Com licença, prefeito: o #RioéRua

Passeio no calçadão: o carioca exerce sua vocação para se divertir ao ar livre. Foto: Marcelo Fonseca/Photo Press

Ninguém vai tirar do carioca a vocação para se divertir e exercer sua cultura nas praias, calçadas e praças da cidade

Por Oscar Valporto | ODS 11 • Publicada em 11 de julho de 2017 - 21:15 • Atualizada em 13 de julho de 2017 - 14:08

Passeio no calçadão: o carioca exerce sua vocação para se divertir ao ar livre. Foto: Marcelo Fonseca/Photo Press
Passeio no calçadão: o carioca exerce sua vocação para se divertir ao ar livre. Foto: Marcelo Fonseca/Photo Press

Ouvi a frase num quiosque de Ipanema, com o calçadão lotado de gente, no fim de tarde de Verão,  após uma tempestade daquelas: “Carioca é igual barata; não pode fazer calor que vem tudo para rua”. Pode ser que essas temperaturas abrasivas façam parte da explicação dessa ligação dos moradores da cidade com a rua: dos nossos antepassados índios, com aldeias à beira-mar, dos antepassados portugueses, sofrendo com o calor dos trópicos, dos antepassados africanos, querendo fugir do sufoco – em todos os aspectos – das senzalas. Não tenho conhecimento histórico, antropológico ou urbanístico para explicar por que o #RioéRua. Mas tenho a convicção de que está relacionado à mistura de culturas que, por aqui, misturou-se mais do que em qualquer outra parte deste Brasil de tantas misturas.

Posso imaginar que tudo começou mesmo na praia, programa de índios, que, muito antes da chegada dos europeus e africanos, já se divertiam no mar.  Os primeiros cariocas foram ladeira abaixo na escala social, mas seu antigo hábito sobreviveu com um empurrão da mais alta nobreza: Dom João VI, nosso primeiro monarca, e seus banhos de mar medicinais na Praia do Caju. Levariam outros 100 anos para a praia virar programa no Rio de Janeiro e, aos poucos, se estabelecer como o mais democrático dos espaços onde – ainda e muito mais do que em outros pontos do nosso enorme litoral – convivem a nobreza carioca instalada nos apartamentos luxuosos de Copacabana, Ipanema e Leblon e os moradores de subúrbios e favelas. Nem sempre convivência harmônica, mas convivência muito maior do que em outras capitais à beira-mar.

Não será fácil a tarefa que parece o prefeito Marcelo Crivella ter escolhido de tirar o carioca da rua, disciplinar seu espírito, tolher sua cultura

Mas o hábito de ir à praia começou a se estabelecer lá por 1920 e A Alma Encantadora das Ruas, do cronista carioca João do Rio, foi editado em 1908, com textos escritos entre 1904 e 1907. A rua já era protagonista do Rio e João, seu cronista, passeia por profissionais das calçadas vendedores de livros e orações, músicos ambulantes, tatuadores, prostitutas, engraxates, pintores de tabuletas para lojas e de paisagens para paredes de botequim, cocheiros (versão para taxistas no começo daquele século). E passa também pelas festas populares: do Dia de Reis, hoje meio fora de moda entre os cariocas, ao Carnaval. A cidade por onde João do Rio circulava era a planejada por Pereira Passos, inspirada em Paris, avenidas largas, largas calçadas, muitas praças, valorização dos espaços públicos.

Roda de samba na Rua do Ouvidor: tradição carioca. Foto: Oscar Valporto

Se havia algo de europeu no #RioéRua, de Paulo Barreto, nome verdadeiro escondido pelo pseudônimo João do Rio, no século anterior, as manifestações populares tinham alma e sons africanos. Era comum, no século XIX, a elite branca, ainda moradora do centro, reclamar do “batuque dos pretos” – festas de escravos, nos seus poucos momentos de folga, na rua, onde mais, com danças e músicas africanas. O Campo de Santana era, ao mesmo tempo, palco de animadas domingueiras dos escravos e da mais badalada festa religiosa do catolicismo daqueles tempos imperiais, a Festa do Divino – também na rua, com cortejo e clima de quermesse. A Praça Tiradentes, então Praça da Constituição, também era outro ponto de “batuque de pretos” – divertimento nem sempre tolerado pela polícia da capital do Império.

Como já escrevi, não sou historiador, antropólogo ou urbanista para entender a ligação dos cariocas com as ruas e sua cidade. Sei que botamos 100 mil nas ruas contra a ditadura em 1968, quase um milhão pelas diretas em 1984. E, enquanto a democracia voltava, multiplicavam-se os blocos pelas ruas da cidade, hoje mais de 400, dispostos a pular Carnaval sem cordas, sem amarras.  E, numa sexta-feira, como essa que escrevo, posso escolher entre quatro ou cinco rodas de samba para ir aqui mesmo no Centro da Cidade. No último fim de semana, vi nos jornais, havia pelo menos 12 festas juninas em pleno julho, ao ar livre, de graça, programadas nas praças da cidade – do Largo do Machado a Jacarepaguá, de Madureira ao Leblon.

A irreverência dos foliões nas ruas, durante o Carnaval. Foto de Gustavo Stephan

Portanto, não será fácil a tarefa que parece o prefeito Marcelo Crivella ter escolhido de tirar o carioca da rua, disciplinar seu espírito, tolher sua cultura. Há uma escalada em marcha, parece claro. Começou com o ataque populista ao desfile das escolas de samba na Passarela da Marquês de Sapucaí: cortar verba do Carnaval para dar às crianças das creches. Piorou com a suspensão do apoio aos desfiles das escolas de samba pobres que desfilam na Intendente Magalhães, verdadeiros símbolos da cultura carnavalesca como já relatado aqui no #Colabora por Aydano André Motta.

Nada disso, claro, pode ser considerado surpresa: o prefeito é bispo licenciado de uma das denominações mais obscurantistas e intolerantes do nosso espectro religioso. Mas vai enfrentar uma cidade com  500 anos de história de manifestações ao ar livre

A este ataque sob holofotes, soma-se uma guerrilha contra os eventos nas ruas, com um aumento de burocracias e exigências que vem provocando cancelamentos e adiamentos. O ponto mais crítico, entretanto, é o decreto que transferiu para o gabinete do prefeito a liberação de qualquer evento da cidade. E considera evento:  “todo exercício temporário de atividade econômica, cultural, esportiva, recreativa, musical, artística, expositiva, cívica, comemorativa, social, RELIGIOSA ou política, com fins lucrativos ou não, que gere: I – concentração de público, em áreas abertas ou fechadas, particulares ou não”. Ou seja, apesar de ter efetivamente aliviado um pouco na hora da regulamentação, o decreto é uma ameça ao espírito carioca, à cultura popular e à liberdade, inclusive de culto, como fica claro.

Cena de alegria explícita na Feira das Yabás, em Madureira. Foto: Berg Silva

Nada disso, claro, pode ser considerado surpresa: o prefeito é bispo licenciado de uma das denominações mais obscurantistas e intolerantes do nosso espectro religioso. Mas vai enfrentar uma cidade com  500 anos de história de manifestações ao ar livre – sem querer parecer historiador. E uma população com vocação para exercer sua cultura e sua religião na rua – sem querer parecer antropólogo. E uma cidade que tem calçadas e espaços que convidam a essa vocação – sem querer parecer urbanista. Os protestos já começaram com sambistas e artistas de rua e não vão parar: vai ter até desfile crítico da Mangueira. O #RioéRua e não há hipótese de o carioca mudar de calçada para deixar o bispo passar com sua intolerância.

Em resposta a matéria, o prefeito Marcelo Crivella promete convocar produtores culturais para discutir a relação.

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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