Filhos da dor: por que tão poucas recorrem ao aborto legal?

Especialistas discutem os obstáculos que as vítimas de estupro encontram para realizar o procedimento de interrupção da gravidez

Por Rosane Marinho | ODS 3ODS 5 • Publicada em 4 de março de 2018 - 17:28 • Atualizada em 29 de fevereiro de 2024 - 16:52

Protesto no Rio contra a criminalização do aborto. Foto: Ilan Pellenberg / AGIF

Protesto no Rio contra a criminalização do aborto. Foto: Ilan Pellenberg / AGIF

Especialistas discutem os obstáculos que as vítimas de estupro encontram para realizar o procedimento de interrupção da gravidez

Por Rosane Marinho | ODS 3ODS 5 • Publicada em 4 de março de 2018 - 17:28 • Atualizada em 29 de fevereiro de 2024 - 16:52

(Com Yuri Fernandes) O código penal brasileiro, no inciso II do Artigo 128, garante o direito ao aborto legal, gratuito, a toda mulher que tenha engravidado em decorrência de violência sexual. Embora a lei seja antiga (de 1940),  ainda hoje o direito não é assegurado às milhares de mulheres que anualmente são vítimas desse crime perverso.  Por que tão poucas mulheres recorrem ao aborto legal? Uma das razões é a falta de informação. Muitas desconhecem o direito ao procedimento. Outra é a  dificuldade de encontrar um centro hospitalar que cumpra a legislação. A pesquisadora Débora Diniz avaliou 68 serviços de saúde do país classificados como referência pelo Ministério da Saúde: 45,6%  não realizavam de fato o procedimento; destes, 28 tinham suspendido o atendimento e quatro jamais o haviam realizado.

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Em São Paulo, o hospital estadual Pérola Byington, no bairro da Bela Vista, está entre os poucos centros hospitalares públicos, especializados na saúde da mulher que realiza o aborto legal. Entre 1994 e 2017, 288 meninas entre 10 e 14, estupradas, interromperam a gravidez no hospital. Na faixa etária entre 15 e 19 anos, foram 544 atendimentos.

A maioria  ainda encontra grandes obstáculos para realizar o aborto de forma legal e segura dentro do SUS, na medida em a maior parte dos serviços de saúde descumpre seu dever de garantir esse atendimento

No município do Rio de Janeiro o serviço é realizado desde 1987. O pioneiro foi o Hospital Maternidade Fernando Magalhães, na Zona Norte, que, até 2015, respondia por praticamente 100% dos abortos legais feitos no Rio. Hoje, segundo a Secretaria Municipal de Saúde, todas as 12 maternidades da cidade são capazes de oferecer o serviço. No primeiro semestre de 2017, foram feitos 51 abortos legais no Rio, sendo 26 decorrentes de violência sexual (os outros casos previstos por lei são se o feto for anencéfalo ou se houver risco de vida para a gestante). Em 2016, em todo o ano, foram 63. Desses, 53 eram gestações decorrentes de estupros.

Medo, vergonha, insegurança e baixa autoestima são sentimentos comuns às meninas que chegam para realizar o procedimento. Muitas delas apresentam quadro de depressão.  “O conjunto das consequências psicológicas da violência sexual é complexo e de longa duração, podendo comprometer o desenvolvimento dessas adolescentes e sua qualidade de vida futura”, avalia o obstetra Jefferson Drezett, que trabalha há 25 anos no Pérola, em São Paulo, onde coordenada o Ambulatório de Violência Sexual e de Aborto Legal. “Como se não bastasse, existe a possibilidade de desenvolvimento de doenças sexualmente transmissíveis, como a Aids, com impacto para a saúde sexual e reprodutiva”.

Jefferson Drezett: "O fenômeno do incesto tem efeitos perversos, pois posterga o reconhecimento do problema”. Foto: Reprodução
Jefferson Drezett: “O fenômeno do incesto tem efeitos perversos, pois posterga o reconhecimento do problema”. Foto: Reprodução

Segundo o Dr. Drezett, do total de atendimentos no hospital, em 174 casos (21%), a gravidez foi decorrente de incesto, “o que aumenta o risco de consequências emocionais mais severas.”  Para ser atendida no hospital, a menina que engravidou em decorrência de estupro, não precisa ter passado antes pela polícia, apresentar boletim de ocorrência ou atestado do IML (Instituto Médico Legal). “No ordenamento jurídico brasileiro, não existe a exigência legal ou administrativa de que a adolescente ou sua família apresentem provas materiais da ocorrência da violência sexual. Dessa forma, os serviços de saúde devem proceder com a aprovação do pedido de aborto legal mediante a presunção de veracidade da palavra da adolescente e/ou de seu representante legal”, afirma Drezett.

Por que, então, ainda é tão difícil para as mulheres vítimas de estupro exercerem o direito à interrupção da gravidez?  E por que essa dificuldade é ainda maior para as crianças e adolescentes? “A maioria  ainda encontra grandes obstáculos para realizar o aborto de forma legal e segura dentro do SUS, na medida em a maior parte dos serviços de saúde descumpre seu dever de garantir esse atendimento. O problema se agrava para as adolescentes, por terem menor autonomia na busca por esses serviços. Além disso, o fenômeno do incesto, frequente entre elas, tem efeitos perversos, pois posterga o reconhecimento do problema”, lamenta Drezett.

Apesar disso, Drezett tem observado que, nos últimos dois anos, mais e mais meninas chegam ao hospital para exercer seu direito à interrupção da gravidez porque buscaram informações na internet. “Antes, mais da metade das mulheres eram encaminhadas pela Polícia ou pelas delegacias de Defesa da Mulher. Agora, vemos que muitas estão vindo ao hospital diretamente, depois de buscarem na internet.”

A desinformação, o medo, a vergonha e a discriminação que existe em volta da questão do aborto legal prejudicam a procura pelo atendimento. Ainda mais se a mulher é moradora de uma região de difícil acesso, se vem de uma classe desfavorecida, se é negra…

De acordo com o Ministério da Saúde, entre 2011 e 2016, em 68,5% dos  de estupros de meninas de 10 a 14 anos, o autor do crime foi algum familiar ou parceiro íntimo. No Rio, a situação não é muito diferente. “São muitos os casos aqui desse tipo. A situação de violência sexual é muito perversa. E várias dessas meninas que são abusadas por alguém da família, vêm de locais longínquos, e deixam de procurar ajuda para não serem reconhecidas nas proximidades”, diz Carla Brasil, superintendente de hospitais pediátricos e maternidades da Secretaria Municipal de Saúde,

Além de vítimas de um crime perverso, essas meninas ainda são reféns da falta de informação.  Sem conhecer o direito ao aborto legal – e mais seguro – muitas acabam procurando pelo método clandestino, crime no Brasil, com pena de um a três anos de detenção. “A desinformação, o medo, a vergonha e a discriminação que existe em volta da questão do aborto legal prejudicam a procura pelo atendimento. Ainda mais se a mulher é moradora de uma região de difícil acesso, se vem de uma classe desfavorecida, se é negra … A gente sabe que é desigual”, diz Carla. “As pessoas acham que, se eu falo sobre aborto legal, vou ter milhões de pessoas batendo à porta dos hospitais. Isso é mera fantasia. A campanha não é do aborto legal e, sim, sobre a violência contra a mulher. Começa antes, no acesso aos cuidados profiláticos, à contracepção de emergência e ao acompanhamento social e psicológico. Esconder não faz sentido” .

Drezett  faz coro. “Reduzir ou minimizar os efeitos da violência sexual contra adolescentes passa, necessariamente, pela implantação de políticas públicas eficientes que garantam integralmente o atendimento ao aborto legal para todas as mulheres. Sobretudo, pela desconstrução de uma cultura de violência contra a mulher, particularmente daquela mais vulnerável, o que exige medidas, compromissos e políticas públicas em todos os âmbitos da sociedade”.

Outro obstáculo no meio do caminho de quem busca o aborto legal é a chamada objeção de consciência: a recusa pelo profissional de saúde em realizar atos permitidos por lei em razão de valores pessoais. Segundo o Código de Ética Médica, a negativa pode ocorrer exceto “na ausência de outro médico, em casos de urgência, ou quando sua negativa possa trazer danos irreversíveis ao paciente”.

Carla admite que ainda existe resistência pela classe médica. “Essa questão deve ser trabalhada intensamente. O profissional, individualmente, pode se negar por uma questão de foro íntimo ou de qualquer natureza. Mas a instituição, não. O pessoal não pode sobressair à questão institucional. É um processo de desconstrução e, ao mesmo, de construção sob uma nova perspectiva”.

Rosane Marinho

É jornalista, carioca, e há dez anos vive em Zaragoza, na Espanha. No Rio, trabalhou como fotógrafa na sucursal da Folha de S. Paulo e no Jornal do Brasil. Foi correspondente d'O Globo no Recife. Na Espanha, é professora de fotografia digital e trabalha como jornalista freelance. Casada, é mãe de dois pequenos hispano-brasileiros.

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