugal, assinando e a declaração de independência.

Fico aqui com minha viagem pela história do Rio de Janeiro e, no caso do palácio destruído, da construção da própria nação brasileira. O Paço de São Cristóvão, seu primeiro nome, foi erguido em 1803 pelo traficante de escravos português Elias Antonio Lopes, dono de toda a Quinta da Boa Vista, que doou a propriedade a Dom João VI, que, para lá se mudou logo após as primeiras reformas. Durante todo seu tempo como Palácio Real do Reino de Portugal, Brasil e Algarve, a casa e seu jardim – a quinta – estiveram em obras. A maior reforma começou em 1816, quando foi acertado o casamento de Dom Pedro, herdeiro do trono, com a futura imperatriz Leopoldina, sacramentado no ano seguinte: em novembro de 1817, a filha do imperador Francisco I, da Áustria, chegava ao Brasil para morar no palácio.

A futura imperatriz Leopoldina mandava muito: estava nomeada regente por Dom Pedro naquele começo de setembro de 1822 quando ele foi a São Paulo acalmar paulistas quando já havia feito antes com mineiros. Já tinha dado luz a seus quatro primeiros filhos – um nasceu morto – no palácio da Quinta da Boa Vista. A primogênita Maria, futura Rainha de Portugal, brincava nos jardins. A culta imperatriz havia sido entusiasta da fundação, um ano depois de sua chegada, pelo sogro Dom João VI, do Museu Nacional, que ficava, então, no Campo de Santana. A missão científica austríaca que veio com ela ao Brasil ajudou na montagem do museu.

As paredes do casarão erguido pelo traficante de escravos Elias Antonio Lopes continuaram de pé. Só não se sabe até quando. Foto Thiago Ribeiro/AGIF
As paredes do casarão erguido pelo traficante de escravos Elias Antonio Lopes continuaram de pé. Só não se sabe até quando. Foto Thiago Ribeiro/AGIF

No dia 2 de setembro de 1822, exatamente 196 anos antes do incêndio, a princesa, regente em exercício, chamou o Conselho de Estado no Paço Real e comandou, ao lado do ministro José Bonifácio, homem de confiança do casal, a reunião que decidiu pela separação definitiva entre Brasil e Portugal, assinando e a declaração de independência. Creio que não há registro, mas deve ter sido ali, em mesas do palácio, que ela e Bonifácio escreveram as cartas que Dom Pedro receberia cinco dias depois, às margens do Ipiranga, relatando o ultimato das Cortes Portuguesas para que voltasse a Lisboa e para que o Brasil fosse submetido às vontades de Portugal. O resto – o teor das cartas, inclusive – é história: Independência ou Morte.

Dom Pedro virou Pedro I, imperador do Brasil, a Imperatriz Leopoldina morreu no agora Palácio Imperial em 1826, que aliás continuou passando por uma reforma atrás da outra até 1831, quando o imperador renunciou em favor do filho, então com seis anos. O imperador Pedro II, que também brincou naqueles jardins, foi o responsável pelas grandes reformas que deram a Quinta da Boa Vista a face que tem hoje, sob o comando do arquiteto francês Auguste Glaziou – responsável também pelo Passeio Público e o Campo de Santana. Após o casamento de Pedro II com a imperatriz Teresa Cristina, o próprio Palácio Imperial passou por reformas.

A chegada da República não fez bem ao antigo Paço de São Cristóvão como a quase nada no bairro. Boa parte do que aqui sobrara após a partida de Dom Pedro II e da família real foi destruído e, felizmente, antes que algo pior acontecesse, em 1892, o Museu Nacional e seu acervo foram transferidos para o Paço da Quinta da Boa Vista – o museu, desde 1946, passou a ser administrado pela Universidade do Brasil, hoje UFRJ.  Das imensas riquezas destruídas pelo incêndio, a memória da monarquia talvez tenha sido a menos afetada: há muita coisa guardada no Museu Imperial de Petrópolis e no Museu Histórico Nacional, no Rio.

Enquanto escrevo, já nas primeiras horas do dia 3, quando o mensageiro real cavalgava 196 anos atrás com as cartas de Leopoldina e José Bonifácio para Dom Pedro, as informações dão conta que quase todo o acervo do Museu Nacional – o mais antigo fóssil humano encontrado no Brasil, a coleção egípcia iniciada por Dom Pedro, os esqueletos de dinossauros encontrados no país, artesanatos e artefatos indígenas – foi destruído. Mas as paredes e a estrutura do prédio estão firmes e – sonhar não custa nada – podem servir de alicerces para alguma nova independência para tratarmos melhor a ciência, a cultura, a história e patrimônio do Brasil.  #RioéRua

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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