Procura-se um maluco-beleza

O profeta Gentileza, um dos muitos personagens das ruas do Rio. Foto de divulgação

Personagem típico do Rio desaparece e dá lugar ao maluco-estressado, correndo de crachá para um hospício corporativo

Por Joaquim Ferreira dos Santos | ODS 11 • Publicada em 21 de agosto de 2017 - 01:11 • Atualizada em 8 de março de 2024 - 17:16

O profeta Gentileza, um dos muitos personagens das ruas do Rio. Foto de divulgação

Tinha a calçada, e no meio dela, como se fosse um totem vivo, tinha o maluco-beleza da região. O Profeta Gentileza, depois tornado música da Marisa Monte, era um deles. Vestia-se de bata branca, pregava contra o pecado e, num design lindo, escrevia mensagens escalafobéticas nas paredes do Centro. Não provocava medo, mas carinho.

O maluco-beleza era um conforto doméstico, um dos reconhecimentos de que se estava na vizinhança de casa. A performance dele fazia parte do cenário do Rio, da cultura das ruas, e combinava com o estado de brincadeira que tipificava a cidade. Era uma curiosidade folclórica, um estranhamento que fazia parte da ordem natural das coisas e da convivência carioca.

A calçada era o espaço público onde esbarrava-se amistosamente com esse tipo de cidadão. Ele não ameaçava, não agredia, apenas destoava do padrão comum de comportamento – e a vida ia em frente para todos, num tempo em que o termo “gente diferenciada” ainda não havia sido cunhado.  O maluco-beleza coloria a paisagem, dava assunto e animava o dia-a-dia.

Na barca Rio-Niterói reinava um doidivinas chamado João Melo. No meio da viagem, ele discursava ser o único do mundo capaz de correr em zigue-zague para frente, zigue-zague de lado e zigue-zague para trás. Na saída da estação, João Melo demonstrava que não mentia ao fazer o anúncio – e disparava entre a multidão com seu jeito atabalhoado de praticar o esporte no qual era o único medalhista.

Esse doidinho gente boa do quarteirão sumiu. Tinha um quê chapliniano carioca, coerente com a poesia embutida na singela e outrora usual prática de se passear pelas calçadas. Em Copacabana, nos anos 1970, lá pelas alturas de uma das ruas internas do Posto 5, havia um jovem que se fazia anunciar um quarteirão antes pelo cheiro de éter emanado de suas vestes. Chamava-se Jimmy, e a sua notoriedade chegou a ilustrar poesia do Abel Silva, intitulada “Uma esquina cheirando à éter”. A vizinhança adotou o rapaz, vapor barato numa época em que isso não tinha associação com traficagem.

O maluco-beleza hoje somos todos nós, uma multidão sem graça, uniformemente estressada que dispara atrás de algum compromisso ou da simples necessidade de chegar rápido em casa, fugir dos perigos que habitam as antes encantadas calçadas do Gentileza, do João Melo e do Jimmy.  Não há sucessor para o guarda Belo, na esquina das ruas Maria Angélica e Jardim Botânico. Ele dava bronca em quem cometia alguma infração e fazia seu trabalho com uma coreografia de bailarino, coordenando no mesmo tipo a elegância de lorde inglês e a irreverência de malandro carioca. As crianças adoravam. Os superiores do guarda pediam que ele se enquadrasse ao cinza entediante da normalidade urbana.

O Pedro das Flores vendia rosas na noite de Copacabana, depois foi sucedido pelos cravos do Francisco das Flores, no Baixo Leblon, e todos eram afáveis, muito bem vestidos e educados, a não ser pelo fato de se debruçarem sobre a mesa do bar interrompendo a conversa dos casais. No Leme, um farmacêutico cruzava as ruas com o pescoço curvado por uma cornucópia de chaveiros, broches e o que mais lhe coubesse no cordão. O Zé das Medalhas parecia um carro alegórico, enfeitado com os disparates para um carnaval que carregava o ano inteiro e chacoalhava o remédio da alegria contra os bodes das doenças do cotidiano.

Havia mais cordialidade entre os passantes, menos agressividade na rotina, e esses personagens salpicavam de humor a impessoalidade do espaço público. Fosse com as musicas que Ademir dos Santos tirava do sax, fosse com os pulos do acrobata Tigre, sempre de cartola ao estilo Chaplin, ambos no Largo da Carioca – o Rio ficava mais divertido. Era uma marca da cidade, a ponto de um desses tipos mais folclóricos, o gari Sorriso, sambando com sua vassoura, ter virado um símbolo – e passou a ganhar a vida misturando a maluquez original com a lucidez dos negócios. Finalmente, registre-se como derradeiro exemplo de maluco-beleza a mulher de branco de Ipanema, Ana Maria de Carvalho, que ainda perambula pelo bairro, agora vestida de azul, sempre falando em um celular imaginário e arrastando um carrinho de feira repleto de quinquilharias. Tem andado muito doente.

Todos eles – e mais o Gilson, que escrevia poesias a giz nos tapumes do metrô, e mais o Sheik, que vendia cocada com os paramentos que lhe valiam o apelido, e mais o Jaime Sabino, que carregava o caixão dos famosos para aparecer nas fotos – todos eles são desaparecidos. Marcaram as ruas quando as calçadas e as praças serviam de pontos de encontro, de práticas de sociabilidade ou simples passarela de se caminhar para ver como andam as modas e as esquisitices alheias.  Eram dóceis. O maluco-beleza funcionava como um relógio interior do Rio, seguia com doçura na contramão das urgências, essa doença que hoje pressiona todos a serem mais rápidos, objetivos e espertos do que qualquer um que lhes vá à frente.

Gentileza é coisa de maluco-beleza das antigas, aquele sujeito pacífico, com ponto fixo, que ajudava a demarcar o cotidiano da geografia afetiva da cidade. Hoje a rua é do maluco-estressado, aquele que passa de passagem, cinza-chumbo, correndo de crachá sabe-se lá para que cela do seu hospício corporativo.

Joaquim Ferreira dos Santos

Jornalista e autor de vários livros, entre eles "Feliz 1958 - O ano que não devia acabar" e as biografias de Leila Diniz, Antonio Maria e Zózimo Barrozo do Amaral. Organizou a coletânea "As cem melhores crônicas brasileiras" e também publicou livros como cronista. Define-se principalmente como um repórter de Cidade. No #Colabora, Joaquim escreve sobre o que vai pelas calçadas e espaços públicos do Rio.

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