As caravanas de Chico pelas ruas do Rio

Do subúrbio ao Alto Leblon, uma caminhada pelas letras do escafandrista famoso

Por Joaquim Ferreira dos Santos | ArtigoODS 11 • Publicada em 8 de janeiro de 2018 - 13:54 • Atualizada em 9 de janeiro de 2018 - 12:45

Chico Buarque no show “Caravanas”, em cartaz no Rio de Janeiro. Foto Mauro Pimentel/AFP
Chico Buarque no show "Caravanas", em cartaz no Rio de Janeiro. Foto Mauro Pimentel/AFP
Chico Buarque no show “Caravanas”, em cartaz no Rio de Janeiro. Foto Mauro Pimentel/AFP

Quem já viu Chico Buarque caminhando pela orla do Leblon custa a crer que ele seja o autor do verso “Não se afobe não”, a senha de abertura de “Futuros amantes”, um dos clássicos no roteiro de “Caravanas”, seu novo show. Chico anda apressado. Tem uma caminhada de passos curtos, rapidíssimos, quase uma marcha olímpica, aquela em que o atleta dispara mas sem correr, sempre com um dos calcanhares preso ao chão.

Chico é um andarilho carioca, um morador do Alto Leblon que sai pela orla caminhando até o canal do Jardim de Alah, depois pode voltar por ruas internas e ao final sobe de volta para seu apartamento, de onde tem uma vista panorâmica da Zona Sul carioca. O Rio, a “cidade submersa” de que fala “Futuros amantes”, não está no GPS, é a poesia delicada de que o amor tem seu tempo. É ficção, uma cidade a ser descoberta no futuro por um escafandrista. Chico sabe tudo dessa geografia amorosa, onde “nada é pra já”, mas sabe também do Rio real. Através de suas músicas, tem colocado o pé na rua e saído pela cidade “pra já”, um Rio para muito além dos limites do Leblon.

Já deixou suas passadas de caminhante lírico por todas as trilhas cariocas e de vez em quando nomes de bairros e de ruas pulam nas letras. Chico nasceu no Catete em 1944, logo em seguida mudou-se com a família para o Lido e aos dois anos foi para São Paulo, de onde só voltaria em 1966. Casado com Marieta Severo, morou numa quitinete na Prado Júnior, num edifício imprensado entre um cabaré de strip-tease e o Beco da Fome, que esquentava na alta madrugada os boêmios e prostitutas de Copacabana. Mudou-se depois para outra quitinete um pouco maior na Barão de Ipanema e, ainda em Copacabana nos anos 1960, foi para a Francisco Sá. Em 1968 estava na Dias Ferreira, no Leblon. Na volta do exílio na Itália, onde tinha morado em parte da infância, revezou-se entre a Gávea, o Jardim Botânico e, finalmente, o Leblon.

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A tradicional corrida na praia. Foto Divulgação

Alguns desses endereços residenciais acabaram em música, como é o caso de “Morro  Dois Irmãos”. Chico morava aos pés da pedra, na Gávea, quando lançou o LP que leva o nome da música e tem na contracapa uma foto da pedra. A letra diz em sua abertura: “Dois Irmãos, quando vai alta a madrugada, e a teus pés vão-se encostar os instrumentos”. No Jardim Botânico, separado de Marieta, Chico morou na Rua Itaipava. Embora nada disso seja citado explicitamente na letra de “Carioca”, foi ali que se inspirou para fazer a letra do samba. Ele era acordado toda manhã por um vendedor, que aos berros, num alto-falante, de dentro de uma kombi, anunciava o seu produto, assim como está na letra: “Gostosa, quentinha, tapioca, o pregão abre o dia”.

Chico é uma celebridade carioca que tenta não se levar como tal. Frequenta também os restaurantes da cidade. Está cansado de sentir na pele que o Rio não é para iniciantes e uma vez foi assediado, na saída de um restaurante na Rua Dias Ferreira, por um grupo que não concordava com suas posições políticas. Em alguns dos shows desta temporada tem contado que ao andar pela praia há passantes de ideologias diversas que, dos carros, lhe gritam “volta pra Cuba, seu comunista viado” ou “vai pra Paris, seu burguês viado”. Chico chegou à conclusão que sua obra divide as opiniões, mas o “viado” é um consenso entre todos os grupos – e, nem aí, tem continuado a caminhar com a pressa de sempre.

Em parte, a rapidez do andarilho é um truque. Em primeiro lugar, não dá tempo de ser parado por fãs em busca de fotos e autógrafos. Em segundo, deixa no fã a dúvida, pela pressa da caminhada, de que estaria indo cumprir algum compromisso importantíssimo, que não pudesse ser atrapalhado. Os fotógrafos há algum tempo o deixaram em paz. Chico tenta usar sempre a mesma roupa, o mesmo calção e a mesma camiseta, o que torna a foto desta semana igual a do mês passado – e desinteressante a possíveis sites e revistas de celebridades, os compradores desses flagrantes.

Aos 73 anos, ele continua uma figura presente nas ruas do Rio. Duas vezes por semana, joga futebol no Recreio dos Bandeirantes, próximo do Terreirão, onde fundou o clube Politheama. Sua obra é cheia de crônicas poéticas sobre o que vê nesses momentos em que cruza pela vida da cidade. É o menino vendendo chiclete no sinal, em “Pivete”, a transformação da malandragem que saiu da Lapa municipal para o espaço federal em “Homenagem ao malandro” ou o Morro da Mangueira, em “Estação derradeira” (“Rio de ladeiras, civilização encruzilhada, cada ribanceira é uma nação”.) Na letra de “Carioca”, quando diz “O homem da Gávea criou asas” é dele mesmo que está falando, lembrança do dia em que para impressionar uma das filhas topou se jogar de asa delta do alto da Pedra Bonita.

Chico diz que a longa temporada passada fora da cidade, na infância e adolescência, até hoje lhe dá a sensação de estrangeiro no Rio, de alguém que não decifra inteiramente seus códigos de palavras e comportamentos. Não parece.  Esse distanciamento talvez seja o que permita caminhar direto ao ponto e escrever, em “Partido alto”, a peça que lhe tinha pregado Deus, um cara que adora brincadeira: “Achou muito engraçado me botar cabreiro, na barriga da miséria, nasci batuqueiro, eu sou do Rio de Janeiro”.

Chico atravessou muitas vezes o túnel Zona Sul/Zona Norte. Frequentava em Olaria a varanda de Pixinguinha, durante muitos anos participava de uma pelada em Madureira. Quando relacionou os bairros na letra de “Subúrbio” (“Fala Penha, Fala Irajá, Fala Olaria, Fala Acari, Fala Piedade), não usou de falsos lirismos ou cromatismos esperançosos. Sabia do que falava: “Lá não tem brisa, não tem verde-azuis, lá não figura no mapa, é contra-senha, é tapa na cara”). É uma cidade de contrastes terríveis, mas em “Canção de Pedroca” ele resume tudo: “Quando nos apaixonamos, poça d’água é chafariz, ao olhar o céu de Ramos, vê-se as luzes de Paris”.

O Rio de 2018, mais do que nunca, é uma cidade de tragédias próprias e felicidades únicas. O Alto Leblon, onde Chico mora, com uma paisagem deslumbrante da orla azul e do verde das matas, às vezes funciona como rota de escape para traficantes que fogem da polícia ou de enfrentamento com rivais nas favelas próximas. O compositor continua atento a essas realidades. A sua “caravana” em janeiro fica no Rio e depois se espalha pelo país. A música-título ao show é um desses retratos da cidade, um mergulho sobre a violência, o preconceito e as diferenças que se revelam num domingo de sol carioca, mais exatamente no momento em que a caravana do morro do Arará chega para um domingo de real grandeza na Praia de Copacabana e dá de cara com o preconceito. De tudo que se escreveu sobre a tensão carioca, nada foi tão na veia. De um lado, “os suburbanos tipo muçulmanos”, do outro “a gente ordeira e virtuosa” que apela para a polícia mandar de volta a gentalha para a favela. Chico conclui que “filha do medo, a raiva é mãe da covardia”.

É um funk agressivo, bem diferente da delicadeza de “Futuros amantes”. No amor, Chico sabe que é preciso ir sem afobação. No social, ele sabe que é preciso andar com pressa.

Joaquim Ferreira dos Santos

Jornalista e autor de vários livros, entre eles "Feliz 1958 - O ano que não devia acabar" e as biografias de Leila Diniz, Antonio Maria e Zózimo Barrozo do Amaral. Organizou a coletânea "As cem melhores crônicas brasileiras" e também publicou livros como cronista. Define-se principalmente como um repórter de Cidade. No #Colabora, Joaquim escreve sobre o que vai pelas calçadas e espaços públicos do Rio.

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