Nadando contra a maré

Um dos muitos tesouros descobertos por Ricardo Gomes na Baía de Guanabara. Foto Divulgação

Cinegrafista registra os tesouros submersos na Baía de Guanabara e critica a relação do carioca com o mar

Por Emanuel Alencar | ODS 14 • Publicada em 17 de janeiro de 2018 - 08:51 • Atualizada em 17 de janeiro de 2018 - 18:20

Um dos muitos tesouros descobertos por Ricardo Gomes na Baía de Guanabara. Foto Divulgação
Um dos muitos tesouros descobertos por Ricardo Gomes na Baía de Guanabara. Foto Divulgação
Um dos muitos tesouros descobertos por Ricardo Gomes na Baía de Guanabara. Foto Divulgação

Ricardo Gomes estaciona o carro próximo à mureta da Urca, na Zona Sul do Rio, mira as águas da Guanabara, e sorri:

“Olha, hoje está limpo! Se eu estivesse com equipamento, mergulharia”.

Ele está em casa: conhece aquele ambiente como poucos cariocas. Em um ano e meio, fez mais de 40 expedições subaquáticas para registar tesouros submersos que muita gente julga não existir. Mas a baía revelada por Ricardo não é aquela tão castigada, tão sofrida, tão podre e poluída comumente mostrada mundo afora. Ao contrário, é um estuário com robalos, cavalos-marinhos, raias, lulas, e até corais de um tipo parecido com os que existem na Amazônia. O impressionante material virou um documentário “Baía Urbana”, aclamado no lançamento, na Conferência sobre Oceanos na ONU, em Nova Iorque, em junho de 2017.

Poderia ficar filmando a baía a minha vida inteira, que teria história para contar. Há vida e exuberância. Mas a relação do carioca com o mar termina na faixa de areia. A cidade tem muita tradição de praia, mas não conhece o seu mar

“Eu via as reportagens falando apenas dos aspectos negativos, mas sempre soube que a Baía não estava morta. Me surpreendeu demais a quantidade de raias. Fui na Praça Quinze, um lugar bem sujo, e encontrei espécies incríveis de raias-borboleta. E mais ainda, me surpreenderam os corais. Eu descobri um grupo da subclasse dos octocorais (ou corais moles, que apresentam oito tentáculos em seus pólipos), semelhantes aos que foram descobertos na foz do Rio Amazonas. Só não vou falar o local exato, por enquanto. Vem um novo filme só sobre elas”, planeja.

Ricardo e o inseparável equipamento que usa na aventuras pelo fundo do mar. Foto Acervo Pessoal
Ricardo e o inseparável equipamento que usa na aventuras pelo fundo do mar. Foto Acervo Pessoal

O trabalho que resultou no filme, de 73 minutos, foi bastante solitário. Volta e meia Ricardo se aventurava em mergulhos noturnos, partindo de Urca, Flamengo, Botafogo. O foco de sua expedição foram as regiões mais voltadas ao mar aberto, após a Ponte Rio-Niterói – o fundo da Guanabara oferecia condições negativas ao mergulho, pela turbidez da água. Avisava à mulher que se demorasse a voltar, que acionasse o Corpo de Bombeiros. Não precisou, ainda bem. Chegou a desbravar 15 metros abaixo da superfície.

Mas ele também contou com ajudas importantes, como a de Tenório, um vendedor de cerveja na Urca que, além do bom humor, tem só um braço.

“Ele ajudava a remar um barquinho que carregava meu equipamento, pela Enseada de Botafogo. Era o meu capitão. Com a ajuda dele fiz boas imagens. Poderia ficar filmando a baía a minha vida inteira, que teria história para contar. Há vida e exuberância. Mas a relação do carioca com o mar termina na faixa de areia. A cidade tem muita tradição de praia, mas não conhece o seu mar”, lamenta.

A relação de Ricardo com a baía começou quando ele foi morar no bairro do Flamengo, em 1981. À época, o biólogo marinho formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), costumava nadar por ali. Dez anos depois, viveu de pescar garoupas. Depois de arpoadas no trecho do Flamengo a Botafogo, os peixes eram vendidos em feiras.

“Tinha muita garoupa. Conhecia toca por toda, geralmente eu vinha no entardecer. Era o suficiente para sobreviver. Fiz uma vaquinha na família de Minas Gerais, e cada um deu uma cota em peixe. Comprei um barquinho”, recorda. “Era curioso, quando mais perto de Botafogo, mais nojenta era a água e mais garoupa eu achava nas tocas”.

Ricardo Gomes: "Poderia ficar filmando a baía a minha vida inteira, que teria história para contar". Foto Divulgação
Ricardo Gomes: “Poderia ficar filmando a baía a minha vida inteira, que teria história para contar”. Foto Divulgação

‘Há 17 anos, condições eram melhores’

Especializado em propagação artificial de peixes, um processo que consiste na indução da desova para ajudar na preservação de espécies de água doce, Ricardo é um homem alto – tem 1,86m – e de fala mansa, mas contundente. Durante a entrevista ao #Colabora, seus olhos marejaram algumas vezes. Fala da Guanabara com a mesma emoção com que conta as histórias da filha Nina, de apenas um ano.

“Dá para afirmar que as condições eram bem melhores há 17 anos. Naquela época sempre vinha uma água limpa que me possibilitava mergulhar. Agora, em 2016 e 2017, percebi que nem sempre a maré cheia traz água limpa. É notável a diminuição de dias com água limpa”, lamenta.

Ricardo explica que o seu trabalho procura mostrar o lado bom da Guanabara, com o intuito de fazer as pessoas lutarem por sua preservação:

“Eu quis mostrar esse lado, apresentar uma visão diferente da propagada pelo (biólogo) Mário Moscatelli, a quem respeito muito. Minha postura é, de certa forma, uma antítese do Moscatelli, mas com a ideia de ajudá-lo”, explica, para em seguida elogiar o biólogo que há anos denuncia a degradação ambiental de ecossistemas cariocas: “Ele sozinho replantou o mangue da Lagoa Rodrigo de Freitas. Com 100 Moscatellis, mudaríamos a cidade”.

Vida vegetariana

Em 1997, Ricardo comprou sua primeira câmara digital. Fez uma caixa-estanque para possibilitar os cliques submersos, acoplou lanternas. O primeiro filme, “Mar Urbano”, resultado de 15 anos registrando a dinâmica da vida de pescadores Copacabana e Ipanema, lançado em 2014.

O documentarista pratica a mudança que deseja no mundo. Há 35 anos, não come nenhum tipo carne, e mantém uma dieta 100% vegetariana – diz que segue a filosofia de “não compactuar com o sofrimento animal” – desde 2014.

“Precisamos evoluir da emoção à razão. As pessoas são muito comodistas. Em outros tempos as pessoas lutavam mais, promoviam mudanças. Precisamos assumir riscos. Você não pode ser Bolsonaro e Lula ao mesmo tempo. Ou a gente é, ou não é. Não pode comer carne vermelha e falar que está preocupado com o aquecimento global. Por que não ser vegetariano?”, questiona.

Perguntado se levaria a filha Nina para mergulhar com ele na Praia do Flamengo, Ricardo é reticente:

“Sabendo o que eu sei hoje… acho que não. O primeiro mergulho dela foi na Praia Vermelha, na maré cheia, mas a praia está mais virada para o mar aberto. Não confio nas medições oficiais. Nos Estados Unidos há padrões dez vezes mais rigorosos em balneabilidade. Precisamos avaliar balneabilidade aqui no Rio com outros padrões. As medições devem ser feitas nas marés vazantes e enchentes. Não basta a gente ver a média do ano. Tem alguma coisa errada”.

A solução para a Guanabara, pontua, depende fundamentalmente de ações de tratamento de esgotos.

“Se não dá para fazer estações de tratamento grandes, que façamos menores, em comunidades. Na Universidade de Columbia, em Nova York, conheci o Kartik Chandran, que me mostrou miniestações de tratamento de esgoto, feitas de acrílico, e capazes de tratar o esgoto de uma casa. Com o ecoturismo, o incentivo ao mergulho com raias, dava para comprar miniestações e colocar em cada casa. A falta de espaço não é desculpa”, afirma.

Ricardo pretende continuar remando contra a maré, para revelar novas maravilhas escondidas. Em suas expedições, o biólogo já descobriu que a Guanabara é a quinta baía do mundo em ocorrência de elasmobrânquios (tubarões e raias), e não a sexta, como apontam especialistas.

“Estou fundando um instituto e continuarei a filmar. Minha esperança é que as pessoas consigam entender que estamos intrinsicamente conectados aos oceanos. Entender a Baía de Guanabara é entender os problemas dos oceanos. Quero trazer a discussão das mudanças climáticas para o local que a gente vive”.

Emanuel Alencar

Jornalista formado em 2006 pela Universidade Federal Fluminense (UFF), trabalhou nos jornais O Fluminense, O Dia e O Globo, no qual ficou por oito anos cobrindo temas ligados ao meio ambiente. Editor de Conteúdo do Museu do Amanhã. Tem pós-graduação em Gestão Ambiental e cursa mestra em Engenharia Ambiental pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Apaixonado pela profissão, acredita que sempre haverá gente interessada em ouvir boas histórias.

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