Sustentável é ficar vivo

Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), aprovados em setembro pela ONU, preveem a diminuição significativa das mortes violentas

Por Flávia Oliveira | ArtigoODS 1 • Publicada em 3 de novembro de 2015 - 10:57 • Atualizada em 4 de novembro de 2015 - 11:34

Jovem brinca com um arma de brinquedo no Afeganistão. Acabar com a banalização da violência é dos grandes desafios dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS)
Jovem brinca com um arma de brinquedo no Afeganistão. Acabar com a banalização da violência é dos grandes desafios dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS)
Jovem brinca com um arma de brinquedo no Afeganistão. Acabar com a banalização da violência é dos grandes desafios dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS)

No robusto (e bem-vindo) elenco de compromissos que integram os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), salta aos olhos a intenção de reduzir, mundo afora, o número de mortes violentas. Está lá no Item 16 do rol de propostas aprovadas na Cúpula das Nações Unidas, em fins de setembro, a meta de diminuir “significativamente todas as formas de violência e as taxas de mortalidade”. Em linguagem não diplomática, trata-se de derrubar o total de assassinatos, agenda para lá de necessária em países da África e da América Latina – em particular, no Brasil.

Foram três anos de negociações para os países-membros da ONU chegarem a um consenso sobre os 17 objetivos e 169 metas. Incluir o trecho relacionado a segurança, justiça e democracia não foi tarefa simples. Houve resistência de inúmeros países (Brasil, entre eles), sob a alegação de que violência não se relaciona com desenvolvimento. Como se fosse possível considerar avançada uma sociedade em escalada homicida. No caso brasileiro, só em 2014, foram 58.497 assassinatos, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública; em 18 estados as ocorrências aumentaram em relação ao ano anterior.Havia a percepção de que tratar violência como tema de desenvolvimento seria uma espécie de criminalização da pobreza. É um argumento pobre. Os países do Sul, especialmente da América Latina, nos últimos anos, tiveram um modelo de desenvolvimento pelo consumo. Serviços públicos e direitos ficaram de fora. Criamos consumidores, não cidadãos. Se quisermos desenvolvimento realmente sustentável, o próximo passo é ampliação dos direitos da democracia, da participação e, claro, da segurança”, diz Pedro Abramovay, diretor para América Latina e Caribe da Open Society Foundations, organização fundada nos anos 1970 pelo megainvestidor George Soros, com programas destinados a participação democrática, educação e direitos humanos.

Nas Metas do Milênio, pacto firmado entre 191 países em 2000 e que chega ao fim este ano, foram oito os objetivos. Quase todos eram dedicados ao combate à pobreza, à construção da igualdade de gênero e à evolução de indicadores de saúde e educação. Era comum esse tipo de acordo atrelar a redução da mortalidade a investimentos em saneamento básico, vacinação, nutrição e tratamento de doenças.  Assim, as perdas populacionais, especialmente na infância, eram resolvidas via revoluções sanitárias e medicina.

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É importante a ONU e seus membros assumirem que mortes violentas são tão evitáveis quanto as naturais.

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Hoje, a produção acadêmica na economia já associa o desenvolvimento de longo prazo ao aumento da longevidade e à queda geral da mortalidade. Rodrigo Soares, professor da EAESP/FGV, estudou o tema. Em síntese, se há promessa de vida longa, as famílias tendem a investir mais na formação dos filhos. Crianças e jovens educados são sinônimos de capital humano de alta qualidade. Daí para o desenvolvimento sustentável é um pulo.

“A redução de homicídios não mobiliza nações desenvolvidas, porque lá as taxas são baixas, não preocupam. Mas é importante a ONU e seus membros assumirem que mortes violentas são tão evitáveis quanto as naturais. Surpresa foi o assunto não ter entrado antes nos objetivos de desenvolvimento”, diz Daniel Cerqueira, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

O economista está há tempos envolvido com os ODS. Com Robert Muggah (Instituto Igarapé), Maria Fernanda Tourinho Peres (USP) e Renato Sérgio de Lima (FBSP e FGV), assinou artigo no Anuário de Segurança Pública 2014 defendendo a meta de diminuição dos assassinatos na chamada Agenda Pós-2015 da ONU. No texto, os pesquisadores propõem que o Brasil adote como medida a queda média da taxa de homicídios nos estados que conseguiram reduzi-la.

O país, completa Cerqueira, ainda será auxiliado pelas mudanças demográficas. A partir de 2023, o número de jovens na população brasileira, hoje no pico histórico, começará a cair. Como a faixa etária é a mais atingida pelos óbitos violentos, por efeito estatístico, o índice de homicídios diminuirá. Haveria, portanto, incentivos tanto do ponto de vista de experiências estaduais bem sucedidas quanto de tendências populacionais para reagir aos assassinatos em escala.

A referência à redução dos homicídios nos ODS poderá ser a pressão que faltava para governo e sociedade firmarem o pacto “Não matarás”, quinto dos mandamentos bíblicos. No passado, as Metas do Milênio entraram na agenda política e foram cumpridas. A epidemia de assassinatos, até aqui, mobilizou poucos. É tida como agenda maldita, da qual governantes preferem fugir. Imposta pela ONU, a diminuição das mortes violentas, no mínimo, criará constrangimento para as autoridades.

O governo federal trabalha há um ano num Pacto Nacional pela Redução dos Homicídios. O projeto vai começar pelo Nordeste, região que concentra as maiores taxas de assassinatos do país. No Brasil, o índice médio é de 28,8 por cem mil habitantes; em Alagoas, chega a 66,5; no Ceará, a 50,8. É tragédia não apenas humana, mas econômica. A cada ano, quase 60 mil brasileiros – homens jovens, sobretudo – morrem violentamente e deixam de integrar o ciclo produtivo do conhecimento, do trabalho e, vá lá, do consumo. Sustentável seria se ficassem vivos.

Flávia Oliveira

Flávia Oliveira é jornalista. Especializou-se na cobertura de economia e indicadores sociais. É colunista do jornal O Globo e comentarista no canal GloboNews. É membro do Conselho da Cidade do Rio de Janeiro.

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