A universidade é pública, a iniciativa é privada

Vacina desenvolvida pela UFMG vira modelo de parceria entre pesquisadores e empresas

Por Chico Alves | ODS 4 • Publicada em 21 de maio de 2019 - 16:26 • Atualizada em 26 de maio de 2019 - 15:07

O INCT-Vacinas engloba 25 grupos de pesquisadores do Rio, São Paulo e outros estados. Foto Divulgação
O INCT-Vacinas engloba 25 grupos de pesquisadores do Rio, São Paulo e outros estados. Foto Divulgação

Depois de doze anos à frente da bem-sucedida pesquisa que aumenta as possibilidades de tratamento e prevenção de doenças como malária, leishmaniose e chikungunya, o imunologista Ricardo Gazzinelli teria tudo para estar radiante com a profissão.  Nesse momento, porém, ele não tem palavras animadoras aos alunos que o procuram para perguntar sobre a carreira.  “Hoje, digo que estou pessimista”, admite o professor, que coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Vacinas (INCT-Vacinas), atua na Universidade Federal de Minas Gerais e é pesquisador da Fiocruz. O motivo para o baixo astral é a falta de verbas que se agravou após o último corte imposto pelo governo às universidades federais.

Educação é a nação a longo prazo. Se acham que devem cortar justamente na pesquisa, estão matando a galinha dos ovos de ouro

O trabalho desenvolvido por Gazzinelli e sua equipe pode ser visto como modelo sob vários aspectos, inclusive por um parâmetro que o ministro da Educação, Abraham Weintraub, tem destacado muito em suas declarações públicas: a parceria com a iniciativa privada. Um dos produtos desenvolvidos pelo grupo, a vacina contra a leishmaniose visceral canina, é hoje fabricado e comercializado por uma empresa que paga royalties à instituição federal. “Esse dinheiro contribui para o financiamento do funcionamento da UFMG e essa parceria é considerada modelo de relacionamento entre o setor público e o privado”, explica o pesquisador. Outros medicamentos que poderão ser vendidos ao público estão apenas esperando autorização para chegar às prateleiras.

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Sob o ponto de vista meramente econômico, tão caro a Weintraub, o professor Gazzinelli avalia que reduzir o investimento em pesquisa é um grande erro dos governantes. “Não podemos mais viver de extrativismo, de commodities. Isso é um modelo que não deixa o Brasil mudar de patamar no cenário internacional”, lamenta. Ele lembra que na crise de 2008 os países que conseguiram sair mais rapidamente do aperto foram os que mais investiram em ciência e tecnologia. “Educação é a nação a longo prazo. Se acham que devem cortar justamente na pesquisa, estão matando a galinha dos ovos de ouro”.

Também é um erro pelo viés mais importante, o da saúde pública. As pesquisas capitaneadas pelo imunologista tratam de doenças que atacam a população pobre e por isso são negligenciadas nos laboratórios privados. A vacina comercializada trata a leishmaniose visceral canina, já que o animal é um reservatório de parasitas, e reduz o risco de transmissão da doença para humanos.

Em seu grupo na UFMG, Gazzinelli tem 50 integrantes. Além disso, coordena o INCT-Vacinas, que engloba 25 grupos de pesquisadores do Rio, São Paulo e outros estados. Para todos esses cientistas, a redução dos recursos do governo já surte efeito. “Uma das consequências mais críticas é o corte de bolsas da Capes. Isso tem impacto grande, já que hoje a ciência no Brasil é feita em grande parte por alunos de pós-graduação”, diz o professor. “Teve gente que desistiu de fazer por causa do corte de bolsas. A equipe já diminuiu”. Falta também recursos para importação de material, não há como cobrir os custos de viagem (muitos estudos são feitos na Amazônia).

Não podemos mais viver de extrativismo, de commodities. Isso é um modelo que não deixa o Brasil mudar de patamar no cenário internacional

Para Gazzinelli, estender demais esse corte de recursos representa um perigo. “O grupo se desarticula. Não perdemos conhecimento, mas ciência é um setor competitivo. Outros estão atuando na mesma área e uma pesquisa que hoje é uma grande novidade daqui há um ano pode não ser mais. Perdemos assim o dinheiro que poderíamos ganhar com a patente, além do reconhecimento de liderança daquela área”, detalha. As equipes de pesquisa da UFMG, INCT-Vacinas e Fiocruz têm trabalhos em conjunto com as universidades de Harvard, de Massachusetts e várias outras instituições internacionais de prestígio. Seus resultados são frequentemente publicados em revistas como a Nature e outras de primeira linha.

Para os cientistas mineiros, há um drama a mais, além do contingenciamento imposto pelo Ministério da Educação. A Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais foi praticamente desativada pelo governo estadual. “Pela primeira vez em décadas, foram cortados todos os editais, interrompidos os pagamentos de todos os projetos em curso e não vamos ter novas bolsas”, conta o professor.

Diante desse cenário desolador, compreende-se por que um pesquisador de tanto sucesso se diz pessimista com a profissão. À pergunta dos alunos citados no início desse texto, que o procuram pedindo conselhos sobre o futuro, ele dá uma resposta a contragosto: “Tentem fazer carreira em outro país”. Apesar disso, Gazzinelli continuará por aqui, metido no laboratório e tocando as suas pesquisas com o rigor de sempre, torcendo por tempos melhores para a ciência nacional. #100diasdebalbúrdiafederal

4/100 A série #100diasdebalbúrdiafederal pretende mostrar, durante esse período, a importância  das instituições federais e de sua produção acadêmica para o desenvolvimento do Brasil.

Chico Alves

Chico Alves tem 30 anos de profissão: por duas vezes ganhou o Prêmio Embratel de Jornalismo e foi menção honrosa no Prêmio Vladimir Herzog. Na maior parte da carreira atuou como editor-assistente na revista ISTOÉ, mais precisamente por 19 anos. Foi editor-chefe do jornal O DIA por mais de três anos. É co-autor do livro 'Paraíso Armado', sobre a crise na Segurança Pública no Rio, em parceria com Aziz Filho.

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