‘Sou cientista e vou continuar sendo um cientista’

O franco-argelino Adlène Hicheur, professor de Física da UFRJ, defende o direito de reconstruir a sua vida

Por Florência Costa | Artigo • Publicada em 24 de janeiro de 2016 - 08:33 • Atualizada em 25 de janeiro de 2016 - 02:24

Durante a entrevista, Hicheur pega um livro de física na biblioteca de um amigo. A ciência é a sua grande paixão
Durante a entrevista, Hicheur pega um livro de física na biblioteca de um amigo. A ciência é a sua grande paixão
Durante a entrevista, Hicheur pega um livro de física na biblioteca de um amigo. A ciência é a sua grande paixão

Na manhã do dia 18, uma segunda-feira, Adlène Hicheur estava ansioso dentro de sua sala do Instituto de Física da UFRJ, no Rio. O cientista franco-argelino já havia preparado seu Power Point recheado de tabelas e gráficos. Eram complexas análises de dados sobre a procura por uma rara partícula subatômica (“Bc”). O relógio marcava meio-dia no Brasil. Eram 15h em Genebra. A voz de Hicheur foi ouvida e seus slides exibidos por meio de uma vídeoconferência para dezenas de cientistas que ocupavam a sala 24, no 1º andar do pédio 32 do CERN (Organização Europeia para Física de Partículas), na fronteira entre a Suíça e a França.

Além dos cientistas presentes no CERN, outros em vários lugares do mundo assistiam, naquele dia, a sua apresentação. Seu trabalho foi aprovado sem ressalvas. Mergulhado nos estudos sobre matéria e antimatéria, ele pavimentou, assim, o caminho para assinar um importante artigo sobre o assunto, como representante da UFRJ, em uma grande revista científica internacional.

 

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Hicheur já pagou um alto preço por sua correspondência online. Ele nunca cometeu, direta ou indiretamente, qualquer ato terrorista ou criminoso, cumpriu sua sentença e estava trabalhando pacificamente no Brasil

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Durante os 40 minutos da apresentação, Hicheur pôde esquecer a verdadeira explosão que o atormenta desde o último dia 9, quando seu rosto foi divulgado por uma revista brasileira, que o carimbou como “terrorista”. Passou a ser caçado pela mídia até mesmo no corredor de seu prédio, que não tem porteiro. Uma jornalista invadiu o edifício e bateu na sua porta. Ele avisou que chamaria a polícia. A jornalista ignorou a advertência e ficou escondida. Mas Hicheur viu que a luz automática do corredor continuava acesa: ela ainda estava lá. Ele, então, telefonou para um colega cientista que chamou a Polícia Federal. Uma agente foi imediatamente enviada ao prédio do físico e a jornalista foi obrigada a deixá-lo em paz. O delegado contactado avisou que se o franco-argelino precisasse de qualquer proteção era só dizer.

A primeira reportagem sobre ele dizia que Hicheur tinha um “segredo na sua biografia”: o de ter sido condenado pela Justiça francesa. Mas o “segredo” já havia sido publicado por toda a mídia internacional pela primeira vez há seis anos, quando ele foi detido na França. Depois, foi divulgado uma segunda vez, há três anos, quando Hicheur foi libertado. O físico foi condenado, acusado de ter trocado e-mails com um suposto terrorista. Todo o processo do caso, que se estendeu de 2009 a 2012, foi alvo de críticas, inclusive de cientistas, como o prêmio Nobel de Física Jack Steinberger. “Não havia indícios ou provas de ações concretas relacionadas ao conteúdo das conversas e de que a comunicação foi feita com um integrante da Al Qaeda”, alega  Hicheur. O cientista diz que os emails divulgados, nos quais ele falaria sobre ataques terroristas, foram distorcidos, tirados de seu contexto e pinçados de oito meses de conversas online. “Eu não defendo a violência”, afirmou ele, em entrevista exclusiva concedida a mim e a outro jornalista (o indiano Shobhan Saxena, do “The Wire”), nos dias 12 e 14 de janeiro.

Manifestantes protestam contra a prisão de Hicheur, na Praça Bellecourt, em Lyon, na França
Manifestantes protestam contra a prisão de Hicheur, na Praça Bellecourt, em Lyon, na França

“Mas isso é passado. Já fui julgado por um crime que não cometi. Não posso ser julgado de novo no Brasil”, reclamou, ressentido com a onda de islamofobia global reforçada pela mídia. Hicheur vive no Brasil há quase três anos e, nesse período, já voltou à Europa diversas vezes para visitar a família. Não existe mais nenhuma pendência contra ele na Justiça francesa. O físico foi preso preventivamente em 2009, mas só foi julgado e condenado em 2012, quando recebeu a pena de cinco anos. No entanto, dez dias após a divulgação da sentença ele acabou sendo solto. Não houve nenhum recurso. O seu advogado avisou que se isso acontecesse ele poderia ficar mais tempo encarcerado.

O orientador de doutorado de Hicheur, Jean-Pierre Lees, da Université Savoie Mont-Blanc, em Annecy-Le-Vieux, (França), diz que os promotores “sabiam muito bem que Hicheur não tinha feito nada sério”. Hicheur “foi atingido por ser um muçulmano com alto nível de educação trabalhando em física”. O físico argelino partiu para o Brasil buscando “apagar o passado e viver a sua paixão: a ciência”, contou Lees. Aurelio Bay, que foi chefe de Hicheur no EPFL, laboratório do Departamento de Física de Altas Energias da École Polytechnique Fédérale de Lausanne (Suíça), defende o ex-subordinado e lembra que a Polícia Federal da Suíça o investigou. “Não encontraram nada. Acharam só papeis, contas velhas e copos sujos”, disse, revoltado.

No Rio, o argelino contava aos colegas as histórias de Fresnes, a famosa prisão francesa onde ele foi apelidado de “Google”, por sua cultura geral: conversava sobre física, geopolítica, literatura, cinema e culinária. Com uma intensa crise ciática, ele amargou dois anos e oito meses de prisão preventiva sem que lhe aliviassem as dores com morfina. “Eles te deixam morrer de dor. Só uma médica me tratou bem. Nunca a esquecerei. Ela era uma pessoa boa. Vou testemunhar diante de Deus o que ela fez por mim”, lembrou, emocionado.  “Na prisão, eles me avisaram que eu nunca mais voltaria a ser cientista. Eles me falaram que como argelino eu teria que vender legumes na rua”, contou.

No meio do escândalo brasileiro, o ministro da Educação, Aloizio Mercadante, teve uma atitude muito criticada pelos cientistas brasileiros: disse que uma pessoa “condenada por terrorismo” deveria ter sido impedida de entrar no país e avisou que o governo iria averiguar seu status legal no Brasil.  Foi aí que o argelino, sentindo-se injustiçado, avisou aos colegas que deixaria o país e procuraria algum outro lugar para trabalhar e viver em paz, sem humilhações. Mas ele ainda não sabe que lugar seria este. Inconformado, o diretor do Centro Brasileiro de Pesquísas Físicas, Ronald Shellard, acredita que vai convencê-lo a ficar. “Não há nada que justifique uma expulsão. Espero que o governo ofereça a ele, que é um cientista brilhante, a oportunidade de ficar pelo menos mais um ano no Brasil”, comentou. “O fato de ele ser muçulmano é uma vantagem. Enriquece o nosso ambiente científico”, opinou.

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Na prisão, eles me avisaram que eu nunca mais voltaria a ser cientista. Eles me falaram que como argelino eu teria que vender legumes na rua

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O advogado criminal Hugo Leonardo, diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, explicou que quem já cumpriu pena tem o direito ao esquecimento do passado. Leonardo afirmou que esta garantia constitucional possibilita ao ex-condenado, inclusive estrangeiro, “a retomada de sua vida de forma digna e plena”, sem referir-se ao caso de Hicheur, que não acompanhou de perto. Uma petição online, da organização Avaaz, pede a garantia dos direitos civis do físico argelino.

“Hicheur já pagou alto preço por sua correspondência online. Ele nunca cometeu, direta ou indiretamente, qualquer ato terrorista ou criminoso, cumpriu sua sentença e estava trabalhando pacificamente no Brasil”, diz um e-mail, assinado por alguns dos mais proeminentes físicos europeus. Entre eles, John Ellis, do CERN e professor de Física Teórica do King’s College (Londres), agraciado, em 2012, com a Ordem do Império Britânico por seus serviços em favor da Ciência e da Tecnologia. “O artigo publicado pela revista Época [“Um terrorista no Brasil”] não está baseado em fatos e é inconsistente com a aberta tradição humanitária do Brasil”, disseram os cientistas europeus.

Adlène Hicheur, hoje com 39 anos, achava que tinha encontrado paz no Brasil. Ele quebrava a rotina de trabalho com suas preces na Mesquita da Luz, na Tijuca, e com suas caminhadas na Floresta da Tijuca, em Petrópolis e Teresópolis que lhe traziam a lembrança de Setif, sua montanhosa cidade natal na Argélia.  Caçado por jornalistas dentro de sua própria sala na UFRJ, a universidade decidiu poupá-lo de dar aulas e deixou-o concentrado nas pesquisas. O jornal francês “20 Minutes”, ao repercutir o caso, na semana passada, disse que ele foi tragado por uma “máquina midiática-política”.

No momento ele tenta ignorar esta “máquina” e prepara um segundo artigo sobre a mesma partícula subatômica rara “Bc”. Os colegas contam que ele está entusiasmado com a possibilidade de encontrar um sinal desta partícula. “Eu sou um cientista e vou continuar sendo um cientista”, avisou.

 

Florência Costa

Jornalista freelance especializada em cobertura internacional e política. Foi correspondente na Rússia do Jornal do Brasil e do serviço brasileiro da BBC. Em 2006 mudou-se para a Índia e foi correspondente do jornal O Globo. É autora do livro "Os indianos" (Editora Contexto) e colaboradora, no Brasil, do website The Wire, com sede na Índia (https://thewire.in/).

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3 comentários “‘Sou cientista e vou continuar sendo um cientista’

  1. Pingback: O "fundamentalismo anti-islâmico" e o cientista, Por Florência Costa - TIJOLAÇO | “A política, sem polêmica, é a arma das elites.”

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  3. Doris Gibson disse:

    Tempos atras, um ladrão confesso e condenado na Inglaterra pelo “roubo do século” lá, foli acolhido e defendido como heroi por esta mesma midia que hoje persegue um cientista pelo simples fato de ser argelino.

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